segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O jogo do botão


Os miúdos do Espírito Santo – foto de Manuel Gato – 1955. No 1º plano e da esquerda para a
 direita: Armando Pereira, Manuel Maria Gato, Jorge (maluco) e António Maria Craveiro. No
2º plano e da esquerda para a direita: Zé (prima do Manuel Maria), Manuel (da avó), Rodrigo
André (de mãos cruzadas), Hernâni Matos (com o braço à cintura), Maria Evelina Roma e
Guilhermina Massano. Os rapazes eram meus companheiros do jogo do botão.


O JOGO EM SI
Quando era puto jogava ao botão.
Vocês sabem como é que se jogava ao botão?
Em primeiro lugar, era preciso ter botões e eu tinha-os guardados num pequeno talêgo confeccionado pela minha mãe e que transportava sempre comigo num dos bolsos das calções, para não ser apanhado desprevenido quando era desafiado para jogar. A maioria das vezes por quem queria obter desforra por ter perdido em jogo anterior. O talêgo era para mim precioso, pois era nele que eu guardava ciosamente a existência utilizada na jogatina.
No caso mais simples de serem só dois, os rapazes a jogar, tirávamos à sorte para ver quem era o primeiro. Este, depois de escolher no seu talêgo, o botão com que queria jogar, atirava-o contra a parede, de forma a fazer ricochete e ir parar o mais longe possível. Era depois a vez do segundo jogador fazer o mesmo, procurando que o seu botão ficasse o mais próximo possível do botão do adversário. Duas coisas podiam então acontecer:
- Se o botão lançado ficasse a uma distância igual ou inferior a um palmo dos seus, ganhava o botão do oponente e guardava-o. Cabia-lhe então a ele reiniciar o jogo.
- Se o botão lançado ficasse a uma distância superior a um palmo dos seus, o primeiro jogador levantava o seu botão, atirando-o novamente à parede, procurando que ficasse a menos de um palmo do botão do outro jogador, para lho ganhar.
Ganhava naturalmente o jogo, aquele que ganhasse maior número de botões.
No meu caso, tinha por hábito pregar um berro, gritando “Palmo!”, no exacto momento em que demonstrava sem sofismas, com o meu palmo a servir de bitola, que acabara de ganhar o botão.
Desde puto que gosto de botões. Nasci e cresci no meio deles, já que o meu pai era alfaiate e eu um praticante emérito do jogo do botão, dado ser dotado de razoável pontaria, acrescida de um abonado palmo de mão, correspondente à minha, desde sempre avantajada figura.
E tanto jogava com uma mirôla (botão de ceroula), como com um chapéuzinho de chumbo ou de lata ou com o mais anónimo dos botões. Era tudo uma questão de estratégia e de controlar a batida na parede. Depois o meu palmo encarregava-se do resto. Por isso, quando chegava a casa, levava o talêgo sempre reforçado de munições e quase sempre cheio. Por vezes, o massacre do talêgo dos meus companheiros de botão, era interrompido pela voz da minha mãe:
- Hernâni, anda para a mesa, que são horas de almoço.
E lá ia eu num ápice, que a barriga já dava horas e o meu pai não gostava de faltas de respeito. Digam lá vocês, quem é que podia resistir a um chamamento destes?
Às vezes, nós os jogadores, trocávamos botões uns com os outros, sendo que os botões maiores e mais raros, valiam mais que os outros mais vulgares. O mesmo se passava com as mirôlas e os chapéuzinhos de chumbo e de lata. O valor de troca era sempre negociado entre as partes.
Eu gostava da mirôla quando queria atingir maiores distâncias. Para distâncias menores, o meu preferido era o chapéuzinho de lata, que fazia menos ricochete que a mirôla. Para distâncias ainda mais curtas, era mais adequado o chapéuzinho de chumbo, já que fazia menos ricochete.
A mirôla era mais adequada quando éramos os primeiros a jogar, para atirarmos o botão o mais longe possível. Já quando éramos os segundos, não era a o botão mais indicado, porque fazia mais ricochete ao cair e a posição final era mais incerta. Para isso era mais indicado o chapéuzinho de lata ou mesmo o de chumbo, se a distância fosse mais curta.

