segunda-feira, 11 de abril de 2011

As mercearias antigas


Bilhete-postal ilustrado, não circulado, da Mercearia de José Tomé Natário Feteira, na Rua
5 de Outubro, nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Esta mercearia seria
trespassada pelo proprietário ao seu sobrinho Alfredo Carqueijeiro Tomé (pai do Major
Mário Tomé) que desde jovem trabalhava na loja do tio. No início dos anos 50 o novo
proprietário foi para a Guiné trabalhar com o irmão, Henrique Carqueijeiro
Tomé, no estabelecimento de que este era sócio, o "Salgado e Tomé". Nessa altura a loja
foi trespassada a Ester de Matos, irmã do Coronel Homero Matos que foi director da PIDE
e comandante da Escola Prática de Cavalaria. Mais tarde viria a ser ali a Mercearia de Luís
 Raimundo, mais conhecida por Loja do Boneco. Actualmente funciona ali a Livraria e
Papelaria Aníbal, fundada por Aníbal Falcato Alves. (Texto baseado em informação prestada
pelo Major Mário Tomé, em 2013).

AS MERCEARIAS DE ESTREMOZ
Nos anos cinquenta do século passado existiam inúmeras mercearias em Estremoz, que procuravam dar resposta às necessidades de consumo da população.
Havia mercearias em muitas das ruas da cidade, algumas das quais eu frequentava, para satisfazer os avios, maiores ou menores, que a minha mãe me encarregava de fazer. Recorrendo ao nome dos proprietários, cito algumas situadas na vizinhança imediata dos locais em que morei: Genaro Manteigas (Rua do Almeida, 3), Adriano Pimenta (Largo da Liberdade, 12), Luís Campos (Largo General Graça, 31), Luís Raimundo (Rua 5 de Outubro 16), Miguel Silveira (Rua Dom Vasco da Gama, 3), Mendes, Meira e Nisa (Praça Luís de Camões, 13-14), Luís Rosado (Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108) e Figo (Rossio Marquês de Pombal, 73).
O ATENDIMENTO
Quando eu morava na Rua da Misericórdia, número sete, numa casa que foi abatida para dar lugar à ampliação do edifício dos Correios, ia-me aviar à do Senhor Adriano Pimenta, no Largo 28 de Maio, que após o 25 de Abril, conquistou o direito à sua primitiva designação de Largo da Liberdade.
Quando na minha condição de migrante, fui morar para a Rua 5 de Outubro, número quarenta e oito, passei a aviar-me à do Senhor Luís Campos.
A mercearia do Senhor Adriano Pimenta era uma pequena mercearia, onde ele era a única pessoa que assegurava os avios, ainda que tivesse um rapaz, o Anselmo, encarregado de fazer mandados no exterior. O Anselmo ia buscar as coisas ao armazém, que era ali bem perto, assim como levar as compras a casa dalgum freguês.
O Senhor Adriano Pimenta era um benfiquista ferrenho. Quando despia o guarda-pó da mercearia, era vê-lo, ufano, de emblema na lapela, a caminho de casa, com o orgulho próprio de ser benfiquista. O Senhor Adriano era um contador de histórias nato, uma pessoa sempre bem disposta, que não se ensaiava nada de pregar uma partida das valentes, a algum sportinguista menos avisado. E quando algum tinha o azar de lhe cair no laço, ele ria a bandeiras despregadas, com sonoras gargalhadas que contagiavam os presentes. Ir à mercearia do Senhor Adriano Pimenta era um tratamento eficaz contra a má disposição.
Na mercearia do Senhor Luís Campos, o proprietário geria a mercearia duma posição estratégica, ao fundo, onde normalmente estava sentado a uma escrivaninha, colocada perpendicularmente a um extenso balcão. Era aquilo a que se pode chamar um cavalheiro à antiga portuguesa, sempre atento e solícito para com os seus clientes, no sentido de bem os servir. Ao balcão trabalhavam vários caixeiros e alguns marçanos, à procura de tarimba e da inerente promoção a ser conferida pelo patrão, quando já tivessem traquejo. Ser caixeiro era uma profissão invejada na cidade. Diz o cancioneiro popular:

“Em Estremoz fui caixeiro,
Em S. Bento, lavrador,
No Canal, carpinteiro,
Em Évora Monte, cantador.”

