quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Um púcaro de Estremoz de se lhe tirar o chapéu

 

Púcaro de Estremoz. Datação desconhecida. Colecção Victor Tavares Santos.


Tu és a minha companha,
eu tenho-te á cabeceira
ó pucarinho de barro,
enfeite da cantareira.
ANTÓNIO SARDINHA (1887-1925)

Chapelada inicial
Victor Tavares Santos é um grande coleccionador de olaria e figurado português, os quais como actor de Teatro foi recolhendo no decurso das suas itinerâncias desde os anos 70 do século passado. Recentemente, divulgou no Facebook a imagem dum púcaro de barro vermelho de Estremoz. A visualização do mesmo despertou em mim, de imediato, um amor à primeira vista, corolário natural da beleza da sua morfologia arcaica e da simplicidade da sua decoração simbólica. O fascínio deste objecto olárico conduziu inescapavelmente à sua dissecação, patente no presente escrito.

Morfologia e decoração
Púcaro em barro vermelho, de base cilindriforme, pé cilindriforme de contornos côncavos, corpo esférico, colo tronco-cónico alto e bordo plano. Abaixo do bordo o púcaro exibe uma cercadura relevada, da qual partem duas asas verticais, de secção rectangular, arqueadas e simétricas, as quais terminam na parte média do corpo. Exemplar olárico de grande beleza morfológica. Superfície integralmente polida na qual foi efectuada decoração riscada (ramos de palmeira no corpo) e picada (marca de punção com extremidade em forma de circunferência circunscrita a uma estrela de 5 pontas, gravada em baixo relevo) no colo.

A estrela de cinco pontas
O simbolismo da estrela de 5 pontas está associado ao simbolismo do número 5. Este, é a soma do primeiro número par (2) e do primeiro número ímpar (3). Por outro lado, o número 5 está no meio dos nove primeiros números. Segundo os pitagóricos é o número do centro, da harmonia e do equilíbrio [2]. É, assim, um símbolo da ordem e da perfeição e como tal, símbolo da vontade divina, a qual não pode desejar senão a ordem e a perfeição [1]. A estrela de 5 pontas, pode assim ser encarada como um símbolo apotropaico, que neste caso protege o utilizador do púcaro, de espíritos malignos ou nocivos, tais como as bruxas ou o mau olhado.

A palma
Remonta à antiguidade clássica o hábito de receber heróis com palmas (ramos de palmeira). Daí que Jesus tenha sido recebido triunfalmente em Jerusalém com palmas e estas sejam encaradas como um símbolo cristão da vitória. Por outro lado, como as palmeiras se mantêm sempre verdes, a palma tem associado a ela o simbolismo da eternidade. A palma, é de resto, utilizada como atributo na representação de mártires, isto é, é utilizada como símbolo de martírio.
Admito que as palmas tenham sido utilizadas na decoração do púcaro, como modo de expressar ao seu utilizador, votos de vitória e de vida eterna.

Chapelada final
A grande beleza morfológica do arcaico púcaro, aliada ao forte simbolismo da sua decoração, poderão ter estado na base da dificuldade sentida pele proprietário em o adquirir ao antiquário Venceslau Lobo (1928-1986), do Museu dos Cristos, em Borba. A datação do exemplar olárico permanece uma incógnita, cuja decifração não esteve ao meu alcance.

4 comentários:

