sábado, 7 de maio de 2011

O sentido da visão: Cancioneiro

ROSA DE GUADALUPE (1955) – Litografia de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).

Uma das formas possíveis de percepção do mundo é a visão, cujos órgãos sensoriais são os olhos. Façamos uma abordagem deste sentido, recorrendo ao cancioneiro popular alentejano:

A função dos olhos é ver:

"Os olhos que vivos são,
O seu alimento é ver.
Dos olhos nasce a feição,
Da feição, o bem querer." [1]

O olhar diz muito:

"O nosso olhar é espelho
Do que sente o coração.
A boca pode mentir,
O nosso olhar é que não." [1]

Os olhos atraem-nos e prendem-nos:

"Os teus olhos me prenderam
Um dia ao sair da missa.
Que prisão tão rigorosa
Sem cadeia nem justiça." [1]

O piscar de olho é declaração de amor:

"Este domingo que vem
Já não é como o passado,
Que me piscaste o olho
À cancellinha do adro." [2]

O olhar reflecte o amor:

"Ó Manel, tu vais á monda?
Eu cá também vou mondar;
diz-me lá: gostas de mim?
Eu bem vejo o teu olhar"[3]

Os olhos são avaliados pela cor:

"Os olhos azuis são falsos,
Os pretos são lisongeiros,
Os olhos acastanhados
São leais e verdadeiros." [1]

Os olhos podem chorar de tristeza:

"Os meus olhos com chorar
fizeram covas no chão,
coisa que os teus não fizeram,
não fizeram, nem farão." [3]

Nos olhos se reflecte o sono:

"O sonno me deu nos olhos,
Batucou, entrou p’ra dentro
Elle me disse baixinho.
Vamos á cama, que é tempo." [2]

A certa altura os olhos reflectem falta de vista:

"Os olhos da minha cara
Como eram já não são.
Fazem a mesma diferença
Que o Inverno faz do Verão." [1]

Os olhos podem ser alvo de brejeirice:

"Já não sei que faço aos olhos,
Que geitinho lhes sei dár,
Que as mulheres m’os cobiçam,
Homens querem-m’os tirar." [2]

Os olhos podem igualmente ser motivo de sarcasmo:

"Os olhos da minha sogra,
São duas sardinhas fritas.
Quando olho para ela.
‘Té me revolvem nas tripas." [1]

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1909.
[3] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

D. Manuel II - O Bibliógrafo




Ao meu amigo José Manuel dos Santos Pereira (vulgo “o D. Manuel”), que nas suas colecções especializadas de Filatelia Tradicional e de Inteiros Postais, levou o estudo das emissões de D. Manuel II, a um nível de profundidade nunca antes conseguido.

PRÓLOGO
A Filatelia é comum e simultaneamente reconhecida como “Rei dos hobbys” e como “Hobby de Reis”. E se, porventura, é certo que esta conjunção de proposições é uma proposição verdadeira, não será, eventualmente, menos certo que há outros hobbys que não estando alcandorados à categoria de hobbys merecedores do epíteto de “Rei dos hobbys”, não perdem, com isso, merecimento que os leve a deixar de ser considerados como “hobby de Reis”. Refiro-me, naturalmente às Antiguidades, à Numismática e à Bibliofilia.
Nesta panóplia de interesses coleccionistas, o meu coração pende para esta última, o que julgo ser passível da compreensão do prezado leitor. É que no jeito adquirido de trespassar montanhas de papel para perseguir uma ideia, o possuir livros como quem possui uma mulher, com total entrega e muito amor, tornou-se uma paixão intransponível. Paixão multifacetada, é certo, dado o meu interesse simultâneo e não necessariamente convergente pela Física, pela Etnologia e pela Filatelia, disciplinas que apesar de terem no terreno uma forte componente prática, não deixam por isso de ter uma forte componente bibliófila.
Livros que, como ponto de partida, são a semente donde brotam finos caules que o tempo engrossa, porque a função do tempo é essa: fazer convergir riachos que em certa altura se transmutam numa torrente, donde dimana a energia e consequentemente a vida.
Livros que folheamos, que acariciamos, que exploramos, que desbravamos, que passamos a conhecer como ninguém e que por isso passam psicologicamente a fazer parte de nós próprios.
Livros que materialmente e psicologicamente possuímos e que alguns de nós sentimos necessidade de assinalar com uma marca de posse: o ex-libris [1], espécie coleccionável, rica nos seus múltiplos aspectos.
Aspectos que eu, sôfrego de tudo o que é inter e multidisciplinar, sinto necessidade de integrar epidermicamente na minha vivência. Daí que a posse acidental de um extenso e precioso acervo de ex-libris, tenha consequências que, de momento, estou ainda longe de ser capaz de avaliar.
Numa primeira investida, estudei-os por temas, depois por desenhadores, por gravadores e por técnica de gravura. Qualquer destes estudos deu os seus frutos, mas não me conteve. É que o alentejano que há em mim, habituado à vastidão da planície, procura descortinar sempre algo mais para além da linha aparente do horizonte. E nesse aumento de profundidade de campo, quis olhar os ex-libris, que de uma forma ou de outra, tivessem a ver com o Alentejo que me vai na alma, com a Pátria que há dentro de mim e com a Cultura que me foi legada. Foi assim, que dum escasso lote de ex-libris, sobressaiu um (fig. 1), que passo de imediato a descrever.


