quinta-feira, 19 de maio de 2011

O sentido da visão: Alcunhas Alentejanas e Toponímia

São belos os olhos de mulher, que na vastidão da charneca alentejana invocam a vastidão do mar e a sede de infinitos. Ilustração de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957) para o livro “Alentejo não tem sombra” de Eduardo Teófilo, Portugália Editora, 1954.

PREÂMBULO
No desenvolvimento do tema “O sentido da visão” ; efectuámos até á presente data edição dos posts:
Chegou agora a altura de editar o post:
- O sentido da visão: Alcunhas Alentejanas e Toponímia
Comecemos pelas:
ALCUNHAS ALENTEJANAS
No âmbito das alcunhas alentejanas, o sentido da visão está amplamente representado através de diversos termos e seus derivados, assim contabilizados: cego (1), luz (3), olho (32), vista (2) e zarolho (2):
- CEGO (A) – Alcunha outorgada a quem, ao andar, está sempre a encalhar com as coisas e parece que não vê (Montemor-o-Novo).
- LUZEIR0 – Na época em que surgiu o jornal local “Luzeiro”, o visado informava os colegas de tudo (Barrancos).
- LUZINHA (Barrancos).
- LUZIRAS – O receptor viveu num monte com este nome (Grândola).
- OLHA GALINHAS - O visado recebeu esta alcunha porque trabalhava para uma patroa que todos os dias o mandava "olhar as galinhas a ver se tinham ovos" (Portalegre).
- OLHICO - A visada adquiriu esta alcunha porque tinha um olho de vidro (Beja e Moura).
- OLHINHO AZUL - O receptor, quando era bebé, era posto ao colo da mãe, que dizia: "Ai meu olhinho azul! Ai meu olhinho azul!" (Aljustrel).
- OLHINHO DE BOGA - O alcunhado tem este nome porque tem os olhos saídos para fora (Arraiolos); designação atribuída a indivíduo que tem muita falta de vista (Mértola); designação atribuída a quem tem "olhos de peixe" (Campo Maior).
- OLHINHO DE CALIÇO (Moura).
- OLHINHO DE CESIRÃO (Portel).
- OLHINHO DE GAIO (Vidigueira).
- OLHINHO DE GALO (Campo Maior).
- OLHINHO DE PANO CRU - O visado ganhou esta denominação porque tem os olhos muito pequenos (Vidigueira).
- OLHINHO DE PREGADEIRA - Epíteto aplicado a um sujeito que tem um olho mais pequeno do que o outro (Santiago do Cacém).
- OLHINHO DE SOL (Castro Verde).
- OLHINHO DE VIDRO - O nomeado ficou com este cognome porque tem os olhos muito azuis (Redondo).
- OLHINHOS - Alcunha outorgada a um indivíduo que usa uns óculos muito graduados (Grândola); sobrenome atribuído a mulher que só usa blusas com bolinhas (Almodôvar); o visado tem os olhos muito grandes (Elvas, Redondo).
- OLHINHOS DE RATO – Cognome conferido a um sujeito que tem os olhos muito pequenos (Aljustrel).
- OLHO À GATA - Epíteto atribuído a um indivíduo que tem os olhos azuis (Serpa).
- OLHO AZUL - Designação conferida a um indivíduo que tem um olho azul e outro castanho (Aljustrel); o visado tem os olhos azuis (Castro Verde, Grândola, Moura e Portel).
- OLHO CEGO - O alcunhado adquiriu esta alcunha porque ficou com um olho inutilizado, quando caiu em cima de arame farpado (Nisa).
- OLHO DE BOGA - O visado recebeu esta alcunha porque acham que tem os olhos salientes (Aljustrel). OLHO DE BOI - O alcunhado tem os olhos grandes e a mulher foi-lhe infiel (Alcácer do Sal); sujeito que tem os olhos muito grandes (Ferreira do Alentejo, Montemor-o-Novo e Reguengos de Monsaraz).
- OLHO DE CHITA - Denominação outorgada a um indivíduo que tinha um olho azul e outro castanho (Castelo de Vide).
- OLHO DE LATA - O visado adquiriu esta denominação porque tem os olhos muito azuis (Moura).
- OLHO DE MEIO QUILO - Designação atribuída a um indivíduo que tinha os olhos tão grandes, que até assustavam as crianças (Moura).
- OLHO DE POLVO - Sobrenome outorgado a um homem que tem um olho todo branco (Sines).
- OLHO DE PORCO - (Alter do Chão).
- OLHO DE SOLA - Epíteto atribuído a um indivíduo que era sapateiro (Aljustrel).
- OLHO DE VIDRO - O nomeado ficou com esta alcunha porque tinha um olho artificial (Elvas e Évora).
- OLHO VIVO - Alcunha atribuída a um sujeito parecido com um personagem da série televisiva homónima (Aljustrel).
- OLHOS - Cognome atribuído a um sujeito que tem os olhos muito grandes (Beja).
- OLHOS DE BRUNHO - Alcunha conferida a um indivíduo que tinha os olhos muito grandes e muito abertos (Moura).
- OLHOS DE GATO - O visado recebeu esta denominação porque tem os olhos verdes (Santiago do Cacém).
- OLHOS DE RÃ – Designação atribuída a um indivíduo que tem os olhos pequenos (Aljustrel).
- OLHUDO - O visado tem os olhos muito grandes. (Aljustrel).
- VISTA CURTA – Designação atribuída a sujeito que é míope (Santiago de Cacém).
- VISTAS (Serpa).
- ZAROLHA – A alcunhada é cega de um olho (Ourique).
- ZAROLHO (A) – O visado é homem ou mulher que tem a vista torta (Évora, Grândola, Mértola, Odemira, Ourique, Santiago de Cacém, Avis e Campo Maior).
TOPONÍMIA
A nível da toponímia, o sentido da visão está avantajadamente representado através de múltiplos termos e seus derivados, os quais integram topónimos de cidades, freguesias, lugares, nascentes de água e bairros, com a seguinte distribuição:
- OLHO: cidades (1), freguesias (3), lugares (17), nascentes (2);
- VISTA: freguesias (1), lugares (208);
- LUZ: freguesias (5), aldeias (1), lugares (10);
- CEGO: bairros (1);
Observou-se um pico, extraordinariamente elevado, no âmbito do termo “BOAVISTA”, englobado em “VISTA” e inserido na classificação “LUGARES”.
Em todas as considerações de toponímia que se seguem, o topónimo inserido num parêntesis curvo é concelho e o que o antecede, é a freguesia. Os topónimos foram por nós, assim hierarquizados:
CIDADES
- OLHÃO — Cidade, sede de concelho, de comarca e de freguesia. Distrito de Faro.
FREGUESIAS
- BOAVISTA - Freguesia do concelho de Leiria.
- LUZ – Freguesia do concelho de Lagos.
- LUZ – Freguesia do concelho de Mourão.
- LUZ – Freguesia do concelho de Tavira.
- LUZINDE - Freguesia do concelho de Penalva do Castelo.
- LUZIO - Freguesia do concelho de Monção.
- OLHALVO - Freguesia do concelho de Alenquer.
- OLHO MARINHO – Freguesia do Concelho de Óbidos.
- OLHOS DE ÁGUA – Freguesia do concelho de Albufeira.
ALDEIAS
ALDEIA DA LUZ - Concelho de Mourão.
LUGARES
- BELA VISTA - Águas Belas (Ferreira do Zêzere), Ribeira de Pena (Ribeira de Pena), Este (Braga), S. Pedro da Cova (Gondomar).
- BOAVISTA - A dos Cunhados (Torres Vedras), Águas Belas (Ferreira do Zêzere), Ajude (Póvoa de Lanhoso), Aldreu (Barcelos), Alegrete (Portalegre), Almargem do Bispo (Sintra), Alterco (Monchique), Alvarenga (Arouca), Alvorninha (Caldas da Rainha), Ancede( Baião), Arcozelo (Ponte de Lima), Arcozelo (Vila Nova de Gaia), Aregos – S.Romão (Resende), Arouca (Arouca), Ataíde (Amarante), Avis (Avis), Banho e Carvalhos (Marco de Canaveses), Barbudo (Vila Verde), Barro (Resende), Barrosas - Santa Eulália (Lousada), Barrosas - Santo Estevão (Lousada), Beire (Paredes), Benedita (Alcobaça), Besteiros (Paredes), Bitarães (Paredes), Caíde de Rei (Lousada), Capelo (Amarante), Carvalhosa (Paços de Ferreira), Ceide – S. Paio (Vila Nova de Famalicão), Celeiros (Braga), Cercal (Santiago de Cacém), Constance (Marco de Canaveses), Couço (Coruche), Courel (Barcelos), Crato (Crato), Crespos (Braga), Cruz (Vila Nova de Famalicão), Cumieira (Penela), Esmeriz (Vila Nova de Famalicão), Esmoriz (Ovar), Espargo (Feira), Esperança (Arronches), Este – S. Mamede (Braga), Ferreiros (Braga), Ferreiros de Avões (Lamego), Figueira (Paços de Ferreira), Folhada (Marco de Canaveses), Formaria (Paredes de Coura), Fornelos (Barcelos), Fornos (Feira), Fortios (Portalegre), Fradelos (Vila Nova de Famalicão), Fraião (Braga), Frazão (Paços de Ferreira), Freamunde (Paços de Ferreira), Frezim (Amarante), Galveias (Ponte de Sor), Gandarela (Guimarães), Gémeos (Celorico de Basto), Geraz do Lima - Santa Leocadia (Viana do Castelo), Geraz do Lima - Santa Maria (Viana do Castelo), Gestacô (Baião), Góis (Góis), Gomes Aires (Almodôvar), Gonçalo (Guarda), Gondalães (Paredes), Gondar (Guimarães), Gondarém (Vila Nova de Cerveira), Gondomar (Guimarães), Grijó (Vila Nova de Gaia), Gualtar (Braga), Idães (Felgueiras), Insalde(Paredes de Coura), Jazente(Amarante), Lanhas (Vila Verde), Lavos (Figueira da Foz), Longos (Guimarães), Lordelo (Guimarães), Louredo (Vieira do Minho), Macieira da Lixa (Felgueiras), Maiorga (Alcobaça), Marinha Grande (Marinha Grande), Maureles (Marco de Canaveses), Mazedo (Monção), Medrões (Santa Marta de Penaguião), Melrea (Gondomar), Mesâo Frio (Guimarães), Milharado (Mafra), Mire de Tibães (Braga), Modelos (Paços de Ferreira), Mogege (Vila Nova de Famalicão), Mora (Mora), Negrelos – S. Mamede (Santo Tirso), Nespereira (Lousada), Nevogilde (Lousada), Nogueira (Lousada), Odeceixe (Algezur), Oleiros (Ponte da Barca), Oliveira – S. Mateus (Vila Nova de Famalicão), Oliveira - Santa Maria (Vila Nova de Famalicão), Oliveira (Amarante), Oliveira (Barcelos), Oliveira do Douro(Cinfães), Paços (Cabeceiras de Basto), Paços (Fafe), Paços da Ferreira (Paços da Ferreira), Pedreira (Felgueiras), Pedroso (Vila Nova de Gaia), Pencelo (Guimarães), Perosinho (Vila Nova de Gata), Pias (Lousada), Pico de Regalados (Vila Verde), Ponte (Guimarães), Portimão (Portimão), Queijada (Ponte de Lima), Quelfes (Olhão), Rebordões (Santo Tirso), Redinha (Pombal), Regadas (Fafe), Resende (Resende), Riba de Ave (Vila Nova de Famalicão), Ribeirão (Vila Nova de Famalicão), Rio de Moinhos (Borba), Rio de Mouro (Sintra), Rio Tinto (Gondomar), Roliça (Bombarral), Ronfe (Guimarães), Ruivãs (Vila Nova de Famalicão), S. Brás e S. Lourenço (Elvas), S. Cristóvão de Nogueira (Cinfães), S. Luís (Odemira), S. Torcato (Guimarães), Salreu (Estarreja), Sanche (Amarante), Sanguedo (Feira), Santa Catarina da Fonte do Bispo (Tavira), Santa Clara de Louredo (Beja), Santa