  1. E eis senão quando, ao abrir a página "Do tempo da outra senhora", deparo com uma foto por mim bem conhecida. Primeira reação a surpresa, depois o encantamento, pelo enriquecimento que as suas palavras acrescentaram à peça em análise. A leitura minuciosa que fez dos vários elementos que a constituem, surpreenderam-me agradavelmente pelo meu, até aí, desconhecimento. Vou passar a olhá-la doutra forma. Conheci Venceslau Lobo através do amigo Aníbal Falcato, para obter a cedência de algumas peças do seu Museu para uma exposição de Arte Popular que se realizou no Salão Nobre do Teatro Garcia de Resende, quando do lançamento dum livro de Modesto Navarro sobre "Poetas Populares Alentejanos". Na inauguração estiveram presentes muitos dos poetas constantes no livro. A partir daí fui visitando o Museu de Venceslau Lobo, e pelo facto de nas prateleiras do Museu ter-me apercebido que com este púcaro estavam outros dois, fui tentando convencê-lo a vender-me um deles. Talvez cansado pela minha insistência e caturrice, lá se dispôs a isso. Recordo dele me ter dito que lhe levava uma das peças mais antigas do seu acervo, acrescentando que bastava olhar para o bordo. Só mais tarde me fui apercebendo dessa menção ao ler o "Púcaros de Portugal" de Carolina Michaelis de Vasconcellos, e da referência à bucarofagia. Não faço ideia da sustentabilidade desta citação, porque para mim o desgaste no bordo vejo-o como isso mesmo, a sua muita utilização e lavagem. Aqui fica a história do púcaro, e o meu muito obrigado pela transmissão de conhecimento que me proporcionou. Um reconhecido abraço.

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    1. Victor:
      As peças oláricas, como de resto tudo na vida, permitem múltiplas leituras por parte de quem por um motivo ou por outro, as vê com olhos de ver. A estória do seu arcaico púcaro ainda agora começou a ser escrita. Primeiramente, através do meu escrito, o qual se limita a relatar o que ele me contou em termos de morfologia, decoração, estética e simbolismo.
      Depois vem o seu comentário ao meu escrito e com ele a estória dá um passo de gigante e passa a ser mais rica. Nela surge depois o Victor, que no palco da sua vida de actor, descobriu o púcaro na loja do Venceslau Lobo, antiquário que eu conheci desde rapaz. E surge o Aníbal, de quem como livreiro e amigo, recebi importantes estímulos que me levaram a interessar pelos múltiplos aspectos da cultura, muito em particular da cultura popular. Foi ele também que deu um importante contributo para o despertar da minha consciência social, cívica e política. Eu e muitos outros como eu, continuamos a sentir a sua falta, 23 anos depois de ter partido. E surge ainda a Carolina Michaëlis de Vasconcelos, autora de “Os Púcaros de Portugal”, uma das primeiras cartilhas por onde comecei a aprender o ba-ba do mundo do barro.
      O Victor contextualizou e muito bem, parte da vida social do púcaro, realçando as circunstâncias em que que ele mudou de mãos. Só não sabemos como é que ele foi parar às mãos do Venceslau e aqui falta uma parte importante da vida social do púcaro. Por quantas mãos terá ele passado até chegar às mãos do Venceslau? A estória que o Victor tornou mais rica, tem ainda muitas lacunas por contar. E uma delas que não é menos importante que todas as outras é a estória da feitura do púcaro. Quem foi o oleiro que meteu as mãos no barro e com elas fez magia, criando aquilo que viria a ser objecto do nosso júbilo? Em que contexto o fez e em que época? Porque é que o fez assim e não fez assado? O arcaico púcaro do Victor tem ainda muitas estórias para contar. Todavia, não é credível que surjam contadores para essas estórias. Deste modo, teremos de ficar por aqui, pelo que termino com um grande abraço para o Victor. Até sempre!

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  2. Agradeço profundamente ao Professor Hernâni o texto fantástico que me proporcionou o conhecimento do Pucaro cuja imagem vi esta manhã.e que me encantou..
    Agora conheço a história, o trabalho de quem muito amou e de quem ama as nossas preciosidades que nos encantam e que dão "sal à vida".
    Vou voltar a ler tudo o que já li, há pouco, agradecendo profundamente os seus ensinamentos.
    Grata por tudo.
    mfernanda costa /.

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    1. Congratulo-me com o seu estimulante comentário e tudo farei para continuar a merecer o interesse manifestado.
      Os meus cumprimentos.

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