sábado, 25 de junho de 2016

O rei vai nu!



Há por aí ditadores inchados, servidos por um séquito de serventuários de conveniência, instalados estrategicamente onde lhes dá jeito ter o cu. Uns e outros, julgam-se erradamente os donos disto tudo.
São tiranetes de pacotilha, nesta ópera bufa em que envergando o traje de mandarins, pensam que aos demais apenas compete a genuflexão, a vénia e o amem. Daí que erroneamente entendam usufruir do privilégio da arrogância, a qual é desprovida de qualquer sentido, no momento em que o barco começa a ir ao fundo.
Trata-se de uma atitude de desespero que alguns teimam em continuar a não querer ver, quando se torna impossível esconder que o rei via nu.


Hernâni Matos

quarta-feira, 22 de junho de 2016

52 - O aguadeiro – 3


Aguadeiro.
José Moreira (1926-1991).
Colecção particular.

Literatura portuguesa
A nível de prosa, a referência literária mais antiga que conheço relativa a aguadeiros, surge em Balthezar Telles na CHRONICA DA COMPANHIA DE IESU, NA PROVINCIA DE PORTUGAL (1645):“… era necessário hir com carro bufcar água, para o gafto do Collegio, & pera o meneyo das obras; era muito para ver quantos, por fe defprezar, ferviam de carreiros, & aguadeiros;…”. Segue-se outra em António José da Silva (O Judeu), na ópera joco-séria GUERRAS DO ALECRIM E MANGERONA (1737): “- SEMICÚPIO: Venha o pulso: está intermitente, lânguido, e convulsivo; oh menina, tomou as águas? - SEVADILHA: Ainda não veio o aguadeiro.”.
Um dos escritores que porventura utilizou mais vezes aguadeiros como personagens dos seus livros, foi Camilo Castelo Branco. A primeira referência surge em SCENAS DA FOZ (1857): “Lançou-se com impeto ao ar da janella, e viu na rua o aguadeiro que esperava a resposta.“. A mesma figura surge amiúde na obra camiliana em títulos como: AMOR DE PERDIÇÃO (1862), CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO (1862), A QUEDA D'UM ANJO (1866), OS BRILHANTES DO BRASILEIRO (1869), NOVELAS DO MINHO (1875-1877), O CEGO DE LANDIM in NOVELAS DO MINHO (1876), A BRAZILEIRA DE PRAZINS (1882).
Igualmente Camillo Marianno Froes, recorre à figura do aguadeiro em CARICATURAS Á PENNA (1862):“Nem faltaram as diligencias da criada e do aguadeiro.”.
Em Eça de Queiroz, a utilização de aguadeiros na composição dos enredos, remonta a O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA (1870): “Figurava-se-me que tudo se ria de mim, os candeeiros, os cães noctivagos, as pedras da rua, os numeros das portas, os letreiros das esquinas, os aguadeiros que passavam uivando com os seus barris, e os caixeiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo das tendas.”. Seguem-se outras em UMA CAMPANHA ALEGRE - Volume I, Capítulo XXIV – Três dias de insultos no parlamento (1871) e UMA CAMPANHA ALEGRE - Volume II, Capítulo XIII: As variadas reformas da Carta (1891).  