Fig. 1

O EX-LIBRIS DE D. MANUEL II
Trata-se de um ex-libris do “MUSEU-BIBLIOTECA DO PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA”, onde estes dizeres estão encimados pelo ex-libris de D. Manuel II, que como é sabido foi um bibliófilo e bibliógrafo distintíssimo.
O ex-libris de D. Manuel II já foi inúmeras vezes descrito [2] após a sua divulgação pública em Portugal[3]. Inspirado na página do rosto de “O Livro e Legenda que fala de todolos feitos e paixões dos Santos Mártires”, impresso em letra gótica, em 1513, em Lisboa, por João Pedro de Cremona, por ordem de D. Manuel I.
À semelhança daquela obra, o ex-libris ostenta, lado a lado, as armas reais e a esfera armilar. Esta foi adoptada por D. Manuel I como sua “empresa” (emblema pessoal), ainda antes de ser Rei. Enquanto que o brasão de armas, foi herança familiar de D. Manuel I, a esfera armilar é um emblema pessoal. “E emblema que pela sua adopção por um príncipe português é simultaneamente uma excelente manifestação de presença no renascimento, de vontade portuguesa de estudar e conhecer o universo, de cientificamente conquistar verdades geográficas e astronómicas”.[4]
À gravura existente na página do rosto daquela obra, acrescentou D. Manuel II, as legendas “Ex Libris” e “Depois de Vós Nós / D. Manuel II”. O conjunto está envolvido por uma corda e a gravura por outra corda, mas agora com dois nós.
Através do seu ex-libris, D. Manuel II assume toda a mensagem encerrada no simbolismo da esfera armilar, ao mesmo tempo que não se esquece da sua ascendência Bragança, uma vez que a corda e a frase transcrita no ex-libris eram o emblema pessoal, dos duques de Bragança de quinhentos, que através dele exprimiam que o seu lugar na hierarquia social portuguesa era imediatamente a seguir ao Rei. Ora, sendo D. Manuel II Rei, o uso do antigo emblema ducal bragantino, assume o significado de D. Manuel II aceitar assumir um lugar secundário em relação a D. Manuel I.
VIDA E OBRA DE D. MANUEL II
D. Manuel II [5] subiu ao trono a 6 de Maio de 1908, com 18 anos apenas, em virtude de seu pai D. Carlos I e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe terem sucumbido no regicídio a 1 de Fevereiro de 1908. Tímido, inexperiente, sem gosto nem vocação para a política, D. Manuel II reinaria durante vinte e nove escassos meses, nos quais passaram pelo poder seis ministérios, cuja acção não foi além de pequenas manobras políticas. Seria destronado pelo triunfo da revolução republicana a 5 de Outubro de 1910.
Ao embarcar na Ericeira, em 5 de Outubro de 1910, para o seu exílio na Inglaterra, afirma em carta dirigida ao seu Presidente do Conselho de Ministros, conselheiro Teixeira de Sousa: “Forçado pelas circunstâncias, vejo-me obrigado a embarcar no yatch real “Amélia”. Sou portuguez e se-lo-hei sempre. Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de Rei em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao serviço do meu Paiz. Espero que elle, convicto dos meus direitos e da minha dedicação, o saberá reconhecer. Viva Portugal! Dê a esta carta a publicidade que puder. Sempre muito affectuosamente MANUEL. yatch real “Amélia”, 5 de Outubro de 1910”.[6]
Em 4 de Setembro de 1913 casa com uma prima, a princesa D. Augusta Vitória de Hohenzollern Sigmaringen, pertencente à família real alemã e da qual não teve descendência.
Viveu primeiro em Richmond e depois no Palácio de Fulwell Park, em Twickenham, onde morreu a 2 de Julho de 1932.
O casamento de D. Manuel II com uma princesa alemã, não o impediu de aconselhar os seus partidários a combater pela causa dos aliados, durante a I Grande Guerra e de visitar as tropas portuguesas na frente da Flandres.
Perante as incursões monárquicas sempre proclamou que não queria aventuras, afirmando que a Monarquia se devia restaurar pelo combate no campo legal.
Durante o exílio, que duraria até à morte, consagrou-se à investigação bibliográfica. As suas investigações foram publicadas nos dois primeiros volumes da obra “Livros Antigos Portugueses, 1489-1600, da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima, descritos por S.M. El-Rei D. Manuel em Três Volumes”. A publicação, dirigida pelos livreiros Maggs Bros, de Londres, foi impressa nas oficinas tipográficas da Universidade de Cambridge, tendo o 1º volume sido publicado em 1929 e o 2º volume em 1932. Já o terceiro volume seria publicado em 1935, após a sua morte, tendo sido completado pela sua secretária Miss Margery Withers e editado com prefácios de Aubrey Bel e Ricardo Jorge.
A monumental obra de D. Manuel II descreve 9 incunábulos, 460 livros quinhentistas impressos em Portugal e 6 no estrangeiro. Na obra indicam-se ainda, o mais concisamente possível, 3 manuscritos e 112 volumes da camoneana de D. Manuel II, impressos de 1572 a 1928.
O Sr D. Manuel de Bragança, além de descrever cientifica e miudamente cada livro, apontando todas as suas características de tipo, lugar, autoria, apresentação, utilização de vinhetas, portadas e capitulares, seriação de folhas e páginas, colocação de capítulos, prefácios, índices e estampas, ainda biografa autores e “impremidores”, ainda comenta, às vezes desenvolvidamente, os assuntos, não se proibindo, de quando em quando, do seu bocadinho de crítica histórica”.[7]
“A obra “Livros Antigos Portugueses”, orna-se com multiplas reproduções a preto e vermelho, xilogravuras, portadas, rostos, “colophons” capitulares, estampas, vinhetas e tarjas, caracterizantes de cada obra estudada, algumas de grande raridade e muitas de verdadeiro mérito etnográfico, artístico e histórico”.[8]

