Presépio de trono ou altar, produzido actualmente pelas irmãs Flores, segundo o
modelo criado nos anos 40 do século XX, por Mariano da Conceição (1903-1959).
O PRESÉPIO
Entrámos no período de Natal. Este é a festividade cristã que enaltece o nascimento de Jesus Cristo. A data da sua celebração ocorre a 25 de Dezembro (Igreja Católica Apostólica Romana) ou a 7 de Janeiro (Igreja Ortodoxa). O Natal é, de resto, mundialmente encarado por pessoas de diferentes credos, como o dia consagrado à família, à paz, à fraternidade e à solidariedade entre os homens.
Um dos grandes símbolos religiosos, que retrata o Natal e o nascimento de Jesus é o presépio. De acordo com Rafael Bluteau [2] e Cândido de Figueiredo [4], a palavra “presépio” provem do latim “praesepium”, que genericamente significa curral, estábulo, lugar onde se recolhe gado e que, numa outra óptica designa qualquer representação do nascimento de Cristo, de acordo com os Evangelhos. E que dizem estes?
REFERÊNCIAS BÍBLICAS AO PRESÉPIO
LUCAS 2:
“1. Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra.
2. Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria.
3. Todos iam alistar-se, cada um na sua cidade.
4. Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à Cidade de David, chamada Belém, porque era da casa e família de David,
5. para se alistar com a sua esposa Maria, que estava grávida.
6. Estando eles ali, completaram-se os dias dela.
7. E deu à luz seu filho primogénito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria.
8. Havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite.
9. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu ao redor deles, e tiveram grande temor.
10. O anjo disse-lhes: Não temais, eis que vos anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo:
11. hoje vos nasceu na Cidade de David um Salvador, que é o Cristo Senhor.
12. Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.
13. E subitamente ao anjo se juntou uma multidão do exército celeste, que louvava a Deus e dizia:
14. Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens, objectos da benevolência {divina}.
15. Depois que os anjos os deixaram e voltaram para o céu, falaram os pastores uns com os outros: Vamos até Belém e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou.
16. Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado na manjedoura.
17. Vendo-o, contaram o que se lhes havia dito a respeito deste menino.
18. Todos os que os ouviam admiravam-se das coisas que lhes contavam os pastores.“
MATEUS 2 :
“1. Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que magos vieram do oriente a Jerusalém.
2. Perguntaram eles: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.
3. A esta notícia, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele.
4. Convocou os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e indagou deles onde havia de nascer o Cristo.
5. Disseram-lhe: Em Belém, na Judeia, porque assim foi escrito pelo profeta:
6. E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo {Miquéias 5,2}.
7. Herodes, então, chamou secretamente os magos e perguntou-lhes sobre a época exacta em que o astro lhes tinha aparecido.
8. E, enviando-os a Belém, disse: Ide e informai-vos bem a respeito do menino. Quando o tiverdes encontrado, comunicai-me, para que eu também vá adorá-lo.
9. Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que e estrela, que tinham visto no oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou.
10. A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria.
11. Entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.
12. E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.”
Entre os biblistas é consensual que o aparecimento da estrela se refere à estrela de Jacob, profetizada por Balãao: “Eu o vejo, mas não é para agora, percebo-o, mas não de perto: um astro sai de Jacob, um ceptro levanta-se de Israel, que fractura a cabeça de Moab, o crânio dessa raça guerreira.” (Números 14,17).
A exegese vê na chegada dos reis magos o cumprimento da profecia contida no livro dos Salmos (72, 11): “Todos os reis hão de adorá-lo, hão de servi-lo todas as nações”.
SIMBOLISMO DO PRESÉPIO
O presépio é assim uma referência cristã que nos remete para o nascimento de Jesus numa gruta de Belém, na companhia de José e Maria, que ali pernoitaram na sequência do recenseamento de toda a Galileia.
Jesus terá nascido numa manjedoura destinada a animais e foi reconhecido após o nascimento, por pastores da região, avisados por um anjo, e, dias mais tarde, por Reis Magos vindos do Oriente, guiados por uma estrela e que terão chegado até Jesus no dia 6 de Janeiro, data que em presentemente se comemora o “Dia de Reis”.
