Grupo de cantadores (anos 90 do séc. XX). Ana Bossa (1978- ), que nos anos 90
do séc. XX, frequentou o atelier das irmãs Flores.
A identidade cultural alentejana reflecte-se em tudo, inclusive no cancioneiro popular de Natal, onde apesar da religiosidade um pouco peculiar, é notório o respeito pela Sagrada Família, a qual apesar disso é tratada terra a terra e mesmo com uma certa ironia. Assim, Jesus é identificado como mais pobre que os pobres:
"Qualquer filho de homem pobre
Nasce num céu de cortinas.
Só tu, Menino Jesus,
Nasceste numas palhinhas." [1]
Jesus é também recriminado por ter nascido numa época de frialdade:
"Ó meu Menino Jesus
Ó meu menino tão belo,
Logo Vós foste nascer
Na noite do caramelo!" [2]
Fazendo fé no cancioneiro, ou das duas uma, tal como a minha filha, o Menino era crescido para a idade, ou S. José era um carpinteiro de obra grossa, que fazia as obras a olho, não ligando às possíveis medidas:
"O Menino chora, chora,
Chora com muita rezão:
Fizeram-le a cama curta,
‘Tá c'os pézinhos no chão." [3]
De resto, S. José poderia não ser mesmo dado a grandes trabalheiras:
"José, embana o Menino,
Com a mão e não com o pé;
Esse Menino que embanas
É Jesus de Nazaré!" [4]
Quem parece que sabia embalar o Menino era a mãe:
"Esta noite, à meia noite,
Ouvi cantar ao Divino;
Era a virgem Maria
Que embalava o seu Menino." [5]
O Menino parece que era um bébé - chorão e tanto chorava por cima como por baixo:
"O Menino chora, chora,
Chora pelos calçõezinhos.
Calai-vos, ó mê Menino
Faltam-le os botõezinhos." [6]
Como todos os bébés, o Menino era um bébé – mijão. Por isso, tinha de mudar de roupa de baixo com frequência, dando muito trabalho à mãe:
"Cantai, anjos, ao Menino
Que a senhora logo vem:
Foi lavá-los cueirinhos
À ribeira de Belém." [7]
Era cada encharcadela! Molhava não só ao cuerinhos como também a camisinha:
Qu'é da tua camisinha?
Tá lá fora na ribeira
Em cima duma pedrinha." [8]
Não havia sítio que chegasse para estender a roupa, a ponto de os pastores terem de ser avisados para não arrancar vegetação, não fosse dar-se o caso, de não haver onde estender a roupa:
"Pastor do gado branco,
Não arranques o rosmaninho,
Pois é onde a Virgem Pura
Estende os cueirinhos." [9]
De resto, parece que o menino não era muito esquisito em relação à roupa:
"- Ó meu amado Menino
Quem Vos deu o fato verde?
- Foi uma moça donzela
Duma doença que teve." [10]
Mariolicices também o Menino as faria, a ponto de ter que levar o seu tabefe:
"- Ó meu menino Jesus
Quem vos deu? Porque chorais?
- Deram-me as moças da fonte;
Não hei-de tornar lá mais." [11]
O cancioneiro popular alentejano é um cancioneiro de homens sujeitos ao trabalho sazonal e ao consequente desemprego cíclico. Por isso, é um cancioneiro de homens, muitas vezes com uma barriga vazia que dá horas, não podendo, por isso mesmo, deixar de reflectir naquilo que as poderia confortar. Para alguns, haveria mesmo que dar de comer ao Menino, sem a própria mãe saber:
"Ó mê Menino Jasus,
Quem vos pudera valer,
com sopinhas da panela
Sem a vossa Mãe saber!" [12]
Alguns deviam ter tanta fome, que chegaram a pôr a hipótese de comer a boca do Menino:
"Ó mê Menino Jasus,
Boquinha de requêjão:
Quem vo-la comera toda
C'um bocadinho de pão." [13]
Outros mais comedidos, limitaram-se a pedir ao Menino para repartir com eles a comida, porque não têm pão:
"Ó mê Menino Jasus
Da Lapa do coração,
Dai-me da vossa merenda,
Que a minha mãe não tem pão." [14]
Ou até porque não têm mesmo nada para comer:
"Ó meu amado Menino,
Boquinha de marmelada,
Dai-me da vossa merenda,
Que a minha mãe não tem nada." [15]
Chegam mesmo ao ponto de querer saber, onde é que o menino arranjou a comida que tem naquele momento
"Ó mê Menino Jasus,
Quem te deu essa boleta?
Foi a minha avó Sant'Ana
Qu'a tinha lá na gaveta." [16]
Quem te deu essa boleta?
Foi a minha avó Sant'Ana
Qu'a tinha lá na gaveta." [16]
Outros, mais imaginativos, talvez pensando naquilo que não têm, pintam um menino empanturrado com aquilo que o porco e a terra dão:
"Olha o Deus Menino,
Nas palhinhas deitado,
A comer pão e toicinho
Todo besuntado!" [17]
Este o cancioneiro popular que temos e de que nos devemos orgulhar, por ser parte integrante da nossa memória colectiva e da nossa identidade cultural, que urge preservar e transmitir às gerações mais novas.
[1] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in Etnologia do Natal Alentejano, Edição da Assembleia Distrital, Portalegre, 1978.
[2] - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português, vol. III, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1983.
[3] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in Etnologia do Natal Alentejano, Edição da Assembleia Distrital, Portalegre, 1978.
[4] - Alandroal. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[5] - Alentejo. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[6] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in ob. cit.
[7] - Alentejo. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[8] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in Etnologia do Natal Alentejano, Edição da Assembleia Distrital, Portalegre, 1978.
[9] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in ob. cit.
[10] - Alentejo. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[11] - Alentejo. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[12] - Alandroal. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[13] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in ob. cit.
[14] - Alandroal. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[15] - Alentejo. Recolha de J. Leite de Vasconcellos in ob. cit.
[16] - Elvas. Recolha de M. Inácio Pestana in ob. cit.
[17] - Estremoz. Recolha de H. Matos. Anos 60.
Publicado inicialmente em 8 de Março de 2010
Uma saudação especial, para ti, Hernâni, pela qualidade que imprimes, nas divulgações que ousas fazer, da nossa Região.
ResponderEliminarO Alentejo é um estado de espírito e há de ser região. Para tal, é necessário o empenho da nossa Alma Alentejana.
ResponderEliminarSem palavras, Hernâni! Maravilhosa a construção e manutenção destas relíquias da terra. Sou brasileira, mas tenho muitos afetos com Portugal e, em especial, com o Alentejo, terra do meu falecido sogro... Marejaram-me os olhos à leitura porque lembrei-me do seu falar.
ResponderEliminarParabéns!
obrigado pelo presente pois não é todos os dias que temos a possibilidade de ler estas rimas
ResponderEliminar«Ó meu Menino Jesus/dizei-me porque chorais/deu-me a minha Mãe um beijo/choro porque me dê mais» - de «O Menino Jesus» - Elvas.
ResponderEliminarAs Cantadeiras da Alma Alentejana esde o início da semana e todos os dias têm entoado este Cante Natalício, assim como outros semelhantes. O Menino de Évora, Pias, Peroguarda, Uma Estrela se foi pôr, etc, englobado no evento «Do Natal aos Reis em Coro» da Câmara de Almada.
Quanto ao seu Blog, temos registado com agrado o cuidado e a atenção e destaque que o meu amigo dà ao nosso Alentejo e continuamos a segui-lo. Obrigado e aceite um «abraço Alentejano» de todos nós. Bem haja!
O Alentejo não tem fim!
Hernâni, que extraordinária compilação. Depois a tua verve escrutinadora e a propósito das trovas que se desenrolam na adenda ao exposto. Maravilhamo-nos na inocência dos textos e na brancura que se avizinha. Que melhor evocação ao Natal do Alentejo e de outros lugares!...
ResponderEliminarUm abraço
Fico quase sem palavras ! Obrigada por nos trazer aqui o canto e a vida, sendo eles a nossa cultura !
ResponderEliminarQue a fome não regresse aos campos de Portugal, não como era no tempo destes cantares...