Eulália (Arouca), Santa Margarida (Lousada), Santa Maria (Lagos), Santa Maria de Sardoura (Castelo de Paiva), Santa Maria do Castelo (Alcácer do Sal), Santa Marinha (Ribeira de Pena), Santiago da Guarda (Ansião), Santiago de Subarrifana (Penafiel), Sequeira (Braga), Sermonde (Vila Nova de Gaia), Sernande (Felgueiras), Serpins (Lousa), Serzedo (Vila Nova da Gaia), Silvares – S. Martinho (Fafe), Silvares (Lousada), Silveira (Torres Vedras), Soalhães (Marco de Canaveses), Sobrado (Castelo de Paiva), Solho – S. Jorge (Guimarães), Sousa (Felgueiras), Sousela (Lousada), Tabaçô (Arcos de Valdevez), Tarouquela (Cinfães), Telões (Amarante), Terroso (Póvoa de Varzim), Torno (Lousada), Valença (Valença), Valongo (Valongo), Várzea (Felgueiras), Varziela (Felgueiras), Vila Caiz (Amarante), Vila Chão do Marão (Amarante), Vila Cova da Lixa (Felgueiras), Vila Fria (Felguetras), Vila Maior (Feira), Vila Marim (Mesão Frio), Vizela – S. Jorge (Felgueiras), Vizela - Santo Adrião (Felgueiras).
- BOAVISTA DA ESTRADA - Arcozelo (Vila Nova de Gaia).
- BOAVISTA DE BAIXO — Aljubarrota - Prazeres (Alcobaça).
- BOAVISTA DE BAIXO — Igreja Nova (Mafra).
- BOA VISTA DE CIMA — Aljubarrota – Prazeres (Alcobaça).
- BOAVISTA DE CIMA — Castelões (Penafiel).
- BOAVISTA DE CIMA — Igreja Nova (Mafra).
- BOAVISTA DO MEIO — Aljubarrota – Prazeres (Alcobaça).
- LUZEIRO - Santo António doa Olivais (Coimbra).
- LUZELAS - Murzagão (Carrazeda de Ansiães).
- LUZELOS - Colmeal (de Castelo Rodrigo).
- LUZENCA - Real (Castelo de Paiva).
- LUZENÇAS - Luzio (Monção).
- LUZENDA DE ALÉM – Góis (Gós).
- LUZES - Ovar (Ovar).
- LUZIANES - Sabóia (Odemira), Santa Maria (Odemira).
- LUZINDININHO - Luzinde (Penalva do Castelo).
- LUZIO - Fornos (Castelo de Paiva), Bico (Paredes de Coura).
- OLHADELA - Limões (Ribeira de Pena).
- OLHAS - Ferreira do Alentejo (Ferreira do Alentejo).
- OLHEIRÃ - Almoster (Alvaiázere).
- OLHEIRO - Alferce (Monchique, Arnoso (Santa Eulália) (Vila Nova de Famalicão), Creixomil (Barcelos), Folgoso(Maia), Gandra (Ponte de Lima), Monchique (Monchique), Sines (Sines), Vilarelho (Caminha).
- OLHEIROS - Aljubarrota (S. Vicente) (Alcobaça), Brotas (Mora), Coruche (Coruche), Rendufe (Amares), Santo André (Santiago de Cacém), S. Pedro e Santiago (Torres Vedras), Vermoil (Pombal).
- OLHEIROS DA SERRA - Maçãs de D. Maria (Alvaiázere).
- OLHITOS - Mexilhoeira Grande (Portimão).
- OLHO - Cadima (Cantanhede), Serpins (Cantanhede). Rebordões (Santo Tirso).
- OLHO-BRANCO - Algezur (Algezur).
- OLHO-D'AGUA - Salreu (Estarreja), S. Clemente (Loulé).
- OLHO-DE-BOI - Cacilhas (Almada), S. Paulo de Frades (Coimbra), S. Vicente (Abrantes).
- OLHO-DE-MOURO - Vila Cova de Carros (Paredes).
- OLHO DE S. CAETANO - Cantanhede (Cantanhede.
- OLHO-MARINHO - Freguesia do concelho de Óbidos.
- OLHO-MABINHO - Arada (Ovar), Vila Nova de Poiares (Vila Nova de Poiares).
- OLHOS-DE-ÁGUA - Albufeira (Albufeira), N.ªS.ª da Anunciada (Setúbal), Pinhal ovo (Palmela), Quinta do Anjo (Palmela), S. Salvador da Aramenha (Marvão).
- OLHOS NEGROS – Monchique (Monchique).
- VISTA ALEGRE - Tabuado (Marco de Canaveses), Sobretâmega (Marco de Canaveses), Figueiró (Paços de Ferreira), Freamunde (Paços de Ferreira), Cete (Paredes), Alpendurada e Matos (Marco de Canaveses, Santa Eulália (Arouca), Fermentões (Guimarães), Oliveira - Santa Maria (Vila Nova de Famalicão), Ceide - S. Paio (Vila Nova de Famalicão), Nespereira (Cinfães), Ílhavo (Ílhavo), Rio de Moinhos (Penafiel), Santo António dos Olivais (Coimbra), Raiva (Castelo de Paiva), Real (Castelo de Paiva). Porventura o mais famoso lugar com a designação de VISTA ALEGRE, será o do concelho de Ílhavo, por ali ter sido fundada em 1824, a Fábrica da Vista Alegre, graças à iniciativa de José Ferreira Pinto Basto (1774-189), industrial, lavrador, político e fidalgo da Casa Real.
- VISTA AUSENTE - Fermentões (Guimarães).
- VISTORIA - Perosinho (Vila Nova de Gaia).
NASCENTES DE ÁGUA
- OLHOS-DE-ÁGUA – Nascente do rio Alviela, situada na freguesia de Louriceira, no concelho de Alcanena. É uma das nascentes mais importantes do nosso país, pois chega a debitar 17 mil litros por segundo. Desde 1880 até praticamente à actualidade, foi uma das principais fontes de abastecimento de água à cidade de Lisboa.
- OLHO D’ÁGUA – Nascente da freguesia de olho Marinho, concelho de Óbidos, com propriedades medicinais semelhantes às das Caldas da Rainha.
BAIRROS
- ARCO DO CEGO – Lisboa.
CONCLUSÃO
De novo, uma abordagem efectuada em termos de literatura oral, centrada num tema aparentemente estéril, revela uma enorme vastidão, reveladora da riqueza da língua portuguesa, que nenhum acordo ortográfico malquisto, conseguirá cercear.
BIBLIOGRAFIA
[1] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[2] - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Os talêgos (3ª edição)


Esta é a 3ª edição do post, cuja 1ª edição é de 27 de Fevereiro de 2010, a que se seguiu uma 2ª edição a 7 de Novembro de 2010. Novamente foi ampliado com considerações de natureza linguística e de literatura oral, bem como pela adição de seis novas ilustrações e de mais três fontes bibliográficas.


APONTAMENTOS ETNOGRÁFICOS
OS talêgos eram sacos multicolores, de tamanho variável, confeccionados pelas mulheres com as sobras dos panos usados na confecção de saias, blusas e aventais ou mesmo de roupa velha que se tinha deixado de usar. Tinham um cordão ou nastro que corria dentro de uma bainha e que os permitia fechar. Podiam ser forrados ou ser singelos. Alguns eram rebuscados na sua concepção e manufactura, a qual podia incluir pompons e borlas. Outros haviam que eram simples, sendo alguns, até, manufacturados com um único tecido.
Os talêgos eram o providencial modo de transportar aquilo que de que precisávamos. Ia-se às compras de talêgo, o qual era lavado sempre que necessário. Havia um talêgo para ir aviar a mercearia e outro para ir ao pão, bem como outro para ir ao grão, ao feijão ou ao milho. Usávamos também um talêgo para guardar os magros tostões que tínhamos e ainda outro para guardar a existência usada no jogo do botão.
Os camponeses guardavam as sementes em talêgos e os moleiros recebiam talêgos de trigo, centeio ou milho, que devolviam com farinha, após terem subtraído a maquia devida à moagem. Era também nos talêgos que se levava comida para o local de trabalho.
Em nossas casas, nas arcas, cómodas e guarda-fatos havia pequenos talêgos com alfazema, que pelo seu cheiro afugentava traças, moscas, mosquitos e demais insectos. Nesses mesmos locais, existiam por vezes talêgos maiores, nos quais se acondicionava a roupa mais delicada ou mais antiga e que inspirava mais cuidados de preservação.
A pobreza, a falta de oportunidades de vida, a adversidade do clima, as catástrofes, a política repressiva, fizeram com que ao longo dos tempos, o povo português tivesse de emigrar, visando a melhoria das suas condições de vida. Para transportar os seus bens, a maioria das vezes, uma parca bagagem, lá estavam o talêgo e mais tarde, a mala de cartão.
O talêgo era a embalagem reciclável inventada pelo sabedoria popular, que sempre soube encontrar formas criativas de lutar contra a adversidade e a falta de meios. Depois de puído e roto pelo uso e pelas lavagens sucessivas, era remendado por mãos hábeis de mulheres, que assim lhe prolongavam a longevidade. E mesmo depois de serem abatidos ao serviço como “talêgos”, continuavam ter préstimo. Serviam de rodilha ou de esfregão, até tal ser possível. Só depois se deitavam fora, para serem degradados pela terra-mãe e renascerem sob outra forma.
Actualmente, a luta contra o desperdício e o consumismo, pela melhoria da nossa qualidade de vida e pela salvação do planeta, passa pela implementação da política dos 3 RRR:
 - Reduzir o lixo que se produz;
- Reutilizar as embalagens mais que uma vez;
- Reciclar os componentes do lixo, separando-os na origem.


Por isso impõe-se o regresso da utilização do talêgo na nossa vida quotidiana, sempre que formos às compras. O planeta e a melhoria da nossa qualidade de vida assim o exigem.
Não queremos abandonar o tema que temos estado a abordar, sem tecer algumas considerações de natureza linguística, bem como sublinhar igualmente algumas notas de literatura oral:
CONSIDERAÇÕES DE NATUREZA LINGUÍSTICA
Em primeiro lugar convém esclarecer que “talêgo” é a forma regionalista do substantivo “taleigo”, devida a um fenómeno fonético que consistiu na monotongação do ditongo “ei”, que se transformou assim em “ê”, o que teve repercussões no grafismo da palavra. [10]
Nos dicionários consultados, que abrangem o período de 1721[4] a 2001[2], existem verbetes sobre as palavras “ataleigar”, “taleiga”, “taleigada”, “taleigão”, “taleigo” e “taleiguinho”. Vejamos o que sobre estas palavras dizem os diferentes dicionários:
ATALEIGAR - Puxar as calças para cima da cintura. [9] (1922)
ATALEIGAR – Encher muito. [25] (1993)
TALEIGA – Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados, designa:
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [4] (1721)
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [3] (1789)
- Saco, de maiores ou menores dimensões, e destinado especialmente à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do lat. Talica) [8] (1913).
- Saco pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do latim “talica”) [12] (s/d)
- Saco, bolsa, surrão. “Taleiga” é sinónimo de “teiga”. (Do árabe “ta’lîqâ”, saco). [15] (1977)
- Saco, pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. [24] (1988)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais (Do árabe “ta'liqa”, saco) [19] (1996)
- Saco pequeno e largo usado normalmente no transporte de cereais e de farinha. Medida antiga de azeite, equivalente a dois cântaros. Medida antiga de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do árabe “ta'liqa”, saco.) [2] (2001)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do árabe “ta'lïqa”, saco). [20] (s/d)
TALEIGADA - Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [4] (1721)
- A porção que se leva numa taleiga. Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [3] (1789)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia (De taleiga). [8] (1913).
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia: uma taleiga de trigo. [12] (s/d)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia. [24] (1988)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo). [19] (1996)
- Conteúdo de uma taleiga. Porção que enche uma taleiga (De taleiga + suf. -ada). [2] (2001)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo+-ada). [20] (s/d)
TALEIGÃO – Adjectivo e substantivo masculino. O mesmo que latagão (indivíduo robusto, forte, desempenado , e geralmente novo). [12] (s/d)
TALEIGO - Substantivo masculino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- É um saco pequeno, como aquele em que o soldado leva às costas, pão de munição ou outra virtualha. Um taleigo leva dois alqueires de trigo (Deriva do castelhano “Talega” e este segundo Covarrubuias deriva do Grego). [4] (1721)
- Saco estreito e longo que leva dois alqueires. [3] (1789)
- Taleiga pequena. [8] (1913).
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida. O mesmo que barça. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco prlos homens de armas das hostes em campanha na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [12] (s/d)
- Substantivo masculino e adjectivo, diminutivo de taleigão. [12] (s/d)
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida: O mesmo que barca. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco pelos homens de armas das hostes em campanha, na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [24] (1988)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena. (De taleiga) [19] (1996)
- Saco pequeno, estreito e comprido: Taleiga de dimensões reduzidas. Cesto usado para transportar comida. Medida antiga, equivalente a dois alqueires, usada para secos. Saco que era usado na caça de altanaria para levar o falcão. Saco que continha a comida para três dias, usado pelos homens de armas na Idade Média. Víveres contidos nesse saco. [2] (2001)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena (De taleiga). [20] (s/d)
TALEIGUINHO – Substantivo masculino. Taleigo pequeno. (De taleigo e sufixo diminutivo -inho). [12] (s/d)
NOTAS DE LITERATURA ORAL
De acordo com o cancioneiro popular:
“Tenho um saco de cantigas,
E mais uma taleigada:
O saco é p’ra esta noite,
Taleiga p’ra madrugada.” [18]
A palavra “Taleigo” não figura, pelo menos actualmente na Onomástica Portuguesa como nome próprio. Assim o revela a consulta à lista dos vocábulos admitidos como nomes próprios, disponibilizada pelo Instituto dos Registos e do Notariado [13]. Todavia, a palavra é conhecida como sobrenome de nome próprio. A referência mais antiga que conhecemos figura num documento simples da Chancelaria Régia de D. Afonso V (liv. 14, fl. 85v), datado de 13 de Junho de 1466, o qual certifica que o monarca perdoou os 9 meses de degredo no couto de Marvão a Mem Rodrigues Taleigo, lavrador, morador em Évora Monte, o qual pagou 600 reais brancos para a Piedade. [6]
No Alentejo são conhecidas alcunhas em que figura a palavra “taleigo” ou palavras dela derivadas [22]:
- TALEGA - o visado faz comentários do estilo: "Grande talega!" (Marvão).
- TALEGUEIRO – o atingido anda sempre com um taleigo (Sines).
- TALEIGADAS (Avis).
- TALEIGO - Alcunha concedida a um sujeito baixo e gordo (Cuba e Portel).
- TALEIGUINHO - o receptor pendurou um taleigo num sobreiro (Santiago do Cacém) ou então é um indivíduo de baixa estatura (Aljustrel e Portei).
- TALEIGUINHO DA BUCHA - o receptor é baixo e gordo (Moura).
- TALEIGUINHO DAS ISCAS – o receptor quando ia à caça, levava sempre um taleiguinho com iscas (Aljustrel).
O adagiário português relativo ao taleigo é escasso:
- “Fazenda em duas aldeias, pão em duas talegas” [4]
- “O fidalgo, o galgo e o talego de sal, junto do fogo os hão de achar” [4]
- “O taleigo de sal quer cabedal” [5]
São conhecidas as seguintes imagens metafóricas usadas na gíria portuguesa:
Dar ao taleigo = Falar = Dar à língua = Parolar = Conversar [24], [25]
Dar aos taleigos = Parolar = Dar à língua [8]
Dar ao(s) taleigo (s) = Conversar demoradamente [23]
Dar ao(s) taleigo (s) = Dar á língua [19]
Dar ao(s) taleigo(s) = Conversar = Dar à língua [2]
No calão:
Talega = Grande Porção = Grande Peso = Saco de pano [25]
Taleiga = Carga excessiva = Grande quantidade [17]
Taleiga = Coisa Grande [14]
Taleiga = Naco = Pedaço de haxixe [21]
Taleiga = Saco Grande [25]
Taleigão = Latagão [25]
Taleigo = Prisão” [14], [25]
Taleigo = Saco pequeno [1], [25]
Na toponímia:
TALEGA = Freguesia do bispado de Elvas [16]
TALEIGÃO = Freguesia do concelho e distrito de Goa, Índia Portuguesa.
QUINTA DA TALEIGA = Lugar do concelho de Portalegre.
Os pregões usados pelos pregoeiros eram outra forma de literatura oral. Através deles se proclamava qualquer coisa, como por exemplo, aquilo que se tinha para vender. Era o caso do vendedor de picão que nos anos cinquenta do século passado percorria, todo enfarruscado, as ruas de Elvas, quando o frio de rachar aconselhava o uso da braseira. O pregão:
“Ah! Bom pi-cão”! "
anunciava a preciosa e sazonal mercadoria contida em taleigos transportados no dorso de pacientes asnos.
NOTA FINAL
Depois desta "taleigada" de considerações suscitadas pelo substantivo "talêgo" em termos linguísticos e de literatura oral, achamos por bem atar os cordões e dar o presente texto por terminado. Pelo menos por agora.
BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[2] – ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. II Volume. Editorial Verbo. Lisboa, 2001.
[3] – BLUTEAU, Raphael; MORAES SILVA, António de. Diccionario da Língua Portugueza. Tomo Segundo. Officina de Simão Thaddeo Ferreira. Lisboa, 1789.
[4] – BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. V. Officina de Pascoal da Sylva. Lisboa, 1721.
[5] – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
[6] – DIRECÇÃO-GERAL DE ARQUIVOS [http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=listShow&searchMode=as&sort=id&order=ASC]
[7] - FERREIRA, Diogo Fernandes. Arte da Caça de Altaneria. Vol. I. A Liberal. Lisboa, 1899.
[8] - Figueiredo, Cândido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa (2 vol.). Clássica Editora. Lisboa, 1913.
[9] - Figueiredo, Cândido de. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. (2 vol.). Editora Portugal-Brasil Limitada, 1922.
[10] – FLORÊNCIO, Manuela. Dialecto Alentejano – contributos para o seu estudo. Edições Colibri. Lisboa, 2001.
[11] - GAMA, Eurico. Os Pregões de Elvas. Edição de Álvaro Pinto. Lisboa, 1954.
[12] – GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vol. 30. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
[13] – INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO. Vocábulos admitidos e não admitidos como nomes próprios [http://www.irn.mj.pt/sections/irn/a_registral/registos-centrais/docs-da-nacionalidade/vocabulos-admitidos-e/downloadFile/file/2010-09-30_-_Lista_de_nomes.pdf?nocache=1287071845.45]
[14] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[15] – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 5. 3ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1977.
[16] - NIZA, Paulo Dias de. Portugal Sacro-Profano. Parte II. Oficina de Miguel Manescal da Costa. Lisboa, 1768.
[17] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[18] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[19] - PORTILLO, Lorenzo. Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube. Ediclube. Alfragide, 1996.
[20] – PORTO EDITORA. Grande Dicionário. Porto Editora. Porto, 2004.
[21] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[22] – RAMOS, Francisco Martins e SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[23] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[24] – SILVA, António de Morais. Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa. Vol. V. 4ª edição. Editorial Confluência. Mem Martins, 1988.
[25] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[26] - VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das Palavras, Termos e Frases. Edição Critica de Mário Fiúza. Vol. 2. Livraria Civilização. Porto, 1966.


VIAJANTES A SEREM RECEBIDOS NUMA ESTALAGEM. O que está apeado transporta um taleigo suspenso de um pau. Iluminura do  “Tacuinum  Sanitatis” (Finais do séc. XIV), livro medieval sobre o bem-estar, com base na al Taqwin Taqwin تقوين الصحة ("Quadros de Saúde"), tratado do século XI da autoria do médico árabe Ibn Butlan de Bagdá,  o qual pertence à Biblioteca Casanatense, em Roma.
ABRIL - FÓLIO 9v, Iluminura do “Livro de Horas de D. Manuel “, Séc. XV. No pé de página, à beira-rio, duas levadas movem duas azenhas. À esquerda da do lado esquerdo uma mulher aproxima-se, transportando à cabeça um talêgo com grão para ser moído, o mesmo se passando do lado direito, onde um homem carrega um talêgo de grão às costas. Simultâneamente um homem montado num burro com talêgos de farinha, parece fazer-se ao caminho.
MARÇO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. No segundo plano, à direita, um camponês dobrado sobre um taleigo, retira daí sementes, que de seguida irá semear. Ainda no segundo plano à esquerda, um camponês que poda a vinha, tem junto a si, no chão, uma enxada, um chapéu e um taleigo.

OUTUBRO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. Em primeiro plano, um camponês semeia a terra. Próximo de si, um taleigo com sementes.
  
PADARIA. COLÓNIA SUÍÇA DE CANTAGALO – BRASIL (1835). Jean Baptiste Debret (1768-1848). Pormenor de Litografia. Firmin Didot Frères,  Paris.
O EMIGRANTE (1918). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela ( 80 x 104 cm). Colecção particular.
Ilustração de Alfredo Roque Gameiro (1864 - 1935) para “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Diniz (1839-1871).
OS EMIGRANTES (1926). Domingos Rebelo (1891 - 1975). Óleo sobre tela. Museu Carlos Machado, Ponta Delgada.
TIPOS SALOIOS (MERCÊS-RINCHOA). Leal da Câmara (1876-1948). Ilustração de bilhete-postal editado pela Casa-Museu Leal da Câmara, Rinchoa.
 
SALOIOS EM LISBOA - Stuart Carvalhais (1887-1961). Tinta da China aguarelada sobre papel (25 x 30 cm). Colecção particular.
MOLEIRO COM DOIS BURROS CARREGADOS DE TALEIGOS – Capa da revista “Ilustração Portuguesa” nº 730 de 16 de Fevereiro de 1930.
SERRA DO CAMULO - MULHER COM CAPUCHA (1937). Aguarela de Alberto de Souza (1880-1961), reproduzida em bilhete-postal ilustrado nº 17 da "Série B" - Costumes Portugueses, tendo impresso no verso um selo do tipo "TUDO PELA NAÇÃO" de $25 (azul) ou de 1$00 (vermelho) e emitido pelos CTT, em 1941.

DENTRO DO MOINHO – aguarela de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970).
CONFRATERNIZAÇÃO INFANTIL – Laura Costa. Desenho policromo reproduzido em bilhete-postal de Boas Festas dos CTT, emitido em 1944 com selo de $30 do tipo Caravela e impresso em off-set na litografia Maia, no Porto.

domingo, 15 de maio de 2011

O sentido da visão: Adivinhas

SEM TÍTULO – CEIFEIRA.
Manuel Ribeiro de Pavia (1910-1957).
Desenho a lápis sobre papel (26,5x35 cm).
Colecção particular.