O COLECCIONISMO DE BOTÕES 
Colecciono botões desde os meus tempos do jogo do botão. O meu pai era alfaiate e também herdei os botões dele, embora só tenha ficado com alguns. Como coleccionador, dada a diversidade de botões, senti necessidade de me especializar. Quem herdou então a maioria dos meus botões foi a minha filha, que os guarda religiosamente num monumental boião, que eu atempadamente baptizei de “Catedral do Botão”. Quanto a mim, resolvi especializar-me em botões de latão, porque o latão é a minha paixão. Daí que nas feiras de velharias procure sempre botões amarelos de fardamentos, que tenho organizados numa caixa com divisórias. E sabem que mais? Procuro completar um conjunto destes botões com a mesma coroa real portuguesa, para substituir os do “blaser”, que uso no dia de ser chique.

OS BOTÕES NA LITERATURA ORAL
Preocupado com questões de oralidade da língua, dei-me ao trabalho de pesquisar a presença dos botões na literatura oral.
A nível do adagiário popular é conhecido o provérbio:
- “Falar para com os seus botões.”
Daí que o cancioneiro popular, pela voz irónica do algarvio António Aleixo (1899-1949), proclame que:

“Dizem lá com seu botões,
Pessoas ricas e nobres:
Dez mil reis em meios tostões,
Davam para duzentos pobres.”

Os botões podem de resto ser motivo de agrado por uma peça de vestuário:

“Ó Joaquim, Joaquim,
Ó Joaquim Ramalhete;
já me cá estão a agradar
os botões do teu colete.” [1]

Ao jogo do botão são aplicáveis os provérbios do “perder” e do “ganhar”:

- “Ninguém perde sem outro ganhar.“
- “Nunca um perde, sem outro ganhar.“
- “ Perder deu mais pesar, que deu prazer o ganhar.“
- “Perder e ganhar, tudo é jogar.“
- “Quando um perde, o outro ganha.“
- “Quem ganha, também perde.“
- “Só ganha quem joga. “

Em termos de literatura oral, existem adivinhas cuja solução é o “botão”:

“Qual é a coisa,
qual é ela,
que mesmo dentro de casa
está sempre fora dela?”

“Qual é a coisa,
qual é ela,
que mal entra em casa,
se põe logo à janela? “

“Qual é a coisa
que tem o lugar
no meio da casa?”

“Qual é a coisa
que faz mais falta numa casa? “

“Minha casa
não tem telha,
quando entro
vou de esguelha.”

“Feito de ossos de animais,
sendo redondo sou chato:
tenho um olho, raro três,
muitas vezes dois ou quatro. 

"Tenho uma casa só minha,
não entra lá nunca alguém:
vivo nela ou junto dela,
não cabe lá mais ninguém.“

Também conheço uma adivinha cuja solução é “botões”:

“São muitos vizinhos
com os mesmos modos;
quando um erra,
erram todos.”

A nível de lengalengas conheço esta:

“Rei, capitão
Soldado, ladrão
Menina bonita
Do meu coração.”

Esta lengalenga era acompanhada seguindo a sequência dos botões da peça de vestuário com o dedo polegar, a partir duma das extremidades. Assim, se a peça de vestuário tinha um botão, era-se “rei”, o que era o máximo. Se tivesse dois, era-se “capitão”, o que ainda era bom. Com três, era-se “soldado”, o que era menos bom. Com quatro, era-se “ladrão”, o que ninguém gostava de ser. Para os rapazes era péssimo ter cinco botões na peça de vestuário, pois então era-se “menina bonita”, o que era motivo de risota geral. Conta-se que alguns faziam birra em casa para não levarem para a escola, nada que tivesse cinco botões. Vejam lá as partidas que a língua portuguesa pregava aos pais de então.

[1] - JUNCEIRA (Tomar). Recolha de REDOL, Alves. Cancioneiro do Ribatejo. Centro Bibliográfico. V. Franca de Xira: 1950.

Publicado pela primeira vez em 23 de Agosto de 2010
O presente texto integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

13 comentários:

  1. E o jogo do berlinde não merece uma crónica como esta do botão?
    Obrigado pelo vocabulário e por me recordar o grande poeta Aleixo.

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  2. Interessante como sempre

    acho que nunca pratiquei o jogo
    aprendi agora a origem dum "número de circo" praticado com mestria e segurança por um taberneiro de Sousel, preparador/fornecedor de requintados petiscos.

    que era assim:
    quando tocava a receber a massa, quase sempre em moedas, o Américo (?) abria a gaveta do balcão, atirava as moedas uma-a-uma contra a parede, e de ricochete aninhavam-se, sem falhas,
    no seu destino último

    prática sei agora de inspiração mais que provável no tão bem descrito jogo do botão

    abraço, Hernãni. Vai uma partidinha?

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  3. Maravilha de recordações que muito me sensibilizaram pois trouxeram-me à memória lembranças adormecidas dos meus tempos de miúdo.
    Amigo Hernâni tenho encontrado aqui no seu blog descrições extraordinárias de tempos idos e que é difícil encontrar hoje em dia com tal precisão de pormenores.
    Parabéns pelo seu trabalho que considero uma verdadeira herança cultural para gerações presentes e futuras.
    Abraço.

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  4. Mas que belos tempos esses! Primeiro porque éramos crianças e segundo porque nos divertiamos imenso.
    E tudo tinha a sua época ao longo do ano.
    O jogo do botão, o do patáco (jogado com moedas que já não circulavam e que hoje algumas são bastante valiosas), o do berlinde (jogado com as bolinhas tiradas dos pirolitos), o do pião, o das caricas, o das caixas de fósforos, o dos bonecos da bola, etc.
    Jogos que se vão perdendo no esquecimento e na poeira dos tempos mas que nos dão muita alegria quando falamos deles.
    Bem haja pelas recordações.

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  5. Lindo, este texto. Parabens e obrigada por partilhá-lo connosco. É sempre bom recordar os tempos, os jogos de infância. Abraço. Gigi

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  6. Como sempre fiquei maravilhado com as suas descrições. Também joguei ao botão, à pata, à macaca, andei com uma roda e um guiador de arame ( que preciosidades) eu sei lá mais o quê. Mas a verdade é que só lendo as "crónicas" do amigo Hernâni é que visto de novo os calçôes (rachados atrás) e me lanço na aventura de ser menino.
    Uma ajuda ao amigo "platero"; segundo penso saber (a minha esposa é de Sousel) o homem que fazia os marabalismos na taberna era o Sr. Tiago. Para o caso pouco interessa, ser Américo ou Tiago, mas penso que era mesmo Tiago. Também o conheci e vi fazer esse e outros truques...
    Amigo Hernâni, para quando nova crónica? Vai a do berlinde?
    Abraço
    Fernando Máximo

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  7. Olá Hernani

    Acho fabulosa a tua iniciativa de fazer a história dos jogos de criança.
    Que recordações nos despertam...
    Na escola primária onde pratiquei esta altíssima modalidade, por aquilo que me recordo, é que servia de pretexto para grandessíssimas rebaldarias.
    Porque os palmos nem sempre têm o mesmo tamanho e a maior parte das vezes porque sim à falta de melhor saída.
    Seria interessante se pudesses sistematizar um levantamento destes jogos infantis de cariz popular de enorme valor nas suas raízes culturais.
    Estou-me a lembrar, de entre outros, do cagueiro da pateira para além dos já mencionados no teu blogue, mas a lista não termina por aqui...

    Já te o tinha sugerido no teu trabalho de individualização e explicação dos artefactos e volto a dizer-te neste âmbito também.

    Porque não organizar esta informação e fazer um livro sobre os jogos infantis de raiz popular e outro sobre os artefactos?

    Eu estaria comprador!

    Abraço

    Jorge Alves

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  8. Evelina...

    É o nome da tuaantiga vizinha.

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  9. Evelina...
    Maria Evelina!
    O nome da tua vizinha
    Abraço

    Jota

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  10. Obrigado amigos pelos vossos comentários, que são um estímulo ao meu trabalho.
    Qualquer dia vai outro jogo. É questão de estar em maré de jogatina, o que nem sempre acontece. De resto, a frente de trabalho é ampla.
    Obrigado aos amigos que me corrigiram. Já emendei "Avelina" para "Evelina".
    Voltem sempre, que esta casa é vossa!
    Um abraço.

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  11. Como todos os putos da minha geração, carreguei o aludido talego e joguei muito ao botão. Esses jogos eram cíclicos. Acabava a época do botão e vinha a pateira, etc., etc.. Inerente ao jogo do botão vou confessar um grande pecado, mais de 50 anos depois: Saía de casa na Rua dos Telheiros, de manhã, para ir para a Escola do Caldeiro. Aos Sábados passava no mercado do Rossio e cortava com o canivete os "chapéus" de chumbo e de "latão" das lonas que cobriam os caminhões, camionetas ou carroças. Cada um valia 12 de outros nas nossas trocas...

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  12. Obrigado por me fazer recordar amigos e tempos passados,
    Não tenho saudade, mas o recordar é reviver de novo, voltar às minhas origens sem preconceitos ou vergonha. Aqui reside o que hoje sou e quero preservar enquanto por cá estiver. Bem haja!

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  13. Depois de me regalar com a descrição dos jogos de antigamente ou seja: para mim de há 75 anos atrás, já que neste momento conto os 80 aninhos, vou descrever aquele que me dava bastante gozo e algum sofrimento também. que se traduzia no seguinte; Num terreno mais ou menos plano, abriam-se 6 covas ficando uma maior que as restantes 5 no meio, a igual distancia da central ficavam todas as outras. Os jogadores todos eles eram colocados a uma certa distância para, à ordem de partida, correrem para o local do jogo e tentar colocar a ponta do seu cajado em uma das covas que estivesse livre. Como tal, havia sempre um que ficava sem casa e que passava a ser o castigado. O castigo consistia em ir apanhar a «carriça» assim se chamava a rolha de cortiça de mais ou menos 10 cm de diâmetro e tentar introduzi-la na cova central. Todos os outros jogadores tinham por missão evitar que o castigado conseguisse levar a efeito esse prepósito dando sempre que podiam pancadas na carriça por forma a atirá-la para mais longe. Porém, se nessa intenção deixasse o castigado meter o seu cajado na casa vazia, era esse jogador que passava a ter de prosseguir a correria de ai em diante. Só o castigado podia transportar a carriça na mão mas para a colocar na cova central tinha de ser por arremesso. Logo que ela tocasse no fundo da cova todos tinham de trocar de casa pelo mesmo modo ou seja ocupar com a ponta do cajado a cova que estivesse livre. Era nessa altura que normalmente havia troca de castigado. Digo-vos que muito suor e lágrimas acontecia nestas
    lides mas no fundo muita amizade se enraizava nas vidas de todos nós que, ao lembrar estes jogos me levam a recordar tantos e tantos amigos com quem já não posso trocar essas mesmas recordações porque a vida é assim e muitos já não estão entre nós. Alguém sugeria nos comentários que li que se fizesse um apanhado destes jogos antigos para memória futura e isso é que me levou a dar o meu pequeno contributo para que o amigo Hernâni que com tanto talento e arte sabe embriagar-nos nas suas histórias me propus dar esta ajudinha. No tempo da guerra havia também a luta das nações e essa consistia em não permitir que alguém entrasse nas marcações de terreno por nós marcado por meio de riscos no chão. Estou convencido que estes jogos eram mais de pequenas aldeias onde o cimento ainda não havia chegado.

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