O Alentejo é mesmo uma região peculiar. Tudo é belo e especial. A alma deste povo sabe cantar o seu sentir como nenhum outro. Parabéns!
ResponderEliminarSempre em "cima da jogada"! Muito a propósito este conjunto de quadras dedicadas ao Menino, quadras que na sua simplicidade aparente, contém realidades que foram tão presentes noutros tempos. Rezemos (os crentes claro) ao mesmo Menino para que esses tempos não se repitam. Abraço.
ResponderEliminarPermita-me fazer o comentário dado que tenho um costado alentejano.
ResponderEliminarGosto tudo que se relaccione ao Alentejo, do sotaque, da terra e da sua gente.
Bem haja Alentejo e continue a mimar-nos com estas maravilhas.
Feliz Natal Hernâni.
Alexandra Luiz- Amigo Hernâni Matos,trabalho muito interessante e muitos parabéns!Boas Festas!!!!!
ResponderEliminarsegunda,14,de Dezembro,2010
Maravilhoso! Parabéns!
ResponderEliminarBom trabalho, Profesor Hernani. eu tabém estou a tentar colaborar dando o contributo que está ao meu alcace. Pode ser visto e partilhado em http://pt.scribd.com/jos%C3%A9_gaspar_35. Abraço de José Rabaça Gaspar.
ResponderEliminarCaro Hernâni
ResponderEliminarLembro-me de cantar muitas destas quadras, na minha infância e adolescência, em Elvas, ao som da ronca... Na noite de Natal, grupos de rapazes iam de casa em casa conhecida, entravam, comiam e bebiam, e saíam para outra... Isto durava até de madrugada... Bem haja pela recolha a que se dedica!
Bom Natal e Bom Ano!
João:
EliminarObrigado pelo seu comentário.
É importante passar o testemunho aos mais novos.
Faço votos para que tenha tido um Bom Natal e o mesmo aconteça com o Ano Novo.
Belas recordações...!
ResponderEliminarSem dúvida, amigo.
EliminarUm abraço e bom Natal!
ora aí tens, em primeira mão, ainda a fumegar
ResponderEliminar:
numa pobre manjedoura
nasceu Jesus entra palhas
fosse hoje, Nossa Senhora
dava à luz entre canalhas
Mais nada.
EliminarUm grande abraço para ti, amigo.
Não sei que idade terá o Sr. Comentarista João Ventura, eu com os meus 80 anos, recordo bem os meus seis anos que vivi na cidade de Elvas, com muito gosto, pois estava nessa altura com os meus 21 aos 27anos e tem graça que ele trouxe-me à memoria o instrumento utilizado na altura, conhecido por «ronca» de fabrico caseiro e que descrevo como: um cântaro sem o fundo, ao qual era ligada uma pele com uma vara atada no centro e por fim fixada à boca desse mesmo cântaro. O som era provocado pelo escorregar da mão molhada para cima e para baixo dessa dita vara. Havia uma certa provocação junto das moças com essas roncas. Recordar é viver e deixa-nos um certa nostalgia recordar esses tempos já tão distantes. O amigo Hernâni ajuda-nos a viver trazendo estes factos à memória.
ResponderEliminarObrigado, amigo Fonseca.
EliminarLeia, por favor, o meu post de 10 de Março de 2010, intitulado:
A RONCA
http://dotempodaoutrasenhora.blogspot.pt/2010/03/ronca.html
Um abraço para si.
parabuens ests otima a sua cronica de janeiras do alentejo ,
ResponderEliminare esta , esta npite éde janeiras
é de grande mereçimento
que foi a noite primeira
que jesus passou tormento
os tormentos que passou
vou dizer-lhe na verdade
o seu sangue deramou
pra salvar a cristandade
boa noite srº hernanio e obrigada
Minha Senhora:
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário poético.
Volte sempre que será benvinda.
Obrigada pela partilha deste interessante e elucidativo texto sobre o Cancioneiro popular alentejano.
ResponderEliminarOra essa. Congratulo-me por o meu texto ter sido do seu agrado.
EliminarBem haja a quem nos consegue provar que existe mesmo uma Alma Alentejana 🤗
ResponderEliminarMuito obrigado. Os meus cumprimentos.
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