Ainda no séc. XIX há outros autores que incluem aguadeiros entre os seus personagens. Ramalho Hortigão - O NATAL MINHOTO in AS FARPAS – vol. I (1871): “Pela manhã entrava-lhe no quarto um aguadeiro, e despejava-lhe um barril de água pela cabeça abaixo: Era a sua toilette.”. Silva Porto - NA HORA FINAL (1875): “…sem um curso, nesta terra onde o meu aguadeiro tem um, completo;”.
No séc. XX, os aguadeiros continuam a povoar as obras dos nossos romancistas e contistas. Aquilino Ribeiro, primeiro em QUANDO AO GAVIÃO CAI A PENA (1935): “ – Tu não és Ibraim, o aguadeiro, pois não...? – Sou eu mesmo, pois quem havia de ser? Olha, olha, quebraram-lhe a infusa; onde deito agora a água?” e depois em LÁPIDES PARTIDAS (1945). Seguem-se escritores como Alves Redol - GAIBÉUS (1939): “Para o ceifeiro rebelde os brados dos aguadeiros assemelham-se a gritos de socorro no meio do incêndio. Sente-se mais abatido do que os outros, porque compreende as causas da angústia do rancho e sabe que os outros sofrem mais. Ele tem um norte. E os camaradas ainda não encontraram bússola. ‘Se todos a tivessem...’”. De salientar ainda a contista Luísa Ducla Soares - OS NOVE MANDRIÕES in O MEIO GALO E OUTRAS HISTÓRIAS (1976): “Avançavam tão alegre e despreocupadamente que quase iam embatendo num aguadeiro que puxava um carrinho com duas enormes barricas. Raras eram as casas que tinham água e ele, de porta em porta, ia abastecendo a povoação: Quem quer água bem fresquinha / para beber e refrescar?! / Os outros matam a sede, / eu mato-me a carregar. / - Os carregos são para os burros! Por que não vens divertir-te?  - Vou mesmo! Quem tiver a boca seca que vá encher bilhas à fonte.”.
No âmbito da poesia não posso deixar de referir Correia Garção - EPISTOLA I in OBRAS POETICAS (1778): “…Temo de sahir fora: Desta banda / Me empurra o aguadeiro, e de estoutra / Me atropela a Saloia c’o seu macho; / Hum vem á rédea solta no rabão, / Outro corre no coche á desfilada; /…”. Saliento igualmente João de Deus - MAL DOS PÉS in CAMPOS DE FLORES (1893): “…“E diga-me: em lavando os pés refina, / Ou sente algum alívio?” / – “Isso não sei, / Sei que tenho exaurido a medicina; / mas lavar é que nunca experimentei.” / Às vezes dá-se ao médico o dinheiro / Que se devia dar ao aguadeiro.”.

