sexta-feira, 8 de abril de 2016

Auto do trânsito mal parado


Carruagens nos Champs-Élysées.
Jean Béraud (1849-1935).
Óleo sobre tela (49 x 44 cm).
Colecção privada.

O entrecho desenvolve-se há dois séculos atrás, na nossa urbe transtagana, mais exactamente na conhecida rua da Paróquia. Por ali desfilam os 6 personagens do auto, assim descritos:
- SANDE-AO-CÃO: Lendário comandante dos meirinhos locais, disciplinador nato e com uma actividade notável na repressão de cocheiros que abusivamente estacionavam charretes, breques e carrioles, deixando os outros entalados. Respeitado e temido, dava gosto vê-lo impecavelmente fardado e de pingalim na mão, a coordenar a acção dos meirinhos seus subordinados. Embora ausente da acção, é uma figura que perdura na memória colectiva.
- VASCÃO: Meirinho abatido ao activo. De aspecto relativamente franzino, embigodado, de respeitável barriga e vermelhusco de cores. Foi cocheiro às ordens de Sande-ao-cão, a quem recorda com saudade. Frequentador assíduo da Tapanisca e da estalagem do Jorge, transita pela rua da Paróquia, sempre que vai desinfectar a goela.
- DONA MAGNIFICÊNCIA: Dama peituda, bem maquilhada, ornada de gargantilha, pulseiras e anéis. Tanto se cobre de peles como de sedas. Depende da estação. Sempre que vai ao Milenas que empresta dinheiro a juros, deixa o carriole no meio da rua.
 - CHICO PINGUINHAS: De pequena estatura, bem nutrido de carnes, petisqueiro, usa chapéu à marialva e costuma ir molhar o bico à Tapanisca e à estalagem do Jorge.
- PATILHAS: Meirinho destacado para desenvencilhar o trânsito na rua da Paróquia.
- HOMEM COMUM: Transeunte ocasional da rua da Paróquia.
O auto resume-se a uma cena única, fácil de ser condensada. A meio da manhã de um dia vulgar, Patilhas aparece inesperadamente na rua da Paróquia, em cumprimento da missão que lhe fora atribuída. Aí depara com uma fila de carroças, à espera que Dona Magnificência se digne sair do Milenas e tire o carriole do meio da rua. O que não será fácil, já que a dama fala pelos cotovelos. Toca então a corneta repetidamente e a dama lá aparece, quando o castigo já está aplicado. Dona Magnificência ainda empina os peitos, mas Patilhas com a cara de pau que lhe é habitual, não se deixa intimidar, proclamando:
- A Senhora está coimada, por violação flagrante da lei e desrespeito pelas regras de convivência social. E faz favor de tirar o carriole donde está, senão ainda agrava a pena.
Contrafeita, a bufar e sempre com os peitos empinados, Dona Magnificência sobe para o carriole, falando para o cavalo:
- Vamos embora Barão, que isto não é rua que se recomende!
Com todo este reboliço, Chico Pinguinhas, que tinha a charrete em cima do passeio, aparece à porta da Tapanisca, já com o chapéu às 3 pancadas e com um pastel de bacalhau numa das mãos. A língua solta-se-lhe, quando pergunta a Patilhas:
- Então há azar, senhor meirinho?
Ouve então uma resposta pronta:
- Há azar e não é meu. Acaba de ser coimado. Isto hoje vai tudo a eito. Faz favor de tirar a charrete donde está.
Chico Pinguinhas começa por ficar embatucado, mas acaba por desabafar:
- Não há direito. Já nem um homem pode beber um copo descansado.
Patilhas afirma então:
- Pode. Só tem é que deixar a charrete no Rossio Rustiquês Tribal, que é o maior Rossio do País.
Nisto, surge o Homem Comum, que concorda:
- É assim mesmo, senhor meirinho. O que é pena, é o senhor ir-se embora e daqui a bocado voltar tudo ao mesmo.
Surge então Vascão, que cumprimenta Patilhas, a quem observa:
- Sabes uma coisa? Ainda hão de dizer: VOLTA SANDE-AO-CÃO QUE ESTÁS PERDOADO!
EPÍLOGO
Qualquer semelhança com a realidade local é mera coincidência, visto que o auto reflecte uma realidade de há duzentos anos atrás.

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