terça-feira, 23 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 122

 


Sentinela
Luís Veiga Leitão (1912-1987)


Com trezentas noites de cela
e dias brancos de cem anos
quero ver-te sentinela,
ver-te com os olhos humanos.

Olho as tuas mãos enclavinhadas
e pergunto: aonde estão?
Serão de outro corpo e plasmadas
no mesmo barro que vem do chão?

E nunca meus olhos viram tanto!

Olho os teus olhos despertos
e pergunto: aonde estão?
Serão de fendas, de poços abertos
ou de que raio são?

E nunca meus olhos viram tanto!

Olho a tua boca cerrada
e pergunto: aonde o seu nome?
Será gume de faca ou de espada
que a ferrugem come?

E nunca meus olhos viram tanto!

Essa arma (que as manhãs amaldiçoam)
esconde os teus olhos, teu rosto, a tua mão,
enquanto os botões de metal abotoam
teu próprio coração.


Luís Veiga Leitão (1912-1987)

Hernâni Matos

Poesia portuguesa - 121

 


Passei o Tejo à noitinha
Antunes da Silva (1921-1997)


Passei o Tejo à noitinha
e vi o Tejo calado,
trago um barco de papel
pró deitar no mar salgado.
Quando o barco se romper
deito no Tejo uma estrela
e a estrela branca lá fica
e nunca mais torno a vê-la...
Dizem os homens e mulheres
que nas águas deste Tejo
barra fora lá seguiram
camponeses do Alentejo
que nesse tempo sentiram
o que era a triste vida
feita de nada de nada
e por demais permitida...

Falam os homens mais velhos
que neste rio -ó desgraça! -
partiu barco e partiu povo
rumo a Timor e Mombaça
passando pelo mar alto
pró Bié e Tarrafal,
gente de boa presença
que nunca a ninguém fez mal!

Diziam os homens mais velhos
com espanto e em segredo,
que nas águas do rio Tejo
partiu gente pro degredo:
Timor, Bié, Tarrafal,
no tempo do Salazar
as barcas seguiam cheias
a navegar, a navegar,
com homens em cativeiro,
Timor, Bié, Tarrafal,
e regressavam com ferro,
coco, amendoim e sisal...

Passo o Tejo à noitinha
e já ninguém me faz mal!

Antunes da Silva (1921-1997)

Hernâni Matos

Poesia portuguesa - 120

 




Senhor vento
Antunes da Silva (1921-1997)


Senhor Vento, ó Senhor Vento,
já não me posso conter,
veio a seca, tanto sol,
que anda por aqui a fazer?

Vá-se embora Senhor Vento,
não são horas daqui estar,
não há trevo nem há água
para o gado apascentar.

Tudo seco, Senhor Vento,
ai que morte, que morrer,
não há suco nem há seiva,
cinco meses sem chover...

Se cá ficar, Senhor Vento,
não tempera, só destapa
os horizontes de nuvens,
não há chuva neste mapa.

Tape a chaga, Senhor Vento,
siga siga para o mar,
já lhe disse, vá-se embora,
não são horas daqui estar!

Dou-lhe um tiro, Senhor Vento,
se andar aqui mais um dia,
gira gira, fora fora,
mande a chuva, não se ria.

Obrigado, Senhor Vento,
Empurre a nuvens, agora,
isso mesmo, traga as águas!
De contente, a terra chora.

Antunes da Silva (1921-1997)

Poesia Portuguesa - 119

 



Quem vem lá?
Antunes da Silva (1921-1997)

Quem vem lá
que me chama?

O velho bufão
com faces de lama,
ou maltês perdido
sem casa nem cama?

- Quem vem lá
que me grita?

O ronco do grifo
que assusta e crocita,
ou a terra que geme,
minha irmã aflita?

- Quem vem lá
que me espanta?

A noite a nascer
que já se levanta,
ou eco de búzio
na minha garganta?

- Quem vem lá
que se esconde?

Larápio de jóias
disfarçado em conde,
ou rancho coral
ouvindo-se aonde?

- Quem vem lá
que me chama?

O velho bufão
com faces de lama,
ou maltês perdido
sem casa nem cama?

- Quem vem lá
que me grita?

O ronco do grifo
que assusta e crocita,
ou a terra que geme,
minha irmã aflita?

- Quem vem lá
que me espanta?

A noite a nascer
que já se levanta,
ou eco de búzio
na minha garganta?

- Quem vem lá
que se esconde?

Larápio de jóias
disfarçado em conde,
ou rancho coral
ouvindo-se aonde?

Antunes da Silva (1921-1997)

Poesia Portuguesa - 118

 



Juro nunca me render
Armindo Rodrigues (1904-1993)

Pela minha terra clara
e o povo que nela habita
e fala a língua que eu falo,
juro nunca me render.

Pelo menino que fui
e o sossego que desejo
para o velho que serei,
juro nunca me render.

Pelas árvores fecundas
que nos dão frutos gostosos
e as aves que nelas cantam,
juro nunca me render.

Pelo céu que não tem margens
e as suas nuvens boiando
sem remorso nem receio,
juro nunca me render.

Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.

Pelo sol e pela chuva
e pelo vento disperso
e pela plácida lua,
juro nunca me render

Pelas flores delicadas
e as borboletas irmãs
que nos livros espalmei,
juro nunca me render.

Pelo riso que me alegra,
com a sua nitidez
de guizos e de alvorada,
juro nunca me render.

Pela verdade que afirmo,
dos que a verdade demandam
até à contradição,
juro nunca me render.

Pela exaltação que estua
nos protestos que não escondo
e a justiça que os provoca,
juro nunca me render.

Pelas lágrimas dos pobres
e o pão escasso que comem
e o vinho rude que bebem,
juro nunca me render.

Pelas prisões em que estive
e os gritos que lá esmaguei
contra as mãos enclavinhadas,
juro nunca me render.

Pelos meus pais e meus avós
e os avós dos avós deles,
com o seu suor antigo,
juro nunca me render.

Pelas balas que vararam
tantos peitos de homens justos,
por amarem muito a vida,
juro nunca me render.

Pelas esperanças que tenho,
pelas certezas que traço,
pelos caminhos que piso,
juro nunca me render.

Pelos amigos queridos
e os companheiros de ideias,
que são amigos também,
juro nunca me render.

Pela mulher a quem amo,
pelo amor que me tem,
pela filha que é dos dois,
juro nunca me render.

E até pelos inimigos,
que odeiam a liberdade,
e por isso não são livres,
juro nunca me render.

Armindo Rodrigues (1904-1993)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 117

 



Firmeza
João José Cochofel (1919-1982)


Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.

Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.

João José Cochofel (1919-1982)

Poesia Portuguesa - 116

 



Canção do mestiço
Francisco José Tenreiro (1921-1963)

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro (1921-1963)