PRÓLOGO
As adivinhas são enigmas formulados pelo povo e que têm sido transmitidas de geração em geração, integrando assim a nossa literatura oral.
Para além de constituírem um passatempo familiar que ajudava a passar as longas noites de Inverno, elas desempenharam sempre um papel educativo, visto estimularem a imaginação criadora, fomentarem o desenvolvimento da inteligência, treinarem a memória e desenvolverem o poder de observação. Para além de tudo isso, oferecem um interesse, vincadamente etnográfico, dado terem sido, na sua maioria, formuladas num contexto de ruralidade, abordando por isso a temática desse universo.
Localizámos cerca de quatro dezenas de adivinhas no âmbito do sentido da visão e delas seleccionámos uma vintena, que estudámos e sistematizámos em dois sub-grupos: “Os olhos” e “A luz e as suas fontes”.

OS OLHOS
Os olhos são os órgãos sensoriais da visão. Algumas adivinhas têm como solução: “O olho”:

“O que é, que é,
Uma caixinha de bem-querer,
Abre e fecha sem ranger?” [5]

“Que é do tamanho dum tostão,
abre e fecha sem cordão?” [6]

Outras têm como resultado: “Os olhos”:

“Juntos vivemos e andamos
Vestindo trajos iguais.
E sendo amigos, jamais
Ver um ao outro estimamos:
Inda que mui longe vamos
Por solitário caminho,
Nenhum sai do pátrio ninho:
Por úteis ambos nos temos,
Mas o que juntos fazemos
Faz qualquer de nós sozinho.” [1]

“Altas janelas,
Que abrem e fecham,
Sem bulir nelas.” [5]

“Altos palácios,
Lindas janelas,
Abrem-se e fecham,
Ninguém mora nelas.” [2]

Algumas têm desfechos mais complexos. Por exemplo: “Os olhos: as pestanas e as meninas-dos-olhos”:

“O que é, que é,
pêlo com pêlo
e a menina fica no meio?” [8]

Outras, têm como decifração “As meninas-dos-olhos”:

“Quais são as meninas
Que, quanto mais belas,
Mais longas cortinas
Põem nas janelas?” [7]

Outras, ainda, têm um desenlace mais vasto, como por exemplo: “Pés, olhos, dedos, dentes e garganta”:

“São dois andantes,
Dois viajantes,
Dez arrecadantes,
Vinte oito moleiros
E uma azenha a moer.” [2]

Finalmente, outras têm como resolução o “Abrir dos olhos”:

“Adivinhar, adivinhar.
Qual é a coisa primeira
Que se faz ao acordar?” [2]

A LUZ E AS SUAS FONTES
O mecanismo da visão tem por base “A luz”, a qual é solução de algumas adivinhas:

“Mais veloz do que eu, ninguém;
Sou linda como as estrelas;
Sem ser nau ando com velas,
De graça todos me têm,
Sou origem das janelas.” [2]

“É do tamanho de uma aresta
E até na casa d’el-rei presta.” [2]

De registar igualmente nas respostas, a presença do contrário da luz, ou seja: “A escuridão”:

“Qual é a coisa, qual é ela
Quanto maior é
Menos se vê?” [3]

Uma fonte de luz que marca forte presença no desenredo é “O sol”:

“Qual é a coisa, qual é,
Que quanto mais se mira,
Menos se vê?” [6]

“Procuram-me muitas vezes,
Tenho estima, o leitor creia,
Mas, se alguém olha para mim,
Faz-me logo cara feia.” [7]

O sol é comparado a Deus, porque “Ninguém o pode olhar”:

“Em que se parece Deus com o Sol?” [2]

São múltiplas as adivinhas cujo resultado é: “A luz da candeia”:

“Qual é cousa, qual é ela,
Do tamanho de uma abelha
E enche a casa até à telha?” [4]

“Qual é a cousa, qual é ela,
Do tamanho duma bolota
E enche a casa até à porta?” [4]

“Qual é cousa
Que cabe dentro duma rasa
E enche a casa até à porta?” [4]

De resto, localizámos uma, cuja resolução é: “A vela, o pavio e a luz”:

“O pai é coto,
O filho é crespo,
O neto é loiro.” [3]

Por fim, assinalámos outra, cuja conclusão é: “A lâmpada eléctrica de incandescência”:

“O que é, que tem a barriga de vidro e a tripa de arame?” [6]

EPÍLOGO
Mais uma vez, agora dentro do contexto limitado “As adivinhas” e nele no âmbito restrito do “Sentido da visão”, foi possível concluir a riqueza da nossa tradição oral, a qual mais do que nunca, urge preservar, como reforço da nossa identidade cultural nacional, em situação de risco numa época de frenética globalização.

BIBLIOGRAFIA
[1] – CURVO SEMEDO. Composições Poéticas. Parte II (1903); Parte III (1817). Lisboa.
[2] - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[3] – LEITE DE CASTRO. “Adivinhas” in Revista de Guimarães, vol. I, nº 3 (1884).
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, José. Tradições Populares de Portugal. Porto, 1882.
[5] - LIMA, Augusto Castro Pires de. O Livro das Adivinhas. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1943.
[6] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[7] – MARIA RAQUEL. Agenda Doméstica para 1957. Porto Editora, Porto, 1957.
[8] - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas.6ª edição. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
[9] - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIII (1933); vol. XXXIV (1934).

Hoje é dia de penico


Fig.1 - Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, do início do séc. XX.


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PRÓLOGO
Há mais de um ano, que seareiros do humor, resolvemos lavrar os terrenos do Facebook com as araveças da nossa incomodidade. O nosso objectivo, coroado de êxito, foi agitar as águas da blogosfera, onde nem tudo o que luz é oiro e onde proliferam, infelizmente, exemplos de mau gosto, de vazio cultural ou o que é bem pior ainda, de atentados à inteligência de cada um.
É certo que também há quem reme contra a maré do facilitismo e no uso legítimo da liberdade de expressão, procure ser criativo sem ser buçal, bem como ser irreverente sem ser imoral. É esse o terreno da nossa luta.
Ao editarmos então o post “À laia de ode ao penico”, elevámos este acessório à categoria de monumento à defecação e proclamámos a necessidade da sua divulgação e estudo nos seus variados aspectos, a fim de que possa ser preservado.
Voltamos hoje à liça, para terçar armas pela nossa dama: O PENICO PORTUGUÊS. As armas escolhidas foram as múltiplas vertentes da nossa literatura oral, tão gratas ao imaginário e à cultura populares.

A LÍNGUA PORTUGUESA É RICA
“Penico” é um substantivo masculino, de origem obscura [5]. De acordo com os dicionaristas designa o recipiente em louça, ferro, plástico, etc., usado para urinar e defecar, no qual se depõem urina e fezes.
O substantivo penico tem inúmeros sinónimos: bacia de cama, bacio, bispote, calhandro, doutor, mictório, pote, senhor doutor, urinol, vaso de comadre, vaso de noite, vasaréu e viasca. Por aqui se vê, que até a nível de penicos, a língua portuguesa é rica. E a confirmá-lo, faremos uma travessia breve pela nossa literatura oral.

ADAGIÁRIO
Talvez porque o penico se tenha tornado obsoleto ou, pelo menos, tenha caído em desuso, não é vasto o respectivo adagiário. Todavia, ele existe como marca de identidade cultural:

- "Braga é o penico do céu."
- "Não há penico sem tampa.
- "Oleiro que faz o penico, faz logo a tampa.2
- "Penico de barro não cria ferrugem."
- "Penico de barro não dá ferrugem."
- "Penico que muitos mexem acaba fedendo."
- "Penico também é branco."
- "Quem não tem cachorro, caça com gato; Quem não tem penico, caga no mato."

CANCIONEIRO POPULAR
Os dois únicos registos que temos e que referem implicitamente o penico, são as quadras que legendam os bilhetes-postais ilustrados, de fabrico português, que ilustram o presente post. A primeira refere-se à fig. 1 (ESSENCIA DE PENICO):

“Lula chorando por mais
Fresca caca da mamã,
Solta berros e dá ais,
Pede outra dose, amanhã.”

A segunda refere-se à fig. 2 (DESILUSÃO):

“Que coisa tão fina
E tão cheirosa…
Cheira a albumina
É albuminosa”

CALÃO
Ainda que não abundem, existem termos de calão, envolvendo o vocábulo “penico” ou um vocábulo dele derivado:

Mijar fora do penico = Sair da linha = Desrespeitar as regras [1]
Pedir penico = Acovardar-se = Render-se = Desistir por admitir ter sido vencido [7]
Penicada = Penico cheio de urina e dejectos [8]
Penicada = Troça do grau aplicado aos caloiros na Universidade de Coimbra [4]
Peniqueira = Criada de quarto [3]
Peniqueira = Mesa de cabeceira onde se guarda o penico
Chiça penico! = Caraças! [1]

ADIVINHAS
Apenas conhecemos uma adivinha, cuja solução óbvia é "O penico":

“Verde por fora, amarelo por dentro,
Tem uma asa e é fedorento.” [9]

Quanto a esta:

“Que é, que é, que dois homens podem fazer ao mesmo tempo e não é possível a duas mulheres?” [2],

o desenlace óbvio é “Urinar num penico”.

LENGALENGAS
Conhecemos duas lengalengas populares que fazem referência ao penico. Uma delas é conhecida por:

“Varre, varre vassourinha”

“Varre, varre vassourinha
Varre bem esta casinha
Se varreres bem dou-te um vintém
Se varreres mal dou-te um real
Pico pico saltarico
Salta a pulga p'ró penico
Do penico p'rá balança
Disse o rei que fosse à França
Buscar o D. Luís
Que está preso pelo nariz
Os cavalos a correr
As meninas a aprender
Qual será a mais bonita que se irá esconder?”

Quanto à outra, é conhecida por:

“Zé Godinho"

Lá vem o Zé Godinho a cavalo no burrinho,
O burrinho é fraco, a cavalo num macaco,
O macaco é valente, a cavalo numa trempe,
A trempe é de ferro, a cavalo num rodelo,
O rodelo é de sola, a cavalo numa bola,
A bola é vermelha, a cavalo numa telha,
A telha é de barro, a cavalo num cocharro,
O cocharro é de cocha, a cavalo numa floucha,
A floucha é de bico, a cavalo num penico,
O penico é vidrado, a cavalo num cajado,
O cajado é de pinho
E lá vai o Zé Godinho a cavalo no burrinho.”

ALCUNHAS ALENTEJANAS
Também no âmbito das alcunhas alentejanas, algumas têm a ver com o penico:
PENICO – Alcunha identificada em Castro Verde, Estremoz, Monforte, Moura e Ourique: [6]
PENICO DE DUAS ASAS – Alcunha reconhecida em Fronteira. [6]
PENICO DOS RICOS – Designação atribuída a um indivíduo muito vaidoso e que privilegia o relacionamento com pessoas abastadas (Redondo); o visado bajulava os ricos e era subserviente (Moura). [6]
PENICO VIDRADO – Alcunha outorgada a alguém que é pobre, mas muito vaidoso. [6]
PENIQUEIRA - Alcunha confirmada em Fronteira. [6]

EPÍLOGO
Depois do meu texto anterior “À laia de ode ao penico”, reforçado agora com este “Hoje é dia de penico”, não vos posso assegurar que num futuro mais ou menos próximo, não vos vá brindar com nova e monumental penicada. De literatura oral, pois claro! A defesa da língua portuguesa, assim o exige, pelo que eu, nesse domínio como noutros: “Não peço penico!”

BIBLIOGRAFIA
[1] ALMEIDA, José João Almeida. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. 2011. [http://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf]
[2] - DIAS. Jaime Lopes. Etnografia da Beira. Vol. X. Livraria Férin, Lda. Lisboa, 1970
[3] – FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Diccionário de Língua Portuguesa. 4ª edição. Sociedade Editora Arthur Brandão. Lisboa, 1925.
[4] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[5] – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 4. 5ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1989
[6] - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[7] - SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[8] - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[9] - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIV (1934).

Publicado inicialmente a 15 de maio de 2011

Fig.2 - Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, dos meados do séc. XX.