terça-feira, 26 de novembro de 2024

Os Bonecos de Estremoz e a representação do olhar

 

Senhora de pezinhos. Ana das Peles (1869-1945). A representação do olhar
é feita através da menina do olho e da sobrancelha. Já Mestre Mariano da
Conceição (1903-1959), que lhe sucedeu na recuperação da extinta tradição
dos Bonecos de Estremoz, empreendida a partir de 1933 pelo escultor José
Maria de Sá Lemos (1892–1971), utiliza a menina do olho, a sobrancelha e a
pestana na representação do olhar. Colecção do autor.

A representação do olhar na barrística de Estremoz ao longo dos tempos é diversificada, como nos revela a observação atenta dos inúmeros exemplares existentes no Museu Municipal de Estremoz.

A menina do olho está sempre presente. Alguns exemplares só representam a menina do olho encimada pela sobrancelha. Todavia há outros nos quais a menina do olho está coroada pela sobrancelha e pela pestana, que podem revelar-se rectilíneas ou encurvadas, podendo a sobrancelha ser ou não tangente à menina do olho. Para além disso, há exemplares que apresentam a menina do olho inserida num globo ocular, que pode ou não ter fundo branco.

A representação do olhar na barrística de Estremoz tem a ver com o estilo próprio de cada barrista, que é o mesmo que dizer que tem a ver com as marcas identitárias que lhe são inerentes e os diferenciam doutros barristas. De resto, um mesmo barrista na procura do seu próprio caminho, pode recorrer a representações distintas do olhar ao longo da sua actividade.

Pode-se gostar mais duma representação do olhar que doutra, mas todas são igualmente legítimas, porque todas integram o “corpus” da representação do olhar ao longo do período multisecular de produção dos Bonecos de Estremoz. Como tal não é aceitável que alguém, seja quem for, em nome de não sei quê, queira proscrever as representações do olhar que não sejam do tipo “dois riscos por cima da menina do olho”. Digo-o como coleccionador e investigador dos Bonecos de Estremoz, com a autoridade que advém da colecção que até hoje consegui reunir e dos estudos efectuados até ao presente. É essa autoridade que me leva a respeitar o estilo próprio de cada barrista, fruto das suas próprias marcas identitárias e a gostar do estilo de cada um, logo de todos. Por outras palavras, gosto dos Bonecos de Estremoz de todos os nossos barristas.

Sá Lemos trocando impressões com Ana das Peles numa sala de aulas da Escola Industrial
António Augusto Gonçalves. Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988), publicada no
semanário estremocense “Brados do Alentejo” nº 250, de 10 de Novembro de 1935. Arquivo
fotográfico do autor.

Apresentação do livro OS MISTÉRIOS DE OLIVENÇA de Carlos Luna



CONVITE
Carlos Eduardo da Cruz Luna, autor do livro "Os Mistérios de Olivença", vem, por este meio, convidá-lo(a) ]a estar presente no lançamento do seu novo trabalho literário, com o título referido, no dia 1 de dezembro de 2024, às 15:30, na Sociedade de Artistas Estremocense, Largo General Graça [Gadanha], 37 - Estremoz.
Certo que já ouviu falar muito de Olivença. Um mito da nossa História. Uma causa nacional. Uma anedota ocasional. Será tudo isso e muito mais. Ou não.
Pelo menos que conheça as maravilhas arquitetónicas de Olivença, todas elas portuguesas É essa informação que este livro lhe procura transmitir.
Agradeço a sua presença.

SINOPSE
Um grupo de jovens estudantes oriundos de Lisboa dirige-se a Mérida, numa excursão, a fim de visitar as suas ruinas romanas. Um engano na organização deixa um grupo de fora desse destino. Os organizadores, em Elvas, conseguem, com a ajuda de autoridades locais, encontrar uma alternativa. E eis um autocarro a caminho de Olivença, sem saber o que ia encontrar.
Olivença revela-se uma surpresa. Os seus monumentos e o traçado das suas ruas revelam a grandiosidade de um passado português pouco falado e menos ainda conhecido. Numa área relativamente reduzida, sucedem-se um museu, uma torre de menagem, um castelo dionísio e duas igrejas, uma das quais em puro estilo manuelino. Tudo isto e mais alguns marcos históricos são descobertos por um surpreendido grupo de estudantes, que não cabem em si de espanto.
No meio de tanta monumentalidade, haverá ainda um crime por desvendar e caberá aos jovens da capital.

domingo, 24 de novembro de 2024

A matança do porco


 A matança do porco (frente). José Moreira (1926-1991).  

A matança do porco (trás). José Moreira (1926-1991).


BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
A matança do porco, misto de ritual pagão e de festa iniciática, integra o imaginário popular, pelo que não poderia deixar de estar presente na barrística popular estremocense. O exemplar aqui apresentado sob diversos ângulos, foi adquirido no Mercado das Velharias, em Estremoz, no passado sábado, dia 9 de Abril e é da autoria do consagrado barrista José Moreira, falecido em 1991. Passo de imediato à sua descrição.
Trata-se de uma peça constituída por quatro figuras. A figura central é um porco branco assente numa bancada de pau e preso por dois homens. O da esquerda agarra com as duas mãos a parte traseira do animal. O da direita sustém o focinho do bicho com a sua mão esquerda, enquanto que com a direita agarra a faca que espetou nas goelas do cevado, até ao coração. A quarta figura é uma mulher agachada junto a um alguidar de barro vidrado, assente por debaixo das goelas do condenado, onde é recolhido o sangue que dele espicha e que a mulher revolve com um pau, para não coalhar.
Os homens usam na cabeça, o típico chapéu aguadeiro, característico do Alentejo. O calçado é preto e vestem um fato de macaco azul-escuro, por debaixo do qual usam uma camisa creme, rematada em cima por um par de botões amarelos. As mangas têm punhos e uma fieira lateral de três botões, todos cor de colorau. E, porque a matança é feita de Inverno, os homens protegem o traseiro, com uma pele de borrego, amarrada à cintura.
A mulher, ornamentada com arcadas nas orelhas, tem a cabeça coberta por um lenço azul-aço, com pintas cor de colorau. O vestido desta cor, tem gola, cinto e uma barra azul-aço. Em cada manga, um punho e uma fieira lateral de botões da mesma cor.
Aos pés do matador, o saco de cabedal onde transporta as facas.
O chão onde assentam todas as figuras é verde, pintalgado de branco, amarelo e cor de laranja, numa alegoria à matança ao ar livre, num chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres.
É de salientar que a matança do porco é das composições mais ingénuas da barrística popular estremocense. Como facilmente compreenderão pela descrição que adiante fazemos da matança do porco, ninguém consegue matar o porco tal como é representado pelos nossos barristas. Na verdade, além de ser preciso amarrar as pernas e o focinho do porco, o matador precisa da ajuda de 3 ou quatro homens possantes, a segurar o porco.
A matança do porco tal como é figurada por José Moreira apresenta três diferenças fundamentais em relação ao modo de representação de Mariano da Conceição e de seus seguidores Sabina Santos, Liberdade da Conceição, Maria Luísa Palmela e Irmãs Flores, como se pode ver comparando com a matança do porco executada por estas últimas. No figurado de José Moreira, o porco não é porco preto, mas porco branco. Na mesa da matança, o porco está em posição inversa em relação aquela que é habitualmente representada, o que dificultaria a matança, já que o matador em vez de segurar o focinho do animal com a mão esquerda, o que faz é usá-la para afastar para trás a pata dianteira do animal, que está para cima. Isso quando são só três homens a segurar o porco e visando espetar a faca com mais segurança e precisão. Finalmente na figuração de José Moreira, os homens envolvidos na matança, em vez de usarem barrete, como no início do século XX ainda era corrente no Alentejo, usam o tradicional chapéu aguadeiro, típico do Alentejo. E não é só aqui. Em todos os bonecos em que Mariano da Conceição pôs um barrete na cabeça da figura, José Moreira enfiou-lhes um chapéu aguadeiro, de aba larga, que o sol no Alentejo não é para brincadeiras, como está registado no cancioneiro popular alentejano:

"Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu,
O Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu."

A CRIAÇÃO DO PORCO
Desde tempos remotos que o porco integra a dieta alimentar das gentes de Além Tejo. Uma dieta alimentar com base naquilo que a Terra-Mãe dá, fortemente centrada no uso do pão e no recurso a ervas aromáticas que conferem requintados odores e sabores à frugalidade daquilo que muitas vezes se come.
Da Terra-Mãe provêm as landes e as bolotas que nos montados de sobro e azinho, alimentam o porco preto, de inconfundível sabor.
Mesmo nos tempos de miséria, das jornas de sol a sol, com uma alimentação, a maioria das vezes miserável e que era fornecida pelo próprio Senhor da Terra, o camponês alentejano não deixava de comer carne de porco, nem que fosse um simples naco de toucinho cozido ou umas rodelas de chouriço, usados como conduto do sempre omnipresente pão.
Tradicionalmente, a alimentação do porco alentejano é feita através do recurso à pastorícia. Nela, as porcas parideiras andam em varas de 40 a 60 cabeças, seguidas por varrascos (porcos de cobrição), na proporção de um macho para cada seis fêmeas.
As porcas criam duas vezes por ano. Normalmente uma em Setembro e Outubro (criação montanheira) e a outra em Março e Abril (criação erviça).
Cada fêmea pare cinco a seis bácoros, que após a parição são abrigados em malhadas, alojamentos constituídos por duas séries de casinhotas quadradas (quartelhos), com portas para uma espécie de pátio.
Os bácoros montanheiros mamam durante dois meses e são desmamados em Dezembro, alimentando-se a cevada ou milho, em Janeiro. Se a produção dos montados foi boa, comem lande ou bolota, em Fevereiro. Depois voltam a comer cereais até Abril ou Maio, quando a erva tenra abunda. Quando esta começa a escassear, tornam ao regime de cereais até Julho, altura em que vão para os agostadouros, onde comem do pasto que ficou, depois de ceifados os campos. Aí se conservam até irem para os montados, em Outubro.
Os bácoros erviços mamam igualmente dois meses e são desmamados em Junho, alimentando-se de erva e em Julho, vão também pastar para os agostadouros, até ingressarem igualmente nos montados, em Outubro.
A engorda porcina no montado é conhecida por montanheira e principia em Outubro, quando por estar madura, já há muita lande ou bolota, que tombou das árvores. A ceva dura cerca de três meses, período durante o qual cada animal aumentou em média cerca de cinco arrobas. Depois da ceva estão capazes de vender.
Para além da criação em regime de pastorícia, o camponês alentejano adquiriu o hábito de criar o seu próprio porco numa pocilga junto ao monte. Para tal, após cada matança, compra um bácoro acabado de desmamar, a alguém que seja dono de uma porca parideira. É esse bácoro que vai ser engordado na pocilga familiar, com tudo aquilo a que é possível recorrer em cada momento: lande ou bolota, erva, batata, beterraba, tomate, pimentão, fruta, cascas de batata, de fruta, de favas, de ervilhas, farinha de milho, farinha de cevada, farelos, etc.
O bácoro, cedo é capado pelo capador, que lhe corta os testículos se for macho ou os ovários se for fêmea. Esta amputação genital visa tornar a carne de porco mais saborosa e permitir que o animal engorde mais.
A criação do porco faz parte da economia doméstica das gentes do campo, que o acaba por sacrificar para que a família sobreviva. Bolota, porco e alentejano, são os elos de uma cadeia alimentar de séculos. A matança do porco feita pelos alentejanos é, pois, consequência dessa trindade campestre. Mas é igualmente um ritual colectivo que se repete ciclicamente e que envolve todos os membros de uma família, os amigos e os vizinhos, mesmo os mais pequenos que aí recebem a sua formação iniciática, participando em pequenas tarefas, orientados pelos mais velhos. E é um ritual que apesar de modificações técnicas de pormenor, tem resistido ao relógio do tempo, já que é intenso o convívio que proporciona e apelativa a gastronomia que lhe está associada.
A MATANÇA DO PORCO
Com a chegada do frio vem o tempo da matança do porco, já que antes da existência de arcas frigoríficas, o frio, assim como a salga e o fumeiro, eram os únicos processos de conservação da carne que era consumida ao longo do ano, cumprindo assim um papel fundamental na mantença das famílias rurais.
Por alegadas razões sanitárias e em nome de uma normalização imposta pela União Europeia, a matança tradicional do porco foi ilegalizada e passou a punir-se quem a praticar. Tratou-se de uma forte machadada na nossa identidade cultural, pelo que os alentejanos, orgulhosos das suas tradições ancestrais, fizeram orelhas moucas às proibições de Bruxelas e lá continuaram a matar o porco, como sempre o fizeram. Lá diz o rifão: “Para palavras loucas, orelhas moucas”. Por outras palavras: “A ASAE que vá bugiar!”
A matança do bicho, em jejum desde o dia anterior, para ficar limpo, será executada por um homem experiente, o matador, que se faz acompanhar de diversas facas e de um machado, os quais irá utilizar na matança e desmancho do animal.
Quando começa a função, meticulosamente preparada, quatro homens possantes que desempenham o papel de ajudantes do carrasco, põem o bicho, bem apernado, em cima duma, muitas vezes improvisada, mesa de abate. Antes de ser posto em cima da mesa, o animal viu o seu focinho amarrado com uma corda para não morder. Por outro lado, as duas pernas de trás foram amarradas à perna da frente que fica para baixo, para que o bicho não possa espernear. Só uma perna fica livre e essa é segurada com força e empurrada para trás pelo matador, quando este com um golpe rápido e certeiro, enterra a comprida faca matadeira nas goelas do bicho, em direcção ao coração. Apesar de tudo e mesmo antes de ser esfaqueado, o animal esperneia e causa um enorme chinfrim, como se adivinhasse o fim que o espera. Com a estocada do matador, o animal ainda guincha mais, ao mesmo tempo que tem espasmos violentos na sua luta derradeira. Mas, logo começa uma rápida agonia, ao mesmo tempo que se esvai em sangue e acaba por morrer.
Do porco tudo se aproveita, a começar pelo sangue que se apara num alguidar de barro, preparado para o efeito com sal e vinagre, que é agitado com uma colher de pau, para não coalhar.
Morto o animal e espichado todo o sangue, o bicho é chamuscado com fachos de rosela ou de esteva a arder, para queimar o pêlo todo e a porcaria da superfície da pele. Segue-se uma raspagem com a raspadeira para extrair toda a sujidade, sucedendo-se uma lavagem com vários baldes de água, até o animal ficar com o couro, todo muito bem limpo, antes de ser aberto. Trata-se assim, de uma operação minuciosa e necessariamente demorada.
A ABERTURA
Seguidamente, o matador faz um rasgo na pele que precede os tendões das patas traseiras do animal. Por aí, o bicho é suspenso no chambaril, pau arqueado, dependurado por uma corda numa trave mestra da casa. Só depois abre o porco com um golpe longitudinal, consumado do rabo para a cabeça. Trata-se de uma operação que exige extrema atenção e precisão, não vá a faca usada, perfurar alguma tripa e deitar muito do trabalho a perder. O golpe corta apenas o couro do animal. Depois. com todo o cuidado, o matador vai cortando o que está por baixo até chegar às vísceras. Tira então o osso do peito, com o qual sai a língua e, tira o bofe, o coração e o fígado que são postos num alguidar de barro e vão ser migados, para conjuntamente com o sangue, serem utilizados na confecção de cachola, consumida nesse dia à hora do jantar.
Seguidamente tira as tripas, o buxo e a bexiga, que são postos num tabuleiro de madeira e vão ser lavadas pelas mulheres, com água corrente, para serem depois utilizadas no fabrico de enchidos. Para tal, têm que ser preparadas primeiro.
Aliviado das vísceras, o interior da carcaça é lavado com água nos locais em que tem sangue, ficando depois a arrefecer dum dia para o outro, protegido por um pano.
O DESMANCHO
No segundo dia da matança, procede-se ao desmancho do animal, o qual é cortado nas suas múltiplas partes: presuntos, mãos, orelheiras, queixos, segredos, plumas, tiras, etc. É do interior que saem os lombos para fazer as paias e a carne entremeada para os chouriços. Quanto à pele do lombo do animal e a camada de gordura subjacente, dão o toucinho, que vai ser curado na salgadeira.
Do resto da gordura do porco faz-se a banha, gordura alimentar usada tradicionalmente no Alentejo. Esta é feita numa tigela de fogo de grandes dimensões, aquecida ao lume de chão em cima duma trempe de ferro. A gordura vai derretendo e é necessário estar sempre a mexer para não esturrar. Quando a gordura está toda derretida é vazada para dentro de uma grande panela, para onde é coada com um pano branco. Ali acabará por coalhar, originando a banha. O resíduo que fica na tigela de fogo constitui os chamados torresmos, os quais são muito apreciados.
As costelas e a espinha, são consumidos nos primeiros dias após a matança. Depois há os pés, as orelhas, a focinheira, as costeletas, os lombinhos, etc., etc. É um nunca mais acabar de peças, cada uma das quais recebe desde logo o tratamento adequado.
OS PRESUNTOS
As pernas do porco podem ser consumidas como carne fresca ou utilizadas na confecção de presuntos. Para tal, a perna de porco é toda esfregada com sal, alhos moídos e vinho branco, ficando um dia a macerar. No dia seguinte, é metida em sal, sendo-lhe posta por cima uma tábua, na qual se assentam pedras pesadas, ficando assim 30 dias. Depois é levemente fumada, para se conservar e barrada com uma mistura de massa de pimentão, colorau e azeite. Cerca de um ano depois, o presunto está capaz de ser consumido.
OS ENCHIDOS
No segundo dia da matança, as tripas retiradas do porco são cortadas pelas mulheres em bocados de cerca de meio metro e lavadas em água corrente. Seguidamente, são viradas do avesso com o chamado pau de virar tripas (pau com cerca de 50 cm de comprimento e 1 cm de diâmetro, perfeitamente liso e de pontas arredondadas, para não furar as tripas). Depois de viradas, as tripas são novamente lavadas, de modo a ficarem completamente limpas. Seguidamente, são temperadas com massa de pimentão, dentes de alho pisados, sal e rodelas de laranja. Ficam assim durante quatro ou cinco dias até à sua utilização, sendo nessa altura lavadas com água corrente para ficarem perfeitamente limpas. Igual tratamento é dado ao buxo e à bexiga do porco.
Se a quantidade de tripa não for suficiente, utilizam-se tripas de porco salgadas, provenientes dum matadouro, lavadas com muito cuidado em água quente e viradas e tornadas a lavar, as quais recebem depois o mesmo tratamento das tripas do porco que foi abatido na ocasião. Também se utilizam tripas de vaca, secas ou salgadas, que recebem igual tratamento.
No segundo dia da matança, as mulheres também migam as carnes que vão ser usadas nos enchidos, cada um dos quais vai ter a sua própria composição. As carnes migadas são distribuídas por alguidares de barro, correspondentes aos diferentes enchidos, levando cada um deles, o seu próprio tempero. Assim:
- Chouriços: carne entremeada, alho, sal e pimentão.
- Paios: carne entremeada, alho, sal e pimentão.
- Paias: carne do lombo, alho, sal e pimentão.
- Farinheira branca: gordura, farinha, pimentão, alho e sal.
- Farinheira preta: gordura, farinha, sangue, pimentão, alho e sal.
- Morcela: carne entremeada, sangue, alho, sal, cominhos e cravinho.
Estas carnes temperadas ficam em repouso durante quatro a cinco dias, para adquirirem o gosto do tempero. Só depois são utilizadas na confecção dos vários tipos de enchidos:
- Paias: utilizam as duas peles de igual nome, onde está a banha do porco.
- Paios: utilizam a porção de tripa conhecida por paio, assim como a bexiga.
- Chouriços: utilizam as tripas do porco.
- Morcelas: utilizam as tripas do porco e o bucho.
- Farinheiras: utilizam as tripas de vaca.
O enchimento é feito pelas mulheres durante um dia, com o auxílio de uma enchedeira. Esta é um pequeno funil, de tubo largo e curto que é enfiado numa das extremidades da tripa, que entretanto foi atada numa das extremidades com um bocado de fio de carreto em excesso. Enquanto a mão esquerda segura a tripa e a enchedeira, a mão direita vai tirando pedaços de carne do alguidar, que são postos na boca da enchedeira, de onde são empurrados para dentro da tripa, até esta estar cheia. Quando isso acontece, retira-se a enchedeira e ata-se a extremidade do enchido com a ponta do mesmo fio de carreto que serviu para fechar a outra extremidade. Este procedimento é válido para chouriços, morcelas e farinheiras. No caso dos paios, como a porção de tripa conhecida por paio, assim como a bexiga só têm uma abertura, é esta que é atada com fio de carreto no final do enchimento. Finalmente no caso das paias, antes do enchimento elas são cosidas com linha branca naquilo que será a parte debaixo. Depois do enchimento, a abertura é atada com fio de carreto.
Os enchidos serão curados, pendurados em fueiros, no fumeiro da descomunal chaminé tradicional, cuja lareira arde continuamente. Farinheiras e morcelas levam cerca de uma semana a curar, dependendo da intensidade do lume de chão, ao passo que chouriços, paias e paios, levam cerca de um mês.
AS COMEZAINAS DA MATANÇA
A matança do porco é uma festa comunitária que envolve familiares, vizinhos e amigos que nos dois dias da matança, comem em casa de quem mata o porco. Logo à chegada, de manhã cedo, os homens matam o bicho com copinhos de aguardente, acompanhados por figos ou bolos secos. E durante a manhã vão bebendo os seus copinhos de vinho com pão e paio da matança do ano anterior. No primeiro dia ao almoço é habitual comer febras do cachaço do porco, grelhadas, acompanhadas com verdura cozida e pão. Ao jantar come-se cachola com rodelas de laranja. Já no segundo dia, ao almoço, come-se canja de arroz com carne dos ossos do peito, feijoada de cabeça de porco e frigenada. Ao jantar repete-se a dose e ninguém se queixa. Tudo muito bem regado com vinho tinto. Lá haverá algum homem que se engana no número de copos que bebeu e começará a dizer umas graçolas, recebidas com uma risada geral. Alguém dirá então: “Todo o preto tem o seu dia!”
A FUNÇÃO SOCIAL DA MATANÇA
A matança do porco tem como função contribuir para o estreitamento dos laços de solidariedade na comunidade. Por um lado, os familiares, vizinhos ou amigos participam e ajudam na matança e no local da matança comem nos dias que ela dura. Por outro lado, persiste o hábito comunitário cuja origem se perde no tempo e que consiste em quem mata, dar um prato de carne aos lares mais chegados, para que todos possam provar da matança. Com esta simples dádiva de sete ou oito pratos de carne, num momento em que esta é excessiva, ganha-se carne durante sete ou oito semanas, pois quem recebe, retribui com um prato de carne, quando faz a sua própria matança.
SINOPSE DUM ADAGIÁRIO PORTUGUÊS DO PORCO
É rica a literatura oral sobre o porco, em particular o adagiário. Dele fizemos um sinopse que sistematizámos por temas:
Gestação do porco
- Três meses, três semanas, três dias e três horas, bácoros fora.
Criação do porco
- Bácoro de Janeiro vai com seu pai ao fumeiro.
- Em Janeiro, um porco ao sol e outro ao fumeiro.
- Leitão de mês, cabrito de três.
- O repolho e o cevão têm de ficar feitos de Verão.
- Porca capada já se não descapa.
- Porco de um ano, cabrito de um mês e mulher dos dezoito aos vinte e três.
- Porco que nasce em Abril vai ao chambaril.
- Tem o porco meão pelo São João (24/06).
Alimentação do porco
- A cada porco agrada a sua pousada.
- A mau bácoro, boa lande.
- A melhor espiga é para o pior porco.
- A pia é a mesma, os porcos é que mudam.
- Ao porco nunca lhe enjoa o chiqueiro.
- Com que sonhas porco? Com a bolota.
- Nunca sonha o porco senão com a pia.
- O menino e o bacorinho vão para onde lhe fazem o ninho.
- O pior porco come a melhor bolota.
- O pior porco come a melhor lande.
- O porco depois de comer vira a pia.
- O porco, no comer, é invejoso.
- Porco velho, já lhe não vai a bolota à tripa.
- Porcos com fome, homens com vinho, fazem grande ruído.
Economia doméstica
- Bácoro de meias não é meu.
- Bom gado é porco.
- Branco ou preto, um porco é um porco.
- Negociante e porco, só depois de morto.
- O comerciante e o porco só se conhece depois de morto.
- O rico e o porco, depois de morto.
- Ou magro ou gordo, aqui está o porco todo.
- Porco rabão nunca enganou o patrão.
- Quanto mais porco, mais gordo.
- Quanto mais porco, mais toucinho.
- Quem tem porco tem chouriço.
Matança do porco
- A cada bacorinho vem seu São Martinho (11/11).
- A cada porco chega o São Tomé (21/12).
- A cada porco vem o seu São Martinho (11/11).
- A vida do porco é curta e gorda.
- Cada porco tem seu Natal (25/12).
- Cada porco tem seu São Martinho (11/11).
- É melhor ser porqueiro do que porco.
- No dia de São Martinho (11/11), mata o teu porco e prova o teu vinho.
- Pelo Santo André (30/11) mata o porco pelo pé.
- Por São Lucas (18/10), mata os porcos e tapa as cubas.
- Se queres ver o teu corpo, abre o teu porco.
Enchidos
- Atar e pôr ao fumeiro, como o chouriço de preta.
- Chouriço, chouriço, quem não mata não tem disso.
- Que é isso?" - "Chouriço".
- Sem sangue não se fazem morcelas.
Consumo
- Frigir a carne de porco com a banha do mesmo porco.
- Não há sermão sem Santo António, nem panela sem toucinho.
- Peixe e cochino, vida em água, morte em vinho.
- Porco fresco e vinho novo, cristão morto.
- Um sabor tem cada caça, mas o porco cento alcança.
Insultos a outrem
- Matar porco e dar a bexiga.
- Nem sabe amarrar o focinho a um porco.
PRECONCEITOS
A gíria popular chama “porco” a alguém que não é limpo e “pau de virar tripas” a uma mulher magra. Quanto ao adagiário é cruel quando compara a mulher a um porco:
- No dia de Santo de Santo André (30/1), quem não tem porco mata a mulher.
A sociedade está eivada de preconceitos ancestrais, como uma mulher não dever assobiar. Daí o adágio:
- Mulher que assobia, ou capa porcos ou atraiçoa o marido.
Igualmente por superstição e preconceito primitivo se considera que durante a matança do porco, desde o desmancho até aos enchidos, as mulheres com menstruação não devem mexer na carne, para esta não se estragar. Tudo isto constitui barreiras mentais de que a mulher se vem corajosamente libertando.

Texto publicado inicialmente em 15 de Abril de 2013

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O Outono na Bíblia Sagrada


Alegoria ao Outono (c. 1740). Painel de azulejos que faz parte do conjunto das “Quatro Estações”,
situado na Quinta das Carrafouchas, Loures.

São múltiplas as referências bíblicas ao Outono:
- Eu dar-vos-ei chuva no seu tempo: chuvas de Outono e de Primavera. Deste modo, poderás recolher o teu trigo, o teu vinho novo e o teu azeite. (Deuteronómio 11,14)
- Pudesse eu reviver os dias do meu Outono, quando Deus era íntimo na minha tenda, (Jó 29,4)
- Quem armazena no Outono é prudente; quem dorme no tempo da colheita cobre-se de vergonha. (Provérbios 10,5)
- No Outono o preguiçoso não lavra, e na colheita vai procurar e nada encontra. (Provérbios 20,4)
- Não pensaram: "Vamos temer a Javé nosso Deus, que nos dá a chuva do Outono e da Primavera no tempo certo; e ainda estabeleceu as semanas certas para a colheita". (Jeremias 5,24)
- Alegrai-vos, filhos de Sião, e rejubilai em Javé, vosso Deus. Pois Ele mandou no devido tempo as chuvas do Outono e fez cair chuvas abundantes: as chuvas do Outono e da Primavera, como antigamente. (Joel 2,23)
- Irmãos, sede pacientes até à vinda do Senhor. Vede como o agricultor espera pacientemente o fruto precioso da terra, até receber a chuva do Outono e da Primavera. (São Tiago 5,7)
- São eles que participam descaradamente nas vossas refeições fraternas, apascentando-se a si mesmos com irreverência. São como nuvens sem água, levadas pelo vento, ou como árvores no fim do Outono que não dão fruto, duas vezes mortas e arrancadas pela raiz. (São Judas 1,12)

Publicado inicialmente a 10 de Outubro de 2012

Alegoria ao Outono (c. 1876). Painel de azulejos de Luís Ferreira,
o Ferreira das Tabuletas (1807-?). Cervejaria da Trindade, Lisboa.

Alegoria ao Outono (1922). Painel de azulejos, estilo Arte Nova,
do edifício das “Quatro Estações”, situado na Rua Manuel
Firmino, n.ºs 47 e 49, Aveiro.

sábado, 16 de novembro de 2024

Estórias do autor

 

Hernâni Matos (1946 - ). Desenho a carvão de Filipa da Silveira.


O presente texto integra o meu livro
publicado pelas Edições Afrontamento
no outono de 2018


Recolector
Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que sou recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da minha alma. Nessa conjuntura, tornei-me filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o meu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no Mercado das Velharias em Estremoz, no qual sou presença habitual e onde recolecto objectos que, duma forma virtual, pré-existiam no meu pensamento.

Coleccionador
Desde os dez anos de idade que transporto na massa do sangue o espírito de coleccionador. Marca genética ou atávica, não sei, mas que veio ao de cima lá por essa idade, veio. E é um facto tão real como o odor da flor de esteva ou o castanho da terra de barro.
Coleccionar é reunir num todo, objectos que têm, pelo menos, uma característica ou funcionalidade comum. A motivação para o fazer pode ser diversa, como distintas podem ser as consequências de uma colecção. Pode ficar guardada numa caixa ou arrumada numa prateleira de estante ou mesmo numa vitrina, como também pode ser objecto de estudo numa procura de respostas, desde sempre procuradas pela alma humana.
Há objectos que, pelos mais diferentes motivos, somos levados a coleccionar. E nenhuma colecção é estática, mas antes bem pelo contrário, dinâmica, uma vez que com o porvir há que a reformular, pelo aumento do grau de exigência imposto e mesmo fruto de uma certa especialização, os quais diminuem o espectro daquilo que se colecciona.

A cartofilia como trampolim para a Etnografia.
Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador e tenho-me dedicado a tópicos como a Etnografia Portuguesa, com especial incidência na Etnografia Alentejana. A Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os bilhetes-postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias. De resto, colecciono postais topográficos de todo o país, muito especialmente do Alentejo e predominantemente de Estremoz. O meu interesse pela Cartofilia estendeu-se à Fotografia, pelo que acabei por adquirir colecções de fotografias antigas, as quais servem para ilustrar temas sobre os quais me debruço e investigo.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são os Bonecos de Estremoz, os quais descobri há mais de quarenta anos. E digo que descobri, porque efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que antes de tudo são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem e as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.

A Bibliofilia como suporte para a Escrita
Sou bibliófilo há cerca de 50 anos, com interesses focalizados na Cultura Portuguesa, ainda que espraiados por uma vasta gama de sub-domínios: Arte Popular, Arte Erudita, Etnografia, Literatura de Tradição Oral, Poesia Popular, Poesia Erudita, Teatro, História de Portugal, História de Arte, História Local, Regionalismo, Monografias, Agricultura, Dicionários, Publicações Periódicas Nacionais, Imprensa local. Daí que possua na minha biblioteca pessoal a quase totalidade da bibliografia referida no presente livro.

Um corolário natural
Sou um homem de escrita e esta é um meio de que me sirvo para dar conta de tudo aquilo que me estimula a alma. Por isso, este livro é um corolário natural de um dos meus múltiplos percursos de vida, o de coleccionador e investigador da barrística popular de Estremoz. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

O carapuço na barrística popular estremocense (2ª edição)


Fig. 1 - Pastor a fazer as migas, sentado.
Peça da barrística popular estremocense,
da autoria das Irmãs Flores. 

Fig. 2 - Pastor a fazer as migas, deitado. Peça da barrística popular estremocense,
da autoria das Irmãs Flores. 

Fig. 3 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense,
da autoria das Irmãs Flores.

Esta é a 2ª edição do post O CARAPUÇO NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE, editado em 6 de Junho de 2011, agora revisto, reformulado e ampliado, com a introdução de mais uma oitava e uma quadra do cancioneiro popular alentejano, ligadas à temática do carapuço, bem como mais uma referência bibliográfica.

Há três peças do figurado de Estremoz, que representam camponeses de barrete na cabeça. São elas: “Pastor a fazer as migas sentado” (Fig. 1), “Pastor a fazer as migas deitado” (fig. 2) e “Matança do porco” (fig. 3). Algumas pessoas menos informadas, pensam tratar-se de representações abusivas, já que segundo elas, o barrete não seria característico do Alentejo. Estão redondamente enganadas, já que o barrete se usou literalmente em todo o país. Do Norte para o Sul e do Litoral para o Interior. Todavia, as imagens habitualmente veiculadas pelos nossos ranchos folclóricos, associam mais o barrete às zonas piscatórias (Póvoa de Varzim, Aveiro, Nazaré), bem como ao Ribatejo.
Há que esclarecer o assunto duma forma aprofundada e duma vez por todas, o que faremos duma tríplice maneira, com recurso a referências etnográficas, de literatura oral e fotográficas, que passamos de imediato a referir.
No Alentejo, o vestuário do trabalhador do campo, incluía em 1896, em vez do chapéu e principalmente de Inverno, o barrete, também chamado gorro (Tolosa, Barrancos) ou carapuço (Estremoz, Alandroal, Montemor-o-Novo) [2].
O cancioneiro popular alentejano refere o uso do gorro preto:

“Ó rapaz da cinta verde,
Ó rapaz do gorro preto,
Vou cantar uma cantiga,
E vai ser a teu respeito.” [3]

“Ó rapaz do gorro novo,
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito do que cantam,
Preciso é falar com jeito.” [3]

“Ó rapaz do gorro preto,
Volta-o de dentro p’ra fora;
Inda estou do mesmo lado,
Inda me não volto agora.” [3]

“Ó rapaz do gorro, gorro.
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito de namoro
É preciso muito jeito.” [3]

O mesmo cancioneiro refere igualmente o uso do gorro verde:

“Ó fêra de S. Mateus,
Onde se vendem pinhões,
Anda agora muito em moda
Gorros verdes à Camões.” [3]

“Ó rapaz do gorro verde,
Quem te mandou cá entrar?
Se não cantas ‘ma cantiga,
Já te podes retirar.” [3]

“Eu venho detrás da serra
Com o meu gorro à campina;
Quem é mestre também erra,
Quem erra também se ensina.” [3]

Consta-se [1] que no início do século XIX, havia o costume de as raparigas do campo, oferecerem aos namorados, um gorro de linha azul, por si confeccionado com cinco agulhas, no decurso dos longos serões de Inverno. Terá havido um rapaz, receptor de uma dessas prendas, que denunciou o acabamento da mesma, de acordo com a oitava:

“Tenho vergonha de pôr
Esta obra na cabeça!
Oh! Vê lá, não te aconteça
Eu perder-te o amor…!
Busca outro superior,
Outro que tenha mais geito,
Que eu sempre te quer’dizer
- Que o gorro não está bem feito!” [1]

Provavelmente haveria rapazes que usavam gorro azul, sem este lhe ter sido oferecido pela namorada. Daí que alguma rapariga interessada no “enganador”, lhe pudesse dizer por gracejo:

“Ó rapaz do gorro azul,
Está-te bem, porque és trigueiro,
Diz-me quanto te custou,
Quero-te dar o dinheiro.” [3]

O uso do gorro preto ou vermelho, está, de resto, referenciado como tradição popular nesta região. [4]
A nível fotográfico, o uso do barrete no Alentejo, está documento por bilhetes-postais ilustrados referentes a actividades agro-pastoris: lavra e sementeira (Fig. 4), apanha da azeitona (Fig. 5) e maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana (Fig. 6).
Julgamos que com estas considerações tenha ficado demonstrado duma forma insofismável, o uso do barrete no Alentejo, o que legitima as representações da barrística popular estremocense que o utilizam.
Barristas como Mariano da Conceição, Liberdade da Conceição, Sabina Santos, Maria Luísa da Conceição, Quirina Marmelo, Irmãs Flores e Fátima Estróia, cobriram a cabeça destas figuras com o tradicional barrete. Já José Moreira, substituiu nas mesmas figuras, a partir de uma certa altura, o barrete pelo tradicional chapéu aguadeiro, conforme ilustramos com a “Matança do porco" (Fig. 7), de sua autoria.

BIBLIOGRAFIA
[1] – DIAS NUNES, M. “Miscelânea Tradicionalista” in “A Tradição”, Ano IV-Nº 1, Volume IV. Serpa, Janeiro de 1902.
[2] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. VI. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1975.
[3] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[4] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Publicado a 21 de Agosto de 2011


 fig. 4 - A lavra e a sementeira no Alentejo, no início do século XX.
Postal edição Malva (Lisboa). 

Fig. 5 - A apanha da azeitona no Alentejo, no início do século XX.
Postal edição Tabacaria Gonçalves (Lisboa).

Fig. 6 - Maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana,
no início do séc. XX. Postal edição Malva (Lisboa).

Fig. 7 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense,
da autoria de José Moreira.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A eternidade do casamento na arte pastoril alentejana

 

Binómio colher-garfo. Arte pastoril de Manuel Cardoso. 
Amieira do Tejo. Colecção Victor Tavares Santos.

Os corações patentes nos cabos dos talheres, sugerem que eles se amam um ao outro, porventura por que se complementam funcionalmente nas refeições e não podem passar um sem o outro. Daí que o pastor de Amieira do Tejo, os tenha ligado num aro, como se de uma aliança de casamento se tratasse. Subjacente a mensagem da eternidade do casamento.

Hernâni Matos