Um dos caixeiros mais antigos era o Senhor Marcial Louro, que foi hoquista, sportinguista ferrenho, daqueles de comer caldo verde em dia de festa. Usava o cabelo, todo ondulado, penteado para trás com brilhantina e dizia-se que dormia com rede no cabelo, a fim de não desmanchar o penteado. Outro caixeiro era o Senhor Manuel Basílio, que era o contador de histórias da mercearia, já que uma mercearia à antiga tinha que ter de tudo. O Senhor Manuel Basílio estava sempre bem disposto e tinha uma língua afiada quando era preciso – coisas que o Senhor Luís Campos aprendeu a gerir, a bem da clientela. Outro Caixeiro era o Senhor Rúdio, careca, mas de bigode e pêra, para mostrar cabelo. O Senhor Rúdio tinha o vago ar, de inspector de qualquer coisa e, trabalhava normalmente à caixa registadora, já que tinha uma perna mais curta que a outra. Porém, como em tempo de guerra não se limpam armas, quando a clientela abundava, o que era frequente, lá tinha que dar à perna e desenrascava-se como os restantes.
O AVIO E AS EMBALAGENS
Na época, a maioria dos géneros que hoje são vendidos em embalagens individuais estanques, eram manipulados pelos merceeiros que os retiravam das tulhas, dos sacos, dos caixotes, das latas de grandes dimensões, donde eram retirados com corredoras de dimensão adequada, geralmente de alumínio, mas também as havia em latão, folha de flandres e zinco. Por vezes também eram utilizadas pinças metálicas.
No avio, comprava-se sempre açúcar louro, o qual era fornecido ao cliente dentro dum cartuxo de papel acinzentado. O caixeiro batia o cartuxo em cima da pedra mármore do balcão, a fim de o açúcar assentar e com recurso a uma corredora, deitava ou retirava mais uma pitada de açúcar ou duas, até o fiel da balança “António Pessoa”, indicar o peso pretendido. Depois era o ritual do fecho do cartucho, que ficava imponentemente vertical, com o vago ar de prisma paralelepipédico, com duas orelhas de papel. Cinquenta anos depois, continuo a gostar de ver um cartucho com as orelhas arrebitadas.
Assim se pesava também o sal, a farinha, o arroz, o grão, o feijão e o café. Só que neste último caso, o aroma começava logo ali a povoar-nos as narinas e a revelar ou não a sua qualidade.
Dada a variedade dos produtos encartuchados, as mercearias dispunham de uma gama diversificada de carimbos que eram apostos nos cartuchos, para cada um de nós saber o que se transportava lá dentro.
A manteiga e a banha de porco eram retiradas de latas grandes, com o auxílio das respectivas espátulas e eram pesadas em papel vegetal, com o qual se fazia o embrulho, o qual, por sua vez, era embrulhado em papel manteigueiro.
O azeite era aviado em garrafa levada de casa pelo cliente e medido e tirado de um bidão, situado por debaixo do balcão, com o recurso a uma bomba de dar à manivela. Este azeite, na altura da sua compra ao fornecedor, tinha a acidez testada pelo merceeiro, que para o efeito dispunha dum estojo de óleo-acidímetro. É que a vida comercial era respeitável e não se podia vender gato por lebre.
As especiarias (pimenta, cravinho, cominhos, noz moscada, colorau) eram pesadas em folhas de papel de chá, de dimensão adequada, com as quais se improvisava a embalagem. Esta, algumas vezes era cónica e obtida por enrolamento, fixado no fim, através de dobragem na ponta.
As bolachas, independentemente de serem Marias, torradas ou de água e sal, eram fornecidas às mercearias em caixa cúbica, com cerca de 25 centímetros de aresta, fabricadas em folha-de-flandres, forrada a papel vegetal. Dali eram retiradas com uma pinça metálica, na quantidade pretendida e enroladas em papel de chá ou acomodadas num cartucho, dependendo da quantidade. Em ocasiões especiais também se compravam biscoitos sortidos, que eram logo pesados em cartuxos. Chegavam à mercearia, embalados em caixas como as das bolachas, mas tinham para aí metade da altura daquelas.