Fig. 2

A obra de D. Manuel II tem sido unanimente elogiada por historiadores e bibliógrafos, sendo de salientar que “...no que se refere aos livros quinhentistas portugueses, El-rei Dom Manuel é o maior bibliógrafo de todos os tempos, embora não tenha descrito todos esses livros, pois só se dedicou às várias centenas que deles possuía, mas fê-lo com tal mestria e com tanta erudição que bem merece ser designado o Rei Bibliógrafo”.[9]
A obra de D. Manuel II é, pois, uma obra de alta bibliografia, importantíssima por isso, mas também uma prova cabal do seu grande amor por Portugal, o qual ele manifestava permanentemente e que já tivera um dos seus pontos altos, quando, em 20 de Setembro de 1915, assinou o seu testamento em Londres, cuja cláusula 14 contém a disposição de as suas colecções de arte virem a constituir um Museu.
Este Museu da Casa de Bragança seria instalado no paço ducal de Vila Viçosa, passando a partir de 1940 a ser gerido pela Fundação da Casa de Bragança, cujos objectivos são consumar e perpetuar os objectivos estéticos, culturais e beneficentes do Rei D. Manuel II.
Para a instalação do Museu-Biblioteca foi transformado o paço ducal, que nos últimos anos de monarquia serviu de Casa de Campo à Família Real. Não surpreende a escolha do local, pois “De menino, criara D. Manuel, nas suas afeições grande predilecção pelo solar de Vila Viçosa; alguém já escrevera, de resto, que era íntima condição dos Braganças “o alentejanismo pelo coração”. (...) Como, em disposições de última vontade, lembrou também aquele Paço, para serem arrecadadas as preciosidades bibliográficas que, paciente, se dera a reunir, e magnanimamente, doou ao seu País...”[10]
Do vasto acervo de objectos de arte e de interesse histórico que constituem o riquíssimo património do Museu-Biblioteca, há a destacar os livros antigos, incunábulos e manuscritos, adquiridos e reunidos por D. Manuel II, durante o exílio em Londres. Entre esses livros há 69 que se podem considerar exemplares únicos no mundo e 16 que embora existam no estrangeiro, são exemplares únicos em Portugal. “O paço ducal de Vila Viçosa tornou-se o santuário da alma do Rei brigantino que ali permanece no meio dos seus objectos e dos seus livros, como imagem de um tempo que marcou a grandeza de Portugal no mundo”.[11]
D. Manuel II nascera no Palácio de Belém em 15 de Novembro de 1889, filho de D. Carlos I de Bragança e de Amélia de Orléans. Como foi a sua educação? Esmerada como era timbre da Família Real Portuguesa. “Para além dos Pyreneos, so uma casa real, a Casa d’Orléans, ao findar o seculo XVIII, educava os seus princepes com verdadeiro amor pelo caracter e pela intelligencia.”[12]
“Embora tendo assentado praça, como aspirante de marinha, a 1 de Junho de 1904, só em 1907 o especialismo do curso naval, correspondente aos preparatorios da escola Polytechnica, veio alterar o primitivo programa educativo, elaborado pelo preceptor Kerausch, e orientado no sentido de um bacharelato de lettras. O estudo da historia, das litteraturas e das linguas tomava a maior parte da profusa leccionação a que um regimen severo submetera desde os doze annos o Infante.”[13]
“Antes de conhecer o paiz de que seu Pae era Rei, foi nos livros de Historia e nas estancias dos Luziadas que o collegial, recluso nas Necessidades, o entreviu.”...”Eis os fructos e as lições do humanismo com que se alimentou a juventude de D. Manuel.” ...”Pode discordar-se da orientação dada aos primeiros estudos de D. Manuel, accusando-a de excessivamente humanista. Mas ninguém poderá contestar que o humanismo singularmente radica no caracter o culto apaixonado da belleza moral e das virtudes civicas. Esse excesso de humanismo providencialmente preparou o Infante para as eventualidades de uma realeza imprevista, destinada a defrontar-se com uma reacção democrática, ...”[14]
A esmerada educação de D. Manuel II e os bons frutos que dela houve, tornaram a sua vida e obra um corolário natural daquela educação.
Vida e obra que mereceu e continua a merecer a admiração de muitos. A propósito da morte de D. Manuel II, disse o então Presidente do Conselho de Ministros, Dr. Oliveira Salazar: “São inúmeros, na História, os exemplos de grandes homens que, exilados por infelicidades políticas, chegaram a amaldiçoar a Pátria que os baniu; mas aqueles que como o senhor D. Manuel, foram expulsos, sem culpa, da sua Pátria, e, apesar disso, continuaram a amá-la e a prestar-lhes serviços, são ainda maiores do que os grandes”.  [15] Face a estas palavras, não é de admirar que “...por determinação expressa do Governo da República, como reconhecimento por tudo quanto por Portugal fez, foi decidido o regresso do féretro ao seu país natal e a sua sepultura no Panteão Nacional, onde descansa junto de seu Augusto Pai e seu Irmão”.[16]
É assim que depois de decorridos os funerais celebrados na Catedral de Westminster, em Londres, onde se celebram as exéquias dos monarcas e dos grandes vultos britânicos, D. Manuel é transladado para Lisboa, onde tem funerais nacionais, jazendo desde 2 de Agosto de 1932, no panteão de S. Vicente de Fora.
“A História dum monarca, que em luto começara, em luto finda. Parece que um crepe, invisível e fatal, o envolvera desde o berço, sôbre o qual chorara um imperador destronado, até à surpresa da morte na terra do exílio, onde sempre se ensaüdara do seu querido Portugal”. [17]

Fig. 3
O MEU REI
Estou certo que, quem me está a ler, decerto já terá percebido que o meu Rei, é D. Manuel II [18]. Daí que não seja de estranhar que sendo a Filatelia, o rei dos meus hobbys, eu possua nas minhas colecções, objectos postais circulados cuja figura central é “O bibliógrafo”. Três delas são postais ilustrados, circulados com o selo do lado da vista (T.C.V.’s), os quais conjuntamente com o ex-libris do Museu-Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, são o fulcro do presente artigo.
Dois dos postais ilustrados circularam durante o reinado de D. Manuel II e são reproduzidos nas fig. 2 e 3. Qualquer deles tem apostos selos de 10 reis, verde, papel esmalte, denteado 14x15, com período de circulação: 1.1.1910 a 30.3.1913. Os selos representam o retrato de perfil do Rei D. Manuel II, vestido de generalíssimo, segundo desenho e gravura do busto e cercadura de Domingos Alves dos Reis.
O postal da fig. 2, é de edição privada, não identificada, reproduzindo uma das primeiras fotografias de D. Manuel II, usando a farda de generalíssimo e tendo à esquerda as Armas da Monarquia. Circulação: LISBOA 14.8.1910 a MADRID (?). Obliteração de partida, do tipo quadrangular de LISBOA CENTRAL/4ª SECÇÃO. Porte de 10 reis, correspondente aos bilhetes postais simples do serviço nacional e aos impressos para o estrangeiro.


Fig. 4
O postal da fig. 3, é de edição “GLORIA”, Porto, reproduzindo uma gravura a cores. Ao centro e dentro de uma cercadura encimada pela coroa real, D. Manuel II vestido de generalíssimo. À direita de D. Manuel II, duas bandeiras da Monarquia e à esquerda, o brasão real. Circulação: PORTO 12.6.1910 a SEINE 15.10.1910. Obliteração de partida, do tipo hexagonal de PORTO CENTRAL/3ª SECÇÃO. Porte de 20 reis, correspondente aos bilhetes postais simples do serviço internacional.
O terceiro postal ilustrado, reproduzido na fig. 4, circulou já depois da implantação da República. Tem aposto um selo de 10 reis, verde, papel esmalte, denteado 14x15, da emissão anterior, com sobrecarga “REPUBLICA” a vermelho e período de circulação: 1.11.1910 a 30.3.1913.
Este último postal, é de edição “A. MIRE”, Lisboa, reproduzindo uma gravura a cores da bandeira da monarquia, em cujo campo azul e dentro de uma cercadura, figura D. Manuel II, vestido de generalíssimo. Circulação: LISBOA 29.11.1910 a LISBOA 30.11.1910. Obliteração de partida, do tipo hexagonal de LISBOA CENTRAL/3ª SECÇÃO (A.E.) e obliteração de chegada do tipo circular de LISBOA CENTRAL/2ª SECÇÃO. No verso, flâmula obliterante constituída por 6 barras paralelas e marca do dia octogonal, datada de 30.11.1910. Porte de 10 reis, usado nos bilhetes postais simples do serviço nacional.
Os T.C.V.’s aqui apresentados são postais máximos precursores, uma vez que aconteceram acidentalmente, antes da Convenção Postal Universal, assinada no Cairo a 20 de Março de 1934, ter passado a proibir expressamente a possibilidade de expedir T.C.V.’s. Além disso circularam durante um período muito curto (o período de circulação dos selos de D. Manuel II sem e com sobrecarga “REPUBLICA” foi: 1.1.1910 a 30.3.1913), pelo que são raros. Por essa dupla circunstância, a de serem postais máximos precursores, cumulativamente raros, podem muito justamente ser considerados jóias maximófilas, não porque sejam peças do meu Rei, mas apesar disso por direito próprio, que importa aqui salientar.

Hernâni Matos
Texto publicado na revista "Convenção Filatélica", nº 4, Estremoz, Novembro de 2002.

[1] - Alguns não saberão porventura o que é um ex-libris. “É o símbolo pessoal, estampado ou impresso, geralmente em papel – de desenho heráldico, alegórico, simbólico, ornamental ou falante, onde figura também o nome e, facultativamente, a divisa do bibliófilo -, que se cola no verso da capa de cada livro possuído, para garantir a pertença da obra e favorecê-la com esse derradeiro requinte artístico” – Rato, Fausto Moreira. Manual de Ex-Librística. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1976. “O primeiro ex-libris conhecido foi usado por Frederico I da Baviera (1198). Em Portugal, o ex-libris mais antigo conhecido foi usado a partir de 1662 por Francisco de Mello e Torres (1620-1667), Marquês de Sande” – Godinho, Auto-Gélio. Ex-Libris. Associação Portuguesa de Ex-Libris. Porto, s/d.
[2] - A primeira descrição de que temos conhecimento figura em: Rosa, João. Alentejo à Janela do Passado. Edição do Autor. Lisboa, 1940.
[3] - O que terá acontecido na 1ª Exposição de ex-libris portugueses, organizada em 1927, pelo republicano Luís Derouet, que o pediu expressamente ao ex-monarca.
[4] - Azevedo, Francisco de. Marca de Posse de um Homem de Bem e de Grande Cultura: O Ex-Libris de El-Rei D. Manuel II, in No Primeiro Centenário de El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1991.
[5] - De seu nome: D. Manuel Maria Filipe Carlos Amélia Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orleães Sabóia e Saxe-Coburgo Gota.
[6] - Carta citada por Serrão, Joaquim Veríssimo. D. Manuel II (1889-1932) – O Rei e Homem à Luz da História. Fundação Casa de Bragança. Lisboa, 1990.
[7] - Notícia de “O Século”, de 2 de Julho de 1932, dia da morte de D. Manuel II.
[8] - Idem, idem.
[9] - Faria, Francisco Leite de. A Biblioteca do Senhor D. Manuel II e Alocução Proferida na Missa Solene do Primeiro Centenário do seu Nascimento, in No primeiro Centenário de El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa da História. Lisboa, 1991.
[10] - Rosa, João. Ob. Cit.
[11] - Serrão, Joaquim Veríssimo. D. Manuel II, um Grande Português, in No Primeiro Centenário De El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1991.
[12] - Queiroz, Eça de. Artigo dedicado à Rainha D. Amélia, publicado na “Revista Moderna” de 15 de Janeiro de 1908.
[13] - Dias, Carlos Malheiro. Quem é o Rei de Portugal. Illustração Portugueza. Lisboa, 18 de Maio de 1908.
[14] - Dias, Carlos Malheiro. Idem, idem.
[15] - Citação de Rosa, João. Alentejo à Janela do Passado. Edição do Autor. Lisboa, 1940.
[16] - Salazar, António. D. Manuel II, a criança que o destino tornou homem in Baêna, Miguel Sanches. Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio. Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1990.
[17] - Martins, Rocha. D. Manuel II - História do seu Reinado. Edições A,B,C, Lisboa, s/d.
[18] - Isto, apesar de filatelicamente ter um fraco pelos Braganças – ou não fosse eu alentejano.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Milagre das Rosas


Milagre das Rosas. Irmãs Flores. 