Hernâni Matos

terça-feira, 21 de junho de 2016

Aqui vai água!


 AGUA VAE!
Costume de Portugal.
 H. L'Evêque (1814).

Ao meu olheiro de estimação,
por via de um treçolho,
que me nublou o olhar


Camarada aguadeiro,
perdão, controleiro
de quando meto água,
sempre que esta transvaza
a geometria verbal
da infusa ortográfica:

Revista a química do texto
que se quer biológico,
sem ser insípido,
nem tão pouco inodoro,
proclamo finalmente:
- Aqui vai água!


Hernâni Matos

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Auto das esplanadas andantes


Casal na rua (1887).
Charles Angrand  (1854-1926)
Óleo sobre cartão (39 x 33 cm).
Musée d'Orsay, Paris.

A acção decorre há dois séculos atrás na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo, para onde se dirigem em romagem de profundo fervor religioso, as donas esplanadas, ilustres senhoras que têm andado nas bocas do nosso burgo transtagano.
Na nave central do vetusto Templo e sobressaindo dos demais fiéis, chama a atenção pelo ineditismo da situação e pelo espaço que ocupam, a presença de Dona Formosa, Dona Aliança, Dona Susana, Dona Russa, Dona Alentejana, Dona Águias, Dona Alecrim, Dona Mercearia, Dona Verde, Dona Dinis e Dona Buxa. A sua presença ali deve-se ao facto de terem mandado celebrar uma Missa de Acção de Graças, não só pelas graças já recebidas como a receber, o que as leva a desejar ao Regedor do burgo, uma longa vida, repleta de infindos sucessos pessoais.
É celebrante, o honorável Cónego Túlio, bem conhecido do rebanho de Deus, por numa altura de grave seca que a todos afligia, ter organizado uma Procissão para que chovesse. Infelizmente e apesar dos auspícios da Padroeira local, a chuva não estava nos desígnios do Senhor, pela que a seca continuou.
O vetusto Cónego enverga a sua mais vistosa casula e no início da Liturgia proclama com douta solenidade:
- Irmãos: Estamos aqui nesta Santa Casa para dar graças ao Senhor, por tudo o que de bom nos tem dado, o que inclui as esplanadas do nosso burgo. Que o Senhor com o seu infinito Poder e Sabedoria, dê longa vida ao Regedor que nos governa, para que este possa prosseguir sem interrupções, a obra meritória que incansavelmente vem desenvolvendo. Demos graças a Deus e oremos ao Senhor.
Depois da Comunhão, na qual participaram piamente todas as senhoras donas esplanadas, estas sentiram-se mais confortadas espiritualmente, pelo que depois do Clérigo se ter retirado para a Sacristia e após alguns momentos de reflexão interior, saíram do Templo, permanecendo todavia no adro. Ali deram vazão a uma alegria sem limites, osculando-se repenicadamente, em sinal de mútua, sonora e incomensurável afeição. Depois, cada uma desfiou o rosário das suas reclamações e do direito que lhe assiste ao terrado. Excluindo algumas particularidades, a razão de peso invocada e que é uma causa comum que as une, constitui um esperado corolário daquele conclave:
- A gente tem que se governar. A iniciativa privada é que sabe! Graças a Deus que o Regedor nos apoia. Há quem diga que violamos o Código da Estrada. Qual Código da Estrada, qual carapuça? Isso é invenção da firma Jerónimo Martins e Costa, Lda., que por ter posição maioritária, se julga dona disto tudo e entende que a razão está do seu lado. Só pensa no sector público, em detrimento da iniciativa privada. Mas está enganada. Aqui quem manda é o Regedor. Ponto final, parágrafo.
O sol já ia alto, pelo que alguém foi de opinião, que deviam regressar aos respectivos terrados, a fim de fazer pela vida e recuperar as despesas da Missa.
Como Fernão é frequentador da estalagem do Jorge, a senhora Dona Alentejana foi mandatada para lhe dar conhecimento de todos estes factos, a fim de que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através do jornal onde cronista é.
Só então as donas esplanadas, senhoras ilustres do nosso burgo, dali saíram pelo seu pé e em boa ordem, em direcção ao terrado, o qual já não é público, mas é delas. A partir de agora, nada vai ser igual. Aquela Missa de Acção de Graças, funcionou como Congresso Constitutivo da UBER – União Benfazeja das Esplanadas Regedorais. Na sequência dele, as esplanadas irão ficar de pedra e cal, para gáudio de uns e desespero de outros. 

terça-feira, 7 de junho de 2016

51- O aguadeiro - 2


Aguadeiro (Anterior a 1990).
Liberdade da Conceição (1913-1990).
Colecção particular.

Deveres dos aguadeiros de Estremoz
Os aguadeiros de Estremoz tinham deveres fixados por Posturas Municipais. As mais antigas conhecidas, referentes à utilização da água, remontam a 1852 e são em número de catorze, englobadas sob a epígrafe “Policia das Fontes, Chafarizes, Lago e Tanque da Communa”. Quatro dessas posturas são relativas a aguadeiros e vou reproduzi-las na totalidade: “- Postura nº 45: A limpeza das fontes, chafarizes e tanque da rua da levada, pertence ao zelador avençado com a Camara, com a coadjuvação dos aguadeiros, sob a inspecção da Camara. Sendo commetedor de abuzo, o primeiro pague por cada vez 3.000 réis e os segundos por cada vez, 500 réis cada um. - Postura nº 46: Os aguadeiros tragam campainhas nas bestas sob pena de 300 reis. - Postura nº 47: Aguadeiros que no caso d’incendio dentro da Villa não compareção logo com agua ao primeiro sinal dado pelo toque do sino da Camara, paguem de multa cada um 2.000 réis. - Postura nº 47 B: Aguadeiros que sejam encontrados enchendo nas fontes sem ser da agua que corre nas bicas (onde as há) paguem de multa 300 réis.”.
Merecem especial destaque as posturas confeccionadas em sessão camarária de 10 de Dezembro de 1854 e aprovadas pelo Conselho de Distrito, em sessão de 31 de Maio de 1855. Estas posturas continham um total de noventa e dois artigos a regular a vida dos habitantes do concelho de Estremoz, sendo que 10 deles se referiam à utilização das águas públicas potáveis de fontes, chafarizes, tanques e levada pública. O artigo 13º é específico dos aguadeiros e vou transcrevê-lo na íntegra: ”Aos aguadeiros incumbe o seguinte: 1º Devem trazer nas bestas campainhas ou chocalhos, e conservar em aceio as fontes publicas. 2º Só podem tirar a agua da Fonte Nova, Fonte do Jardim e Fonte das bicas, salvas as excepções que a camara determinar, por alguma circumnstancia extraordinaria. 3º Nas fontes em que a agua correr por bicas, só as estas devem encher. 4º No caso de incendio, são obrigados a apresentar-se logo no logar deste, e a promptificarem-se a todas as ordens que lhe forem dadas pela autoridade competente. Os que obrarem em contrario incorrem, no primeiro caso, na pena de cem réis; no segundo, na de seis centos réis; no terceiro, na de duzentos e quarenta réis; e no quarto, na de dois mil e quatrocentos réis.”
A análise comparativa das posturas de 1852 e de 1855, mostra que estas últimas desobrigaram os aguadeiros de participar na limpeza das fontes, chafarizes e tanque da rua da levada. Deixaram igualmente de ser penalizados pela ausência de chocalhos ou campainhas nas bestas, bem como pelo enchimento nas fontes sem ser da água que corre nas bicas. Por outro lado, a não comparência imediata no local de incêndio é desagravada de 2.000 para 100 réis na primeira vez, mas é sucessivamente agravada em caso de reincidência, até atingir o montante de 4.000 réis na quarta vez.
Mais tarde, em sessão camarária de 11 de Julho de 1875, foi feita uma postura adicional, visando “regular a boa policia municipal com relação a aguas, e com manifesta vantagem dos habitantes do Município”. Esta postura, aprovada pelo Conselho de Distrito em sessão de 14 de Julho de 1875, consta de 3 artigos que traslado integralmente: “Art. 1º.: É proibido ir ás fontes e chafarizes desta villa buscar agua em pipas, ou outras vasilhas de capacidade superior a trinta e seis litros, sob pena pena de dois mil e quinhentos reis pela primeira vez, e de cinco mil reis por cada reincidencia. § Único: É permitido ir ao lago desta villa buscar agua em vasilhas de capacidade superior a trinta e seis litros, com tanto que não encham da bica ou vieira do mesmo lago. Artº 2º.: Ninguem poderá encher nas indicadas fontes e chafarizes, de cada vez, mais de oito vasilhas de capacidade não superior a trinta e seis litros, sob pena de quinhentos reis. Art. 3º.: As presentes posturas começarão a vigorar desde o dia seguinte ao dia da sua publicação.”
Tudo leva a crer que a obrigatoriedade dos aguadeiros compareceram prontamente com água aos incêndios, só tenha cessado com a criação dos Bombeiros Voluntários de Estremoz, no segundo semestre de 1933.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Auto da Feira


UMA FEIRA MEDIEVAL
Gilles de Rome, Livre du gouvernement des Princes.
Françe, siecle 15. Paris, BnF, Arsenal 5062 fol. 149 v.

O entrecho decorre há dois séculos atrás no nosso burgo, mesmo em frente da Casa das Leis, na praça Luís de Gamões, que confina com a rua da Paróquia. Aí se avistam os personagens do auto, em número de seis e com perfil que passamos de imediato a descrever:
- CARLOS TUNA: Historiador. Conversador nato e orador eloquente. Identificado com o bloco da Abrilada, é um defensor acérrimo da causa oliventina.
- CARMELO ALTURAS: Avantajado de corpo, mais em altura que em largura. Vozeirão tonitruante que lhe agita o bigode à mongol, grisalho como o cabelo. Recolector nato, é frequentador assíduo de bibliotecas e arquivos. Tem uma apetência especial por coisas de outros tempos, as quais considera marcas identitárias que urge preservar.
- LÉRIAS: Anafado, baboso e bastante reaccionário. Especialista em distorcer realidades para as adequar às suas conveniências.
- FIRMINA TAUTAU: Mulher peituda e refilona. Na sua boca, as palavras são armas com que zurze os prevaricadores, à mesma velocidade com que distribui tabefes.
- FERNÃO: Mensageiro da comunidade como cronista ao serviço do povo.
- FRANCISCO TRÁS: Sargento-Mor jubilado, heróico participante da Abrilada e estudioso de assuntos militares.
O auto compõe-se de uma cena única, fácil de ser sintetizada. Fernão e Carmelo Alturas transitam pela rua da Paróquia e acabam por desembocar na Praça Luís de Gamões. Aqui, frente à Casa das Leis, encontra-se um grupo constituído por Lérias, Firmina Tautau, Francisco Trás e Carlos Tuna. Este último, com a desenvoltura que lhe é peculiar, dirige-se aos presentes, dizendo:
- Meus amigos: A feira medieval animou o clero, a nobreza, os militares, os mercadores e a arraia-miúda. Sobretudo esta última, que nestes dias esqueceu os problemas que a atormentam no dia a dia. Mas em termos de concepção, a feira apresentou um crasso erro de contextualização, quando envolveram na feira, as figuras da Rainha Santa e de D. Diniz. É que a Rainha Santa Isabel morreu em Estremoz em 1336 e a I Feira Medieval de Estremoz, teve lugar 127 anos depois, entre 20 e 30 de Junho de 1463, já na 2ª Dinastia. Tudo graças a carta de mercê datada de Estremoz aos 25 de Janeiro de 1463, concedida por D. Afonso V, que nesse sentido tinha sido solicitado pelos oficiais e homens-bons do Concelho, no decurso da sua permanência em Estremoz, na última quinzena de Janeiro desse ano. De salientar também que em 1463 era inexistente o culto oficial à Rainha Santa, o que só aconteceu após a beatificação concedida em 1516 pelo Papa Leão X, por solicitação de D. Manuel I.
E acrescenta ainda:
- Estão a ver que houve aqui uma grandessíssima trapalhada. E não se percebe bem se quiseram que a Rainha Santa e D. Diniz viajassem para o futuro ou se pretenderam que as feiras medievais tivessem começado mais cedo, assim numa espécie de “Oh tempo, volta para trás!”. De qualquer maneira, o que fizeram foi albardar o burro à vontade do dono, dando um grandessíssimo pontapé no cu dos cartapácios de História.
Carmelo Alturas entende também dar conta do que lhe vai na alma, proclamando:
- Trovadores não houve e jogos medievais também não. Quanto a actividades gímnicas, só as de rapa o tacho e com o púcaro bem cheio de vinho, bota acima e bota abaixo.
Lérias, eufórico, acha que é a altura própria para falar:
- Eu cá gostei da feira. Até fiquei arrelampado de ver as bailarinas com as pernas ao léu. Aquilo era só carne fresca. Foi um regalo para a vista, como já não tinha há muito.
Firmina Tautau interrompe-o, vociferando:
- Cale-se seu velho tarado. Se volta a dizer outra baboseira, chego-lhe a roupa ao pêlo, que é para ver se aprende a ter respeito pelas mulheres.
Fernão concilia, afirmando:
- Tenha calma mulher, que aquilo foi a memória da juventude a vir-lhe à flor da pele. Vai ver que lhe passa num instante.
Ouvindo isto, Firmina Tautau replica:
- Bom. Vamos lá a ver se ele tem tento na língua. De contrário temos o caldo entornado.
Francisco Trás, até aí silencioso, entende que é chegada a altura de se pronunciar:
- Eu até gostei. Os apontamentos militares foram soberbos. O orgulho, o garbo e o pundonor militares, levaram a tropa a dar o melhor de si própria. Fiquei reconfortado depois de assistir a toda aquela espadeirada. E é tudo o que tenho para dizer.
Ouvindo isto, Fernão conclui:
- Vou-me embora meus amigos, que já os ouvi a todos. Tenho que dar à perna, senão não posso dar à pena.
E dito isto, retira-se, a fim de lavrar uma crónica que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através dum jornal onde cronista é.


quarta-feira, 25 de maio de 2016

50 - O aguadeiro - 1


Aguadeiro (1959).
Mariano da Conceição (1903-1959).
Colecção particular.

Aguadeiros
Nas aldeias e vilas, as mulheres iam às fontes encher os cântaros de barro, os quais transportavam depois à cabeça, equilibrados miraculosamente pela sogra, que a maioria das vezes não era mais que uma rodilha enrolada em forma de anel.
Nas cidades, existiam aguadeiros, proprietários de carro com grade para transporte de cântaros, puxados por muar ou por burro. Igualmente os havia com recursos mais rudimentares. Havia quem transportasse os cântaros em cangalhas de madeira, assentes no lombo das bestas. Havia também aqueles que nem besta tinham e efectuavam o transporte dos cântaros em carros de mão, que eles próprios empurravam. Os cântaros utilizados eram geralmente em zinco, para não partirem e, com tampa, para não entornarem. Cada aguadeiro tinha, de resto, a sua própria rede de clientes certos, que eram abastecidos a partir da fonte que frequentava.
Em Estremoz eram os aguadeiros que asseguravam a distribuição domiciliária de água, o que constituiu prática corrente até à inauguração da rede pública de abastecimento de água, em 26 de Maio de 1952. Na actualidade, o abastecimento é assegurado pelo sistema aquífero Estremoz-Cano, com uma área total de 202,1 Km2 e que se alonga segundo uma direcção NW-SE entre a região do Cano e o Alandroal, sendo constituído, principalmente pelo chamado anticlinal de Estremoz e pela aplanação do Cano.
Fontes de Estremoz
Embora delas já não corra água, existem ainda na parte baixa da cidade, as fontes onde se abasteciam os aguadeiros: - FONTE DAS BICAS, construída em data desconhecida do séc. XVI e que teve contíguo um tanque de lavagem, que o Município de 1905 transferiu para o Lavadouro Público; - FONTE DO HOSPITAL DE SÃO JOÃO DE DEUS, mandada construir pela Câmara de 1834, no muro contíguo à ermida de São Brás e que a edilidade de 1901 ordenou que fosse removida para o local onde actualmente se encontra; - FONTE DO ESPÍRITO SANTO mandada construir pelo Senado de 1834 e que chegou a ter chafariz para animais de carga e sela. Nos anos sessenta do século passado, o chafariz foi sacrificado ao pseudo progresso, já que foi arrancado a fim de facilitar a circulação automóvel; - A FONTE DOS CURRAIS, situada na Rua Brito Capelo (antiga Rua dos Currais) e que foi mandada construir pela Câmara Municipal em 1907; - FONTE DO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO, subterrânea, situada no exterior e datada de 1702.
A referência mais antiga que conheço relativa a fontes e à água de Estremoz, é de 1726 e aparece no “Aquilegio Medicinal”, de Francisco de Fonseca Henriques: “Na Villa de Eftremoz, e no seu termo ha tantas, e tão excelentes agoas, que parece um retalho da Provincia de Entre Douro, e Minho; porque no rocio da dita villa há duas fontes, huma a que chamaõ das Bicas, e outra a que chamaõ Fonte Nova, ambas de agoa admirável e abundantiffima; (…)”. A existência destas fontes é confirmada nas “Memórias Paroquiais de 1758”, que referem ainda a existência da chamada Fonte da Gafaria, a pouca distância da ermida de São Lázaro.