Enlatados, levavam-se para casa: atum “Tenório”, sardinhas em azeite “Tricana” e salsichas “Frescata”. Embalados, levavam-se caixas grandes de fósforos “Clube”, a fim de serem usados na cozinha, assim como farinha “Amparo”, “Predilecta” ou “33”, para adicionar ao leite do pequeno-almoço.
Habitualmente levava-se bacalhau que a gente escolhia e que era cortado com a respectiva faca, mesmo ali à nossa frente, para depois ser embrulhado em papel de jornal. Era uma operação que, invariavelmente, eu acompanhava sempre atento. Quando uma vez no liceu, o meu professor de História, o saudoso Dr. Azevedo, a propósito da Revolução Francesa perguntou à turma:
- Sabem o que é uma guilhotina?
Eu respondi desembaraçadamente:
- É um género de faca de bacalhau para cortar a cabeça à Nobreza!
O vinagre e o vinho compravam-se avulsos na taberna, embora também pudessem ser comprados na mercearia. Ali, se compravam para as ocasiões especiais, garrafas de vinho maduro, verde, do Porto, moscatel, assim como licores, brandes e aguardentes.
As batatas, as cebolas, os alhos, os ovos, os queijos e os enchidos eram geralmente comprados no mercado municipal, mas também podiam ser comprados na mercearia.
Para a higiene pessoal compravam-se sabonetes de glicerina ou “Musgo Real”, assim como "Pasta Medicinal Couto”.
Para a lavagem da roupa e para fazer barrelas, levava-se sabão azul e branco ou sabão macaco, vendidos à barra. Se não queríamos uma barra inteira, o caixeiro cortava com mestria, o peso certo de sabão. E dizia ufano:
- Nunca falha!
É que ele sabia empiricamente que, sendo a barra de sabão homogénea, o peso de sabão era proporcional ao comprimento cortado na barra. Feito isto, o sabão era meticulosamente embrulhado em papel de jornal, que assim cumpria mais uma fase da sua reciclagem.
O ROL
Quando ia às compras levava sempre um rol, elaborado previamente pela minha mãe. Só se comprava o que fazia falta, já que o dinheiro não nasce do chão e acabávamos de sair da II Guerra Mundial e das cadernetas de racionamento.
O rol servia também para fazer as contas do avio, desde que não se quisesse factura, o que era o meu caso. No final do avio, o caixeiro conferia sempre as coisas connosco, não se desse o caso de ter havido algum engano.
O REGRESSO A CASA
Para os miúdos como eu, o melhor do avio era o fim, pois o Senhor Luís Campos era generoso e dava guloseimas à rapaziada: rebuçados de fruta, de coco, de seiva de pinheiro, de Santo Onofre ou do Dr. Bentes. De resto, tinha sempre uma palavra amável, bem como recomendações para os meus pais, assim como os caixeiros, os quais, cada um à sua maneira, procediam de modo análogo, seguindo as orientações do patrão.
O AVIO LEVADO A CASA
O Senhor Luís Campos tinha um empregado, o Mourinha, que num carro de mão, de razoáveis dimensões, ia entregar os grandes avios, às casas dos fregueses da “alta”, assim como transportar mercadoria da estação da CP para a mercearia. Só em condições excepcionais, o Senhor Luís Campos recorria aos serviços dum carreiro, que trabalhasse com um carro de carga (alentejano, é claro!), puxado por uma besta. Lembro-me de dois carreiros: o Fateixa e outro do qual não recordo o nome, mas que trabalhava para a avó do Serafim, meu amigo e companheiro de carteira na Escola Primária. Eram eles que faziam o grosso do transporte que abastecia as mercearias. O cancioneiro popular regista a sua presença:

“Ailé,
Lá em Estremoz,
Meu amor é carreiro,
Acarreta arroz.”

O LIVRO DOS FIADOS
O “Livro dos Fiados” era uma instituição que vigorava nas antigas mercearias, no tempo em que toda a gente tinha vergonha. Ou porque o chefe de família não tinha recebido ainda o magro salário ou por dificuldades económicas, eram registadas em livros estreitos e de capa negra, os avios que as carências da época não permitiam satisfazer imediatamente, mas que a honra de cada um avalizava que seriam pagas, o que infalivelmente era feito, no mais curto espaço de tempo possível.
OLHANDO PARA TRÁS
O capitalismo ou seja a ânsia de lucro fácil e o desrespeito pela condição humana, quer de consumidores, quer de funcionários, não tinha ainda inventado, nem os supermercados nem os hipermercados, os quais são templos de consumo aos incautos, que quando se aviam estão a trabalhar para o dono da grande superfície, que não lhes paga para isso. Muitos acabam por comprar o que não querem, já que não tiveram a disciplina de fazer um rol de compras, como a minha mãe, sensatamente fazia. E que dizer do desperdício que originam, com a parafernália de embalagens e sacos que lhes impingem, umas vezes dados, outras vezes comprados?
Nos anos cinquenta do século passado, as mercearias antigas eram os nossos templos do consumo possível e necessário. Então, a barriga dava horas, como, de resto, hoje dá, porque a barriga é um imparável relógio suíço. Contudo, nós éramos mais sensatos que muitos hoje são, pois as compras eram apenas para satisfação das necessidades inadiáveis e nunca para escape de frustrações acumuladas. Comprava-se com conta, peso e medida. E éramos felizes, muito mais que alguns são hoje, com todas as loucuras de consumo que cometem.
Oh que saudades que eu tenho das mercearias antigas!

Publicado anteriormente a 11 de Abril de 2011
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

Bilhete-postal comercial da Mercearia de José Tomé Natário Feteira na Rua 5 de Outubro,
 nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de Estremoz, em 30 de Janeiro
de 1912, para o Porto. Impresso na Tipografia Minerva, de Adriano Motta, editora do  jornal
 “Eco de Estremoz”, onde iniciei a minha actividade jornalística, cerca de 1960.

Bilhete-postal comercial e ilustrado da “Loja Popular” de Joaquim Teodoro Duarte Campos,
no Largo General Graça, nº 31, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de
Estremoz, em 29 de Fevereiro de 1916 (em plena 1ª Guerra Mundial), para o Porto. A Joaquim Teodoro Duarte Campos sucedeu Luís Campos, cuja actividade comercial é referida no texto.

Bilhete-postal dos Correios com carimbo comercial da “Mercearia Central” de Luís Rosado,
no Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108. Expedido de Estremoz, em
12 de Maio de 1918 (já no final da 1ª Guerra Mundial), para o Porto. Mais tarde foi ali a
Mercearia  de Rosado & Louro.     

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Cristina Malaquias: A Alquimia das Cores