O MILAGRE DAS ROSAS
Segundo a lenda, a Rainha Isabel de Aragão (1270-1336), esposa de el-Rei D. Diniz (1261-1325) terá saído do Castelo do Sabugal, numa manhã de Inverno para repartir pães pelos mais desprotegidos. Surpreendida pelo monarca, que lhe perguntou onde ia e o que acarretava no regaço, a Rainha teria clamado: “São rosas, Senhor!” Suspeitoso, D. Dinis teria indagado: “Rosas, no Inverno?” D. Isabel expôs então o recheio do regaço do seu traje e nele havia rosas, ao envés dos pães que encobrira.
A lenda, com algumas variantes, integra a nossa tradição oral desde finais do século XIV, sendo certo que o registo mais antigo conhecido é o do retábulo quatrocentista conservado no Museu Nacional de Arte da Catalunha. Por sua vez, o primeiro registo escrito do “Milagre das Rosas” data de 1562 e encontra-se na Crónica dos Frades Menores, de Frei Marcos de Lisboa:
“(…) levava uma vez a Rainha santa moedas no regaço para dar aos pobres(...) Encontrando-a el-Rei lhe perguntou o que levava,(...) ela disse, levo aqui rosas. E rosas viu el-Rei não sendo tempo delas“
Em meados do séc. XVI, a lenda “O Milagre das Rosas” estava já amplamente disseminada. Dessa época datam o quadro anónimo, conhecido por “Rainha Santa Isabel”, do Museu Machado de Castro, em Coimbra, assim como a afamada iluminura da “Genealogia dos Reis de Portugal” de Simão Bening, baseada em desenho de António de Holanda.
A PRIMEIRA BIOGRAFIA DA RAINHA
Uma biografia anónima de Isabel de Aragão, conhecida por “Lenda ou Relação”, foi redigida imediatamente após a sua morte, por alguém que de perto com ela conviveu, provavelmente o seu confessor, Frei Salvado Martins, bispo de Lamego, ou então uma das donas de Santa Clara que a assistiram durante o tempo de viuvez. O original da biografia perdeu-se. Todavia, no Museu Machado de Castro, em Coimbra, conserva-se uma cópia quinhentista, manuscrita e iluminada, que tem o título: “Livro que fala da boa vida que fez a Rainha de Portugal, Dona Isabel, e seus bons feitos e milagres em sua vida, e depois da morte.” Nela, o autor refere que:
(…) e por qualquer lugar onde fosse não aparecia pobre que dela não recebesse esmola (…) E em cada quaresma fazia grandes esmolas a homens e a mulheres envergonhados; e no dia que se diz Ceia do Senhor lavava a certas mulheres pobres e leprosas os pés, e lhos beijava, e vestia-as e dava-lhes de calçar e contas por amor de Deus.”
Na obra, são evocados inúmeros actos de devoção e piedade cristã da Rainha e exaltadas as suas virtudes de caridade e de misericórdia, bem como as numerosas e relevantes obras sociais e o apoio prestado a conventos e congregações religiosas.
Conforme refere o biógrafo anónimo, a Rainha morreu no Castelo de Estremoz, com 66 anos de idade, no dia 4 de Julho de 1336, de uma doença súbita surgida quando se dirigia para a raia em missão de apaziguamento entre o filho, D. Afonso IV, e o neto, Afonso XI de Castela. Contra o conselho de todos, D. Afonso quis cumprir a tenção de sua mãe ser sepultada no Mosteiro de Santa Clara. A longa trasladação fez-se sob o sol aceso de Julho e, para assombro de todos, apesar dos grandes calores que se faziam experimentar, o ataúde exalava um perfume tão aprazível que "tão nobre odor nunca ninguém tinha visto", assim se lê na primeira biografia.
As virtudes da Rainha, mais tarde considerada Santa, estiveram na origem da sua beatificação por Leão X, em 1536, com autorização de culto circunscrito à Diocese de Coimbra. Em 1556, o papa Paulo IV, torna extensiva a devoção isabelina a todo o Reino de Portugal. Seria o papa Urbano VIII, dada a incorrupção do corpo e o relato dos milagres, quem proclamaria em 1625, a canonização de Isabel de Aragão como Rainha Santa.
Texto publicado inicialmente em 27 de Abril de 2011

Milagre das Rosas. Maria Luísa da Conceição.


Milagre das Rosas. Fátima Estróia.

Milagre das Rosas. Afonso Ginja.

Milagre das Rosas. Maria Isabel Catarrilhas Pires.

Milagre das Rosas. Jorge da Conceição.

Milagre das Rosas. Ricardo Fonseca.

Milagre das Rosas. Duarte Catela.

Milagre das Rosas. Carlos Alves.

Milagre das Rosas. Madalena Bilro.


Milagre das Rosas. José Carlos Rodrigues.

Milagre das Rosas. Inocência Lopes.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Cozinha dos ganhões


 GANHÃO (Início do séc. XX).
Cliché de Faustino António Martins, Lisboa.

COZINHA DOS GANHÕES (1911).
Herdade das Pinas, de D. Theodoro Rodrigues, Estremoz.

A GANHARIA
Os “ganhões“ eram assalariados agrícolas indiferenciados, que se ocupavam de tarefas como lavras, cavas, desmoitas, eiras, etc., com excepção de mondas, ceifas e gadanhas. A sua actividade está registada no cancioneiro popular:

“Eu sou um ganhão da ribêra,
Da ribêra sou ganhão.
Lavro com dois bois vermelhos
Que fazem tremer o chão. [3]

“Bom arado e bom tomão
Faz’uma bela intanchadura;
Boa junta e bom ganhão
Deitam um rego à d’reitura”. [3]

