Bilhete postal ilustrado dos anos 20 do século XX,
reproduzindo ilustração de A. Rey Colaço.
De acordo com o calendário litúrgico cristão, na Quinta-Feira da Ascensão comemora-se a ascensão de Cristo Salvador ao Céu, após ter sido crucificado e ter ressuscitado. Esta data móvel encerra um ciclo de quarenta dias após a Páscoa. Lá diz o rifão: "Da Páscoa à Ascensão, 40 dias vão."
Na Quinta-Feira da Ascensão celebra-se igualmente o Dia da Espiga. Era tradição, as pessoas irem para o campo neste dia, para apanhar a espiga de trigo e outras plantas e flores silvestres. Faziam um ramo que incluía pés de trigo e/ou centeio, cevada, aveia, um ramo de oliveira, papoilas e margaridas. O ramo tinha um valor simbólico. Simbolizava a fecundidade da terra e a alegria de viver. As espigas simbolizavam o pão e a abundância, as papoilas o amor e a vida, o ramo de oliveira a paz e as margaridas o ouro, a prata e o dinheiro. De acordo com a tradição, o ramo devia ser pendurado dentro de casa, na parede da cozinha ou da sala, aí se conservando durante um ano, até ser substituído pelo ramo do ano seguinte. Havia a crença que o ramo funcionava como um poderoso amuleto que trazia a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Lá dizia o rifão: "Quem tem trigo da Ascensão, todo o ano terá pão." E porquê? Porque se acredita naquilo que diz o cancioneiro popular alentejano:
"Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão." [1]
"Quinta-feira de Ascensão
As flores têm virtudes,
Quis amar teu coração,
Fiz empenho mas não pude." [2]
A origem festiva do Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-Feira da Ascensão, é muito anterior à era cristã. Na verdade, este dia é um sucessor claro de rituais pagãos, praticados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais de cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza. Neles se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, bem como a esperança nas novas colheitas. O Dia da Espiga era assim como que uma bênção aos primeiros frutos e marcava o início da época das colheitas.
A Igreja, à semelhança do que fez com outras ancestrais festas pagãs, cristianizou o Dia da Espiga. A data atravessa assim os tempos com uma dupla significação:
- como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias;
- como Dia da Espiga, traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
Bilhete postal ilustrado do 2º quartel do século XIX, edição A.V.L. (Lisboa),
reproduzindo aguarela de Alfredo Moraes (1872-1971).
Actualmente poucas são as pessoas que ainda se deslocam ao campo na Quinta-Feira da Ascensão para apanhar o ramo da espiga. Mas aquelas que vão, têm dificuldade em constituir o ramo, sobretudo pela dificuldade em recolher pés de cereal, raros a partir do momento em que os nossos agricultores receberam dinheiro de Bruxelas para deixar de cultivar. Apesar de tudo, há quem consiga cumprir a tradição. E há também quem faça negócio com a tradição, colhendo e vendendo ramos de espiga na cidade. Apesar do mercantilismo deste biscate em tempo de crise, é um contributo para a preservação da tradição. Actualmente, também são poucas as pessoas que se deslocam à Igreja para participar nos deveres religiosos inerentes à data. Todavia, houve tempos em que a data, das mais festivas do ano, era repleta de cerimónias sagradas e profanas, que chegavam a implicar a paralisação laboral. Daí o rifão: “No Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos”.
[1] - Recolha de Vítor Santos in Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[2] - Évora - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983
[2] - Évora - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983
Como deves calcular fiqueei mais fascinada com os desenhos "anos 30"!A sofisticação das meninas é muito citadina,mas deliciosa...
ResponderEliminarA tradição conheço e pratico_ a aberração de mercantilizar a"espiga", não engulo...Abraço
Excelentíssima Senhora Dona Brim:
ResponderEliminarComo o seu nome não conheço,
Permita-me que a trate assim.
Ficou embuxada, reconheço.
A tradição já não é o que era, isto ouve-se nestes últimos tempos, mas eu ainda a pratico e lá vou sempre apanhar a espiga e penduroo atrás da porta da cozinha, gosto de respeitar aquilo que a minha mãe me ensinou. Obrigado.
ResponderEliminarCaro Hernâni Matos
ResponderEliminarParabéns pelo Blog, é sem dúvida bastante educativo e elucitativo.
Permita-me um pequeno reparo nos séculos mencionados, serão século XX e não século XIX como mencionado.
Um abraço
Muito obrigado pelo seu comentário. Já corrigi o lapso apontado, cuja detecção muito agradeço. Aproveito para informar que existe uma versão ampliada do texto em
ResponderEliminarhttps://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2011/06/o-dia-da-espiga-2-edicao.html