O papel é um deserto com sulcos epidérmicos que revelam a sua própria História. Nele, Cristina Malaquias começa por lançar aguarela como quem repete o gesto augusto do semeador. De seguida, a Artista transfigurada em Éolo, deus dos ventos, sopra a aguarela que passa a povoar aquele deserto. De entremeio, as suas mãos sísmicas ondulam e determinam o curso da tinta que se transfigurará em animada ria com uma miríade de braços, como uma Veneza de cores. Ora arbustos entrelaçados como amantes, que se possuem languidamente na procura do infinito, ora raízes que estabelecem uma ligação forte à Terra-Mãe, porque é preciso resistir e gritar bem alto: - “Nós estamos aqui!”. Ora ainda pássaros que se libertam do peso terrestre e ascendem ao transcendente, porque é preciso cumprir o sonho de Ícaro.
Alquimista das cores, Cristina Malaquias, na procura incessante da Pedra Filosofal, lixivia as aguarelas, cujas cores se transmutam e adquirem textura, brilho e luminosidade. Visionária na concepção e perfeccionista no acto de criação, a Artista é uma permanente insatisfeita na procura de novos caminhos e na descoberta de técnicas que potenciem a sua visão mágica das coisas. O seu atelier transforma-se em laboratório alquímico onde para nosso gáudio, a magia acontece.
“Soprados” se chama a técnica e “Soprados” foi o título escolhido pela Artista para a Exposição de quarenta trabalhos, que de 2 de Abril a 4 de Junho, estará patente ao público na Sala de Exposições do Centro Cultural Dr. Marques Crespo, em Estremoz.
Cristina Malaquias que há cerca de 20 anos está radicada entre nós, tem um extenso currículo como ilustradora de livros escolares e infanto-juvenis. Tem igualmente exposto, um pouco por todo o país e também pelo estrangeiro.
Data de 2008, a sua última exposição individual de “Ilustração e Desenho” no Centro Cultural.
A Associação Filatélica Alentejana, vocacionada para uma vasta gama de actividades exposicionais, considera um privilégio ter acolhido no seu espaço, a exposição com que a Artista divulga esta técnica inédita, de sua criação. Obrigado Cristina por esta bela exposição, que nos enche e colore a alma, com toda a sua riqueza e com toda a sua beleza.
Bem haja!

Estremoz, 28 de Março de 2011
(In catálogo de “SOPRADOS”. Centro Cultural Dr. Marques Crespo. Estremoz, Abril/Maio de 2011)

















quarta-feira, 30 de março de 2011

Cristina Malaquias: A Visão Mágica das Coisas


Um olhar fotográfico que regista a imagem e dela a forma, a volumetria, a medida, a profundidade, a cor, a textura, o contraste, a luminosidade e o brilho.
Um olhar analítico que cruza o ar, no espaço e no tempo e que, no acto visual de dissecar as partes de cada todo, procura nelas os elos de ligação, bem como as harmonias e os ritmos que as hão de reagrupar e reunificar na reconstrução dialéctica do todo.
Um olhar privilegiado que através da miríade de redes neuronais, funciona como um pantógrafo que pictogroficamente transmite à mão dextra, o impulso nervoso que não é mais que o feedback visual do raio luminoso que impressiona a sua retina e a sua alma de Poeta.
Mão que empunha um lápis de cor com a mesma determinação olímpica do ganhão que lavra a Terra-Mãe para dela extrair o seu pão de cada dia.
Mãos solidárias e cúmplices com a folha de papel que tacteiam, exploram, afagam e fecundam, ora energicamente ora duma forma mais pausada, mas sempre com a doçura própria de quem ama.
Mãos que vibram como quem dedilha com mestria uma guitarra portuguesa e arranca dela o que de mais profundo tem o sentir da Alma do Povo.
Mãos que sofrem como o olhar ou o pensamento, pois doloroso é o Acto Criador.
Este é, em traços gerais, necessariamente simplificadores e redutores, o esboço tosco do perfil biográfico da ilustradora e desenhadora Cristina Malaquias.
A Artista desculpará a ousadia com que eu, recorrendo à alquimia das palavras, transmutei as emoções que o seu trabalho e Obra, em mim despertam. Mas doutra forma não poderia ter sido.
À Artista agradeço em nome do público, o ter partilhado connosco a beleza da sua visão mágica das coisas: o esvoaçar duma borboleta, o som do restolho pisado, a intensa claridade do sul que ora se acende, ora se apaga, que esse é o ciclo do Vida.
Obrigado, Cristina!



Estremoz, 6 de Julho de 2008
(In catálogo de “ILUSTRAÇÃO E DESENHO”. Centro Cultural Dr. Marques Crespo. Estremoz, Junho/Julho de 2008)













domingo, 27 de março de 2011

As aves e o Paraíso


O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). O PARAÍSO. Óleo sobre madeira de Herri met de Bles (c. 1500-1550). Rijksmuseum, Amsterdão.

Na tradição bíblica, o Paraíso Terrestre (Jardim do Éden ou Jardim das Delícias) é o local da primitiva habitação do Homem, onde ocorreram os eventos narrados no Livro do Génesis (Génesis 1, 2 e 3): a criação de Adão e Eva, a indicação a Adão para cultivar e guardar o Jardim, bem como a indicação expressa de que podia comer frutos de todas as árvores, excepto os da árvore do conhecimento do que é bom e do que é mal. Ao desobedecerem a essa ordem e ao comerem o fruto proibido, Adão e Eva ficaram a conhecer o bem e o mal. Desse pecado original, nasceu a vergonha e o reconhecimento de estarem nus. Como resultado da desobediência, Deus expulsou-os do Paraíso:
- O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25)
- A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse a mulher: É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?” (Génesis 3,1)
- A mulher respondeu-lhe: Podemos comer do fruto das árvores do jardim. (Génesis 3,2)
- Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais.” (Génesis 3,3)
- “Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! (Génesis 3,4)
- Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.” (Génesis 3,5)
- A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Génesis 3,6)
- Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si. (Génesis 3,7)
- E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. O homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do jardim. (Génesis 3,8)
- Mas o Senhor Deus chamou o homem, e disse-lhe: “Onde estás?” (Génesis 3,9)
- E ele respondeu: “Ouvi o barulho dos vossos passos no jardim; tive medo, porque estou nu; e ocultei-me.” (Génesis 3,10)
- O Senhor Deus disse: “Quem te revelou que estavas nu? Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer?” (Génesis 3,11)
- O homem respondeu: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi.” (Génesis 3,12)
- O Senhor Deus disse à mulher: Porque fizeste isso?” “A serpente enganou-me,– respondeu ela – e eu comi.” (Génesis 3,13)
- Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida. (Génesis 3,14)
- Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu ferirás o calcanhar.” (Génesis 3,15)
- Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” (Génesis 3,16)
- E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. (Génesis 3,17)
- Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. (Génesis 3,18)
- Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” (Génesis 3,19)
- Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes. (Génesis 3,20)
- O Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas vestes de peles, e os vestiu. (Génesis 3,21)
- E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois, cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também do fruto da árvore da vida, e o coma, e viva eternamente.” (Génesis 3,22)
- O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra donde tinha sido tirado. (Génesis 3,23)
- E expulsou-o; e colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida. (Génesis 3,24)
O Paraíso Terrestre foi tema central da pintura europeia, que ao longo dos séculos inspirou inúmeros pintores. Deles destacamos Hieronymus Bosch, Lucas Cranach, “O Velho”, Michelangelo Buonarroti, Albrecht Altdorfer, Jacopo Bassano, Jacob de Backer, Jan Bruegel, “O Velho” e Charles Auguste Bouvier. Através das obras destes grandes mestres procurámos ilustrar a harmonia em que Adão e Eva viviam com os animais, entre eles as aves que são o objecto central dum conjunto de posts iniciado com “Deus e a criação das aves”, o qual terá continuidade.

BIBLIOGRAFIA
- ART ET BIBLE [http://www.artbible.net ]
- BIBLIA CATÓLICA [http://www.bibliacatolica.com.br]
- BIBLICAL ART ON WWW [http://www.biblical-art.com]
- WEB GALLERY OF ART [http://www.wga.hu]


O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). Tríptico do Jardim das DELÍcias (c. 1500) – parte esquerda. Óleo sobre tela de Hieronymus Bosch (1450 - 1516). Museo del Prado, Madrid.
O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). JARDIM DO ÉDEN (1570-73). Óleo sobre tela de Jacopo Bassano (c.1510–1592). Galleria Doria Pamphili, Roma.
O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). JARDIM DO ÉDEN. Óleo sobre Madeira de Jacob de Backer (1555/60-1585/90). Groeninge Museum, Bruges.
O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). JARDIM DO ÉDEN (1612). Óleo sobre cobre de Jan Bruegel, "O Velho" (1568-1625). Galleria Doria Pamphili, Roma.
O homem e amulher estavam nus, e não se envergonhavam . (Génesis 2,25). ADÃO E EVA NO JARDIM DO ÉDEN (1615). Óleo sobre cobre de Jan Bruegel, "O Velho" (1568-1625). Colecção Real, Reino Unido.
O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). PARAÍSO TERRESTRE (C.1621). Óleo sobre cobre de Jan Bruegel, "O Velho" (1568-1625).   Musée du Louvre, Paris.
O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam. (Génesis 2,25). O PARAÍSO TERRESTRE. Óleo sobre tela de Jan Bruegel, "O Velho" (1568-1625). Museo del Prado, Madrid.
A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Génesis 3,6). O PECADO ORIGINAL (1616). Óleo sobre madeira de Jan Bruegel, "O Velho" (1568-1625).  Szépmûvészeti Múzeum, Budapest.
A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Génesis 3,6). PEGANDO A MAÇÃ. Óleo sobre tela, atribuído a Charles Auguste Bouvier (francês, activo em 1845-53). Musée des Beaux-Arts, Dole.
A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Génesis 3,6). ADÃO E EVA (1528). Lucas Cranach, “O Velho” (1472-1553). Oleo sobre madeira (Díptico). Galleria degli Uffizi, Florença.
A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. (Génesis 3,6). A TENTAÇÃO DO HOMEM (c. 1535). Óleo sobre madeira da Oficina de Albrecht Altdorfer (1480-1538). National Gallery of Art, Washington.
O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, para que ele cultivasse a terra donde tinha sido tirado. (Génesis 3,23). A QUEDA E A EXPULSÃO Do JARDIM DO ÉDEN (1509-10). Fresco de Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Cappella Sistina, Vaticano.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Estão a meter água

SETEMBRO (VINDIMA) - Iluminura (10,8x14 cm) do “Livro de Horas de
D. Manuel I” [Século XVI (1517-1551)], manuscrito com iluminuras
atribuídas a António de Holanda, conservado no Museu Nacional de
Arte Antiga. Pintura a têmpera e ouro sobre pergaminho.

À CATARINA, MINHA FILHA:

Somos um país com uma agricultura errada, em que se pagou aos agricultores para deixarem de cultivar. Para além disso, encheu-se o Algarve de campos de golfe e transformou-se o Alentejo numa vinha gigante, com as inescapáveis consequências que daí advêm e que se traduzem numa contaminação irreversível dos aquíferos usados no consumo humano.
Somos um país pequenino, mas com jeito para muitas coisas, entre elas a criatividade da gíria popular, do calão, das frases idiomáticas e das alcunhas. Usando dessa criatividade é caso para dizer a quem nos governa, em primeiro lugar:
- Estão a meter água!
Em segundo lugar, vamos dar conta dessa criatividade linguística, através duma resenha necessariamente sucinta no âmbito da temática “Água”:

- A PÃO E ÁGUA - Submetido a regime alimentar muito rigoroso. [6]
- ÁGUA BENTA – Protecção. [3]
- ÁGUA BÓRICA - Aguardente falsificada. [1]
- ÁGUA DE BACALHAU – Fiasco; Malogro. [1]
- ÁGUA DE CASTANHAS – Infusão de café ordinário. [7]
- ÁGUA DE CHEIRO – Alcunha outorgada a jovem que andava sempre muito perfumado (Aljustrel). [5]
- ÁGUA DE CÚ LAVADO – Poção que se crê existir e pode ser dada a beber traiçoeiramente a pessoa que se pretenda dominar, nomeadamente em jogos amorosos. [4]
- ÁGUA FERRADA – Água em que se deitou uma brasa para a amornar. [7]
- ÁGUA FRESCA – Designação atribuída a um aguadeiro (Mourão). [5]
- ÁGUA FRIA – O alcunhado caiu dentro de um poço e quando o retiraram de lá, disse que a água estava fria (Castro Verde). [5]
- ÁGUA MORNA - Pessoa com falta de energia, indolente, incapaz de qualquer iniciativa. [1]
- ÁGUA NO BICO - Intenção reservada. [1]
- ÁGUA- VAI! – Grito com que se lançava água suja na rua. [3]
- AGUAÇA – Enxurrada. [7]
- AGUACEIRO - Indivíduo que vive com contrariedades. [2]
- AGUADA - Pequeno descanso de um quarto de hora que o managteiro dá aos trabalhadores para beberem ou fumarem.[7]
- AGUADEIRO – Vocábulo desdenhoso do cocheiro que evidencia conhecimento nulo o que é conduzir. [7]
- AGUADILHA - Vinho fraco, aguado. [2]
- AGUARITA – Caldo muito aguado. [7]
- AGUARRÁS - Aguardente de figo ou de cereais.[1]
- ÁGUA-RUÇA - Reduzido a nada. [1]
-  ÁGUAS BELAS – Criança pálida e enfezada. [3]
-  ÁGUAS CARREGADAS – Sinal de zangas domésticas. [3]
-  ÁGUAS DA VALA - Preguiça ; moleza. [1]
-  ÁGUAS PASSADAS – Tempos ou coisas ultrapassadas. [3]
-  ÁGUAS-FURTADAS – A cabeça. [3]
-  BALDE DE ÁGUA FRIA -  Desilusão, decepção. [6]
-  CARGA DE ÁGUA - Chuvada violenta; motivo. [6]
-  CLARO COMO ÁGUA – Evidente. [6]
-  COMO DUAS GOTAS DE ÁGUAS - Perfeitamente idênticas. [6]
-  COMO PEIXE NA ÁGUA – À vontade. [6]
-  CRESCER ÁGUA NA BOCA - Experimentar forte desejo. [6]
-  DAR ÁGUA PELA BARBA – Ser difícil de conseguir. [6]
-  DE PRIMEIRA ÁGUA - Admirável. [6]
-  FÁCIL COMO A ÁGUA - Muito fácil de conseguir. [6]
-  FERVER EM POUCA ÁGUA - Irritar-se facilmente. [6]
-  IR POR ÁGUA ABAIXO - Falhar. [6]
-  LEVAR ÁGUA AO RIO - Fazer trabalho escusado. [6]
-  LEVAR ÁGUA AO SEU MOINHO – Arguir. [6]
-  METER ÁGUA - Ter um desaire. [2]
-  NAVEGAR ENTRE DUAS ÁGUAS - Usar de duplicidade. [6]
-  NAVEGAR NAS MESMAS ÁGUAS - Perfilhar as mesmas convicções. [6]
-  PARTIR PARA ÁGUAS - Ir para férias a fim de descansar ou tratar da saúde; ausentar-se para lugar incerto. [6]
-  PÔR A CABEÇA EM ÁGUA - Causar grandes preocupações. [6]
-  PÔR AGUA NA FERVURA -  Dizer ou fazer alguma coisa com a intenção de tranquilizar os espíritos. [6]
-  PRIMEIRAS ÁGUAS - As primeiras chuvas. [6]
-  SACUDIR A ÁGUA DO CAPOTE - Enjeitar responsabilidades. [6]
-  SEM DIZER ÁGUA VAI – Inesperadamente. [6]
-  SUJAR A ÁGUA QUE BEBE - Ser pessoa mal-agradecida. [6]
-  TEMPESTADE NUM COPO DE ÁGUA - Grande alarde. [6]
-   VERTER ÁGUAS - Urinar. [6]

Em suma: estão a meter água e põem-nos a cabeça em água. E olhem que isto não é uma tempestade num copo de água!

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[3] - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
[4] - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[5] – RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[6] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[7] - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.