Numa lavoura existiam duas espécies de ganhões: os de pensão e os rasos. Os primeiros ajustados ao ano, pelo S. Mateus e os segundos por temporada de faina agrícola, ganhando estes menos que aqueles.
O conjunto dos ganhões era designado por “ganharia“ ou “malta“ e tinha por dormitório a chamada “casa da ganharia “ ou “casa da malta“, casa ampla que podia acomodar vinte a trinta homens, em tarimbas improvisadas ao longo das paredes. A casa da ganharia tinha sempre uma lareira espaçosa, onde à noite, os ganhões se sentavam nos burros, bancos improvisados com pernadas de azinheira ou de sobreiro. Aí se enxugavam de eventuais molhas, se aqueciam e conversavam pelo serão fora.
A ganharia tinha como mandante o “abegão“, que só recebia ordens do grande lavrador, que o tinha como seu representante em todas as tarefas agrícolas. Era ele que dava as ordens para começar a trabalhar, comer ou parar e que tratava da acomodação e pagamentos da ganharia. Era ele quem determinava o ritmo de tudo:

“Cá ‘stou á porta da rua,
Sem manta nem cassação;
Oh rapazes, vão lá fora,
Que lá vem o abegão.” [6]

O abegão dava o apoio necessário aos ganhões:

“Corri matos e charnecas,
Eu mais o meu abegão,
Para achar um par d’aivecas
À minha satisfação.” [6]

A condição de abegão era cobiçada pelas raparigas casadoiras:

“Belo monte da Gramicha
Que já não tem abegão
Eu hei de p’ra lá mandar
O amor do meu coração.” [6]

O abegão trabalhava e comia juntamente com os ganhões, mas dormia em casa própria com o “sota“, que era coadjutor e substituto do abegão em tudo que podia e sabia. A condição de sota também era invejada. Daí que estes fossem capazes de dizer às moças:

“Sou sota no taboado,
Na Pina dou-te partido;
Se eu não sou do teu agrado
Diz-me qual é o motivo.” [6]

Algumas gostariam de ter um sota por padrinho de casamento:

“No dia em que eu casar
É que levanto a bandeira,
O meu padrinho há de ser
O sota lá da Padeira.” [5]

AS REFEIÇÕES DA GANHARIA
No monte, as refeições da ganharia tinham lugar na chamada cozinha dos ganhões. Aí se sentavam em burros dispostos ao longo de uma mesa comprida e estreita. A cozinha dispunha igualmente de uma lareira espaçosa onde se podia cozinhar em panelas de ferro.
No Outono, no Inverno e na Primavera, as refeições da ganharia consistiam em almoço (antes do nascer do sol), merenda (ao meio-dia) e ceia (ao anoitecer).
Normalmente o almoço, ao levantar, constava de açorda acompanhada com azeitonas. A merenda, no local de trabalho, consistia em pão e queijo, um para cada homem e pão à descrição. A ceia, ao regressar do trabalho, baseava-se em olha com batatas e hortaliças, condimentadas em dias alternados com toucinho ou azeite. No dias de azeite, cada homem recebia meio queijo e azeitonas.
No Verão, as refeições da ganharia constavam de almoço (às sete da manhã), jantar (ao meio-dia) e merenda ou ceia, conforme se comia respectivamente ao sol-posto ou à noite. O almoço constava de sopas de cebola acompanhadas com azeitonas e meio queijo por cabeça.

“Triste vida a dum ganhão
agarrado ao rabanejo,
de manhã é calatrão [a]
ao meio dia pão e queijo.” [7]

O jantar consistia em olha de legumes com toucinho e morcela ou badana. A merenda ou ceia compunha-se de gaspacho acompanhado com azeitonas e meio queijo por homem. Em vez do gaspacho também podiam ser batatas cozidas temperadas com azeite e vinagre.
A mesa da cozinha dos ganhões era posta pelo abegão e pelo sota, que se sentavam cada um à sua cabeceira da mesa. A entrada dos ganhões na cozinha só se verificava depois do abegão ter bradado para o exterior: “Ao almoço!”, ”À ceia!” ou “Ao jantar!”, conforme a refeição de que se tratava. A malta acudia logo à chamada, tirava o chapéu e sentava-se à mesa sempre no mesmo lugar. O que era para comer já tinha sido previamente vazado pelo abegão e pelo sota, em grandes alguidares, conhecidos por “barranhões”. Só faltava migar as sopas de pão, o que cada um fazia puxando da navalha que trazia consigo. Lá diz o adagiário: "Sopa de ganhão, cada três um pão."
Amolecidas as sopas, o abegão dava ordem de comer, soltando um “Com Jesus!”. De cada barranhão comiam quatro a seis ganhões, cada um dos quais metia sempre a colher no mesmo local do barranhão, já que "Não há guerra de mais aparato que muitas mãos no mesmo prato."
O abegão e o sota comiam cada um deles em sua tigela, mais pequena que o barranhão e que era unicamente para cada um deles.
"A hora de comer é a da fome" e por isso, as refeições corriam sem pressas, em silêncio e ordeiramente, com cada um concentrado no acto de comer, já que "Quem não é para comer não é para trabalhar."
Durante as refeições, se alguém precisava de pedir qualquer coisa, batia com a navalha na mesa. Se alguém batesse no barranhão era para pedir a rodilha para se limpar.
Quando todos tinham deixado de comer, o abegão punha-se imediatamente de pé, o que correspondia a dar ordem de retirar, o que cada um fazia, voltando a pôr o chapéu na cabeça. No exterior ou na casa da malta era então chegada a altura dos fumadores puxarem da onça de tabaco e do livro de papel, para enrolarem um cigarro que acenderiam com fuzil e isca:

“O regalo do ganhão
É comer em prato cheio,
Beber vinho, se lh’o dão,
Fumar do tabaco alheio.” [6]

No início do século passado, ainda persistia o costume de no final da refeição, o abegão juntar as mãos e dizer “Demos graças a Deus.” A malta punha então as mãos e pelo menos aparentemente, todos rezavam e só deixavam de o fazer, quando o abegão se benzia, dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Nessa altura benziam-se e só depois se retiravam.

A CONDIÇÃO DE GANHÃO
A vida de ganhão era uma vida dura e humilde, saída em sina a homens robustos, com escassa possibilidade de, por mérito próprio, conseguirem ascender à condição de sota ou de abegão. Daí o pendor negativo do pensamento de alguns deles:

“Por me ver’s de pau e manta
Não cuides que sou pastor,
Sou um pobre ganhão
Do conde de Vila-Flor.” [6]

“Triste vida a de um ganhão,
Andar sempre a trabalhar!
Dá-lhe Deus uma doença,
Vai morrer ao Hospita!” [6]

Alguns queixavam-se dos pais das moças em idade de casar:

“Já não há quem queira dar
Uma filha a um ganhão.
Pensam que lhe há de vir
Das ilhas um capitão…” [3]

Outros desiludiam as próprias moças:

“Tenho vida de ganhão,
Não te posso assistir:
De dia ganho o meu pão,
De noite quero dormir.” [3]

Todavia, alguns tinham consciência de classe, que se traduzia em profunda crítica social:

“Mais vale um ganhão
Todo roto e esfrangalhado,
Que valem trinta pandilhas
Dos que usam marrafa ao lado.” [3]

“Mais vale um ganhão
Sem manta nem nada,
Que trinta peraltas
De bota engraxada.” [7]

E que pensavam as moças casadoiras? Nem todas pensariam o mesmo. Umas diziam que:

“Eu não quero amor ganhão,
Que não quero ser ganhoa,
Quero o amor hortelão,
Que eu quero ser horteloa.” [6]

Algumas iam mesmo mais longe.

“Ò moças não queiram
casar com ganhões,
não ganham avondo [b]
p’ra comprar botões.” [7]

Porém, outras tinham opinião contrária:

“Todas me lavam a cara,
Do meu amor ser ganhão:
É bonito, eu gosto dele,
É honrado e ganha pão.” [6]

Algumas lamentavam-se da sua sina:

“Eu nasci num berço d’oiro,
Quem havia de dizer
Que nos braços d’um ganhão
Havia de vir morrer!” [6]

O que é um facto, é que a avaliação predominante, não era favorável aos ganhões:

“Quem tiver filhas bonitas,
Não as deixe ir a funções,
Que são rodilhas de todos,
Onde se limpam ganhões.” [6]

Já que “Todo o preto tem o seu dia”, anualmente o ponto alto da vida de um ganhão era a ida às Festas do S. Mateus, a Elvas:

”Ó feira de S. Matheus,
Onde as ganharias vão
A gastarem o dinheiro
Da temporada do v’rão.”


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[a] - Sopas de cebola.
[b] - O bastante.

Publicado inicialmente em 26 de Abril de 2011

BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CAPELA E SILVA, J. A . Ganharias. Imprensa Baroeth. Lisboa, 1939.
[3] - LEITE DE VASCONCELLOS, J. Cancioneiro Popular Português, vol. I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1971.
[4] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[5] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[6] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[7] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[8] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.

sábado, 23 de abril de 2011

Maioral e ajuda a comer


  Maioral e ajuda a comer, peça da barrística popular estremocense da autoria
de Sabina Santos (1921-2005).

 Maioral e ajuda a comer, peça da barrística popular estremocense da autoria
de Sabina Santos (1921-2005).

A HIERARQUIA NA PASTORÍCIA
No Alentejo de antanho, as relações de produção estavam fortemente hierarquizadas. De acordo com as suas funções, os pastores recebiam diferentes designações: “Rabadão” era o pastor chefe, a cargo de quem estavam a fiscalização e inspecção de todos os rebanhos de gado lanígero do mesmo proprietário. Um grande lavrador, podia possuir alguns milhares de cabeças, espalhadas por numerosos rebanhos, mas tinha ao seu serviço um único rabadão. “Maioral” era o primeiro pastor de cada rebanho. Havia tantos maiorais quantos os rebanhos. “Ajuda” era o segundo pastor do rebanho.
OS PASTORES NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
A pastorícia, actividade tradicional com peso na economia do Alentejo d’outrora, está bem gravada na nossa memória colectiva, pelo que faz parte do imaginário popular e está largamente representada na barrística popular estremocense. De facto, são conhecidas as seguintes figuras: pastor (simples), maioral e ajuda, pastor em pé com dois borregos em frente, pastor com o borrego às costas, pastor sentado a fazer as migas, pastor sentado a comer as migas, pastor deitado a fazer as migas, pastor de harmónio (em pé), pastor de harmónio (sentado), pastor ofertante em pé (com borrego), pastor ofertante em pé (com 1 pomba), pastor ofertante em pé (com 2 pombas), pastor ofertante em pé (com 3 pombas), pastor ofertante ajoelhado (com borrego à frente) e pastor ofertante ajoelhado (com chapéu à frente). Não são conhecidas representações de pastores, em peças do tipo “assobio” ou “gancho de meia”.
A composição aqui mostrada sob múltiplos ângulos, é uma representação de “Maioral e ajuda”, foi adquirida no Mercado das Velharias, em Estremoz, no passado sábado, dia 16 de Abril e é da autoria da celebrada barrista Sabina Santos (1921-2005).
UMA QUESTÃO DE TERMINOLOGIA
Sabina Santos trabalhava para a extinta Olaria Alfacinha, cuja Tabela de Preços dos Bonecos de Estremoz, datada de 1976, designa esta composição por “Pastores a merendar”. Trata-se a nosso ver de uma designação aceitável, pois são dois os pastores que estão a comer, seja ou não a merendar. Todavia, aquela designação não traduz a existência de uma hierarquia entre eles.
Posteriormente a Sabina Santos, outros barristas passaram a designar esta composição por “Pastor e ajuda a comer”, designação igualmente aceitável, uma vez que revela a presença de uma hierarquia entre eles. Contudo, a nosso ver, esta designação tem o inconveniente de chamar a um deles pastor, como se o outro não o fosse também.
A nosso ver, a designação mais adequada para esta composição é “Maioral e ajuda a comer”, uma vez que dela está ausente qualquer ambiguidade, por mostrar a existência de uma hierarquia entre os pastores.
MEMÓRIA DESCRITIVA
Passemos de imediato à descrição da peça em estudo. Trata-se de uma peça constituída por três figuras: dois pastores de ovelhas (o maioral e o ajuda) e o cão do rebanho, já que “Não há pastor sem rebanho” e “Perdido é o gado que não tem pastor nem cão”. Qualquer dos pastores usa na cabeça, o típico chapéu aguadeiro, típico do Alentejo e assenta o joelho direito na Terra-Mãe, como se estivessem a venerar um tarro destapado, repleto de olorosas migas, do qual o maioral se está a servir com uma avantajada colher que agarra com a mão direita, enquanto o ajuda empunha outra e se prepara para igual procedimento. Qualquer deles tem a mão esquerda apoiada no joelho homólogo. Para além disso, o ajuda segura um pão.
O facto de estarem a comer do tarro é revelador de que as migas não foram confeccionadas no local, mas no monte do lavrador, onde o ajuda as foi buscar, uma vez que “Abala pastor com as espaldas ao sol”.
No que respeita ao traje, o ajuda usa botas de cabedal atacoadas, calças de ganga azul e pelico de pele de borrego ou ovelha. Este é como que um colete fechado, abotoado à frente por três pares de botões pretos e que substitui o casaco. Por debaixo do pelico, uma camisa creme fechada em cima por um par de botões vermelhos e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. Quanto ao maioral traz botas de cabedal atacoadas e pintadas de preto. Por cima das calças usa safões. Estes são uma peça de vestuário confeccionada em pele de borrego ou ovelha, que se ata à cinta e se ajusta às pernas por intermédio de cinco atilhos com um botão amarelo na ponta, o qual entra no caseado dos safões. Estes têm a função de aquecer as pernas no Inverno, bem como proteger as calças. O maioral usa ainda uma samarra feita de pele de borrego ou ovelha. Esta é como que uma casaca fechada, abotoada à frente por três pares de botões amarelos e com um rabo que dá até à curvatura das pernas. Por debaixo da samarra, uma camisa cor de laranja, fechada em cima por um par de botões azuis e cujas mangas apresentam uma fileira lateral de dois botões da mesma cor. O maioral apresenta ainda sobre os ombros, um lenço às listas coloridas, como se fosse uma estola assente no pescoço e com as pontas pendentes para a frente.
Dos agasalhos de pele de borrego usados pelos pastores, existem algumas referências na literatura oral, a começar pelo adagiário que proclama que “0 agasalho e a balsa não pesam ao pastor”, enquanto que o cancioneiro popular refere que:

“Fui fazer uma viagem,
De Vendas Novas aos Pegões,
Para comprar umas peles,
Para fazer uns ceifões.” [4]

E ainda:

Tod’a vida gardê gado,
E sempre fui ganadêro,
Uso cêfoes e cajado,
E pelico e caldêra.” [4]

No chão, de um dos lados do tarro, uma cacheira que tal como o cajado e o gravato, é como que o bordão do peregrino, pois auxilia na marcha. A ela se arrimam os pastores quando estão parados, a ver se aliviam as pernas. Serve igualmente de arma de defesa contra ladrões e animais selvagens. É também uma terrível arma usada em casos de desavenças, como por vezes acontecia nas feiras de gado. Mas a cacheira é, sobretudo, a extensão do braço do pastor e serve para conduzir o gado, sendo por vezes lançada como arma de arremesso em direcção a ovelhas tresmalhadas. Nas cacheiras, cajados e gravatos, os pastores gravam a navalha, marcas indicativas do número de cabeças de gado que têm à sua guarda. Estas variam de pastor para pastor. Um tipo de marcação possível é a seguinte: redondela (100), triângulo (50), cruz (20), mossa (10), ponto (1).
Do outro lado do tarro, um corpulento, possante e ágil rafeiro alentejano, guarda, acompanhante, defensor e protector do rebanho, de orelhas arrebitadas, tem a língua de fora da boca, como quem saliva, impaciente pelo seu quinhão de migas.
O chão onde assentam todas as figuras é verde, pintalgado de branco, amarelo e cor de laranja, numa alegoria a um chão atapetado por erva e tufos coloridos de flores silvestres.
HIERARQUIA DA PASTORÍCIA TRADUZIDA NA BARRÍSTICA
Uma análise pormenorizada da composição, revela o modo como a barrista sublinhou a existência duma hierarquia entre os dois pastores, a qual tem a ver com aquilo que eles trajam e que é revelador do melhor salário do maioral, quando comparado com o do ajuda.
Na verdade, o maioral está melhor protegido do frio que o ajuda, pois usa safões que lhe protegem as pernas e samarra que lhe protege o peito, as costas e o traseiro. Em contrapartida, o ajuda não usa safões que lhe protejam as pernas do frio e o pelico, protege-lhe apenas o peito e as costas, que não o traseiro.
Por outro lado, o maioral usa botas pretas atacoadas, supostamente melhores que as botas atacoadas do ajuda, confeccionadas na cor natural do cabedal.
O maioral, usa, de resto, um lenço às listas coloridas, qual estola de dignatário pastoril, o que o distingue sobremaneira do ajuda.
NOTA FINAL
Antigamente no Alentejo, a profissão de pastor era reservada a homens robustos que conseguissem resistir às noites de Inverno dormidas ao relento e ao terrível Sol alentejano que queima como fogo e que por vezes há que aguentar sem uma única sombra a servir de abrigo. Em geral, a profissão de pastor era como que hereditária, transitando de pais para filhos. Era profissão para toda a vida, como que uma sina que, por vezes, o amor de uma mulher conseguia interromper:

“Já não há quem queira dar
Uma filha a um pastor.
É que casar, hoje em dia,
É só bom p’ró lavrador.” [4]

“Toda a vida guardei gado,
Toda a vida fui pastor,
Deixei botins e cajado
Por via do meu amor.” [4]


BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CONDE DE FICALHO. O elemento árabe na linguagem dos pastores alentejanos. Revista “A Tradição”. Serpa. Série I - Ano I (1899) – nºs 6 (Junho), 7 (Julho), 8 (Agosto), 9 (Setembro ) e 10 (Outubro).
[3] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[4] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[5] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.