terça-feira, 23 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 118

 



Juro nunca me render
Armindo Rodrigues (1904-1993)

Pela minha terra clara
e o povo que nela habita
e fala a língua que eu falo,
juro nunca me render.

Pelo menino que fui
e o sossego que desejo
para o velho que serei,
juro nunca me render.

Pelas árvores fecundas
que nos dão frutos gostosos
e as aves que nelas cantam,
juro nunca me render.

Pelo céu que não tem margens
e as suas nuvens boiando
sem remorso nem receio,
juro nunca me render.

Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.

Pelo sol e pela chuva
e pelo vento disperso
e pela plácida lua,
juro nunca me render

Pelas flores delicadas
e as borboletas irmãs
que nos livros espalmei,
juro nunca me render.

Pelo riso que me alegra,
com a sua nitidez
de guizos e de alvorada,
juro nunca me render.

Pela verdade que afirmo,
dos que a verdade demandam
até à contradição,
juro nunca me render.

Pela exaltação que estua
nos protestos que não escondo
e a justiça que os provoca,
juro nunca me render.

Pelas lágrimas dos pobres
e o pão escasso que comem
e o vinho rude que bebem,
juro nunca me render.

Pelas prisões em que estive
e os gritos que lá esmaguei
contra as mãos enclavinhadas,
juro nunca me render.

Pelos meus pais e meus avós
e os avós dos avós deles,
com o seu suor antigo,
juro nunca me render.

Pelas balas que vararam
tantos peitos de homens justos,
por amarem muito a vida,
juro nunca me render.

Pelas esperanças que tenho,
pelas certezas que traço,
pelos caminhos que piso,
juro nunca me render.

Pelos amigos queridos
e os companheiros de ideias,
que são amigos também,
juro nunca me render.

Pela mulher a quem amo,
pelo amor que me tem,
pela filha que é dos dois,
juro nunca me render.

E até pelos inimigos,
que odeiam a liberdade,
e por isso não são livres,
juro nunca me render.

Armindo Rodrigues (1904-1993)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Poesia Portuguesa - 117

 



Firmeza
João José Cochofel (1919-1982)


Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.

Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.

João José Cochofel (1919-1982)

Poesia Portuguesa - 116

 



Canção do mestiço
Francisco José Tenreiro (1921-1963)

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro (1921-1963)

Poesia Portuguesa - 115

 




Poema da voz que escuta
Políbio Gomes dos Santos (1911-1939)

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Políbio Gomes dos Santos (1911-1939)

Poesia Portuguesa - 114

 




Notícias do Bloqueio
Egito Gonçalves (1911- 1969)


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval,
a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos…
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseia
aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.

Egito Gonçalves (1911- 1969)

Poesia portuguesa - 113

 




Queres viajar, Maria Flor?
Alves Redol (1911- 1969)

Viajar é correr mundo,
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da Terra
ou as ondas do Mar Alto…
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios,
e ribeiros
e pessoas
e lugares…
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros

Alves Redol (1911- 1969)

Poesia Portuguesa - 112

 



Menina fútil
Sídónio Muralha (1920-1982)


A menina fútil deu um bodo aos pobres;
pela primeira vez pôs avental…
Falou do gesto e seus intuitos nobres,
com palavrinhas brandas, o jornal…

– Os pobres ficaram pobres
e a menina fútil nunca mais pôs avental…

A menina fútil tem um cão de raça
que nunca saiu do quintal
e nunca viu uma cadela …
– Para a menina fútil, o seu cão de raça
deixou de ser um animal
e é um cãozinho de flanela …

… e a menina fútil tem um namorado
e atira-lhe promessas da janela …
Promessas … porque o resto era pecado
e pecar não é com ela …
(Fica sempre na rua, o namorado,
e é tão distante a janela…)

Mas a menina fútil tem um namorado;
tem um cão como feito de flanela;
e anda feliz por dar um bodo aos pobres
e ter descido a pôr um avental…
Lê e relê os seus intuitos nobres;
recorta o seu retrato do jornal;
– e os pobres continuam pobres,
e a menina fútil nunca mais põe avental…


Sídónio Muralha (1920-1982)

Hernâni Matos