Segundo a tradição vigente terão sido três os Reis Magos:
- BELCHIOR (representante da raça europeia) que terá oferecido ouro;
- BALTASAR (representante da raça africana) que terá oferecido mirra;
- GASPAR (representante da raça asiática) que terá oferecido incenso.
Pela sua diversidade, os magos simbolizam uma homenagem universal a Jesus. Também as prendas ofertadas têm um simbolismo que resume o evangelho e da fé cristã:
- O OURO - oferecido unicamente a Reis, representa a realeza de Jesus;
- A MIRRA - simboliza Jesus como Homem, o sofrimento que iria ter ao longo da sua vida e os suplícios porque passou até à morte, sendo que foi sepultado por José de Arimatéia e Nicodemos, que conforme costume judaico o embalsamaram (João 19: 39 e 40).
- O INCENSO - representa a divindade e a fé, uma vez que o incenso é usado nos templos para simbolizar a oração que chega a Deus, tal como a fumaça sobe ao céu: “Que minha oração suba até vós como a fumaça do incenso, que minhas mãos estendidas para vós sejam como a oferenda da tarde” (Salmos 141:2).
PRESÉPIOS DE ESTREMOZ
Conhecem-se presépios de barro de Estremoz desde o séc. XVIII e crê-se que eles terão sido aqui introduzidos pelos monges do Convento de S. Francisco edificado em meados do séc. XIII e cuja tradição presepista é bem conhecida, desde que o fundador da Ordem, S. Francisco de Assis, montou o primeiro presépio do mundo em Greccio (Itália), no Natal de 1223, com a função didáctica de explicar o nascimento de Jesus, ao mesmo tempo que desgostado com as liberdades da Natividade dentro dos Templos, sustinha a adoração do Natal, como nos diz Luís Chaves [3].
A produção dos presépios de Estremoz e dos bonecos de Estremoz não está actualmente em risco. Todavia, nem sempre foi assim. Segundo D. Sebastião Pessanha (1892-1966) os últimos presépios feitos em Estremoz, terão sido uma encomenda que fez para si e para o Museu Etnológico de Belém, em 1916. Por outras palavras, os bonecos de Estremoz foram dados como extintos. Como ressurgiram então? Graças à acção de José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, natural de Vila Nova de Gaia, discípulo de Mestre Teixeira Lopes e director nos anos 30 da Escola Industrial de António Augusto Gonçalves. Quando ele chegou a Estremoz, o artesanato em barro, estava na mais completa decadência, apenas se confeccionando peças de olaria para uso doméstico. Alimentou então o sonho do ressurgimento dos bonecos de Estremoz e conseguiu concretizar esse sonho. Como director da Escola deu forte incentivo aos Cursos de Olaria e de Cantaria e com o apoio de Mariano da Conceição (1902-1959), estimulou a recuperação dos bonecos dados como extintos.
PRESÉPIO DE TRONO OU DE ALTAR
Para além dos modelos de presépio existentes, Sá Lemos induz Mariano da Conceição a criar um modelo de presépio que reúne num trono de cascata de Santo António, as figuras principais dum presépio. É o chamado presépio de trono ou de altar, com figuras montadas em cantareira de barro, pintada à maneira tradicional das casas alentejanas.
Para Mariano da Conceição, o presépio (estábulo, curral) é o interior de uma casa tradicional alentejana, toda caiada de branco, mas com rodapés e ornamentos do topo da fachada, pintados com a marca regional de azul do Ultramar. Por outro lado, o parapeito do varandim superior está decorado com tijolos dispostos regularmente em zig-zag, entre duas fiadas horizontais de tijolos.
As figuras do presépio são em número de nove e encontram-se dispostas hierarquicamente em três degraus da cantareira, hierarquizados de baixo para cima e da esquerda para a direita:
1º DEGRAU - OS PASTORES: - pastor ofertante em pé com um cesto com uma pomba branca; - pastor ajoelhado e de cabeça descoberta, orando com o chapéu à frente; - pastor ofertante em pé, segurando um borrego e com tarro enfiado no braço esquerdo.
2º DEGRAU – A SAGRADA FAMÍLIA: - Nossa Senhora ajoelhada; - Menino Jesus deitado numa manjedoura; - São José ajoelhado.
3º DEGRAU – OS REIS MAGOS: Gaspar, Baltazar e Belchior. Todos de pé e segurando as respectivas ofertas.
Na parede, por detrás dos reis magos, rasgam-se duas janelas de arco românico. A da esquerda, através da paisagem que por ela se vislumbra, contextualiza o local, onde na realidade nasceu Jesus. Por isso, esta janela mostra-nos, ao longe, uma casa de perfil palestiniano, ladeada por uma palmeira, árvore característica da região. Quanto à janela da direita, revela-nos o firmamento e nele a estrela, símbolo do poder divino que iluminou e conduziu os reis magos a Jesus.
O chão onde assentam todas as figuras é verde, pintalgado de branco, numa alegoria à erva usada para atapetar o chão dos estábulos e fazer a cama aos animais. Curiosamente, deste presépio estão ausentes a vaca e o jumento junto da manjedoura, geralmente representados nos presépios, de acordo com uma simbologia inspirada em Isaías 1:3 que diz: “O boi conhece o seu possuidor, e o asno, o estábulo do seu dono; mas Israel não conhece nada, e meu povo não tem entendimento”.
As cores utilizadas na decoração do presépio de trono ou altar, são: branco, azul do ultramar, amarelo de crómio, vermelhão, verde bandeira, cor-de-rosa, ocre e preto.
Entremos agora na descrição pormenorizada das figuras de cada um dos andares do altar:
PASTORES – São pastores alentejanos trajando à moda da primeira metade do século XX: bota caneleira de cabedal atacoada do lado de fora, calça grossa de saragoça ou burel, pelico de pele de borrego, por cima de jaqueta ou casaco de trabalho, em ganga azul. Por debaixo de tudo, uma camisa branca fechada em cima por um par de botões. Ao ombro uma típica manta alentejana de Reguengos, forma alegórica de referir o frio que faz entre nós no período de Natal. Os pastores estão aqui despojados dum atributo que lhes é habitual: o cajado.
SAGRADA FAMÍLIA – Nossa Senhora está ajoelhada e de mãos postas em atitude de oração. Tem um vestido azul comprido, com gola multicolor e sobre a cabeça um manto igualmente azul, com a orla igualmente multicolor. Repare-se no pormenor de Nossa Senhora ter a cabeça e com ela o cabelo coberto pelo manto. Para além da natural contextualização em termos de usos e costumes da época em que nasceu Jesus, a esta representação não será também estranho o reconhecimento da realidade vigente entre nós na primeira metade do século XX e que impedia qualquer mulher de entrar num local de culto, de cabeça descoberta.
O Menino Jesus está deitado, nu, nas palhinhas de uma manjedoura alentejana com friso decorado a azul do Ultramar. Na manjedoura, quatro pombas brancas, simetricamente pousadas, reforçam a ideia subjacente de Paz. Um galo branco postado ao centro da manjedoura parece cantar, como quem alegoricamente anuncia um novo dia: o dia de Natal, em que nasceu Jesus.
São José veste uma túnica curta azul, com bainha amarela e cabeção multicolorido, em fundo branco. Veste calça branca e botas pretas. Ajoelhado junto de Jesus, olha para o alto. A sua mão direita firma-se a um bordão com flor na ponta e a mão esquerda está assente no coração. A representação configura uma atitude de agradecimento a Deus pela graça recebida.
REIS MAGOS – Coroados, devido à sua real condição. Usam bota fina pintada de preto, com um botão amarelo em cima e calça branca, que como é sabido é uma cor cativa, possível referência alegórica aos reis magos estarem afastados das fainas quotidianas que maculam o vestuário. Vestem túnicas curtas debruadas a amarelo, mas cada uma delas de sua cor: Gaspar (cor de rosa), Baltasar (vermelhão) e Belchior (azul). Todas as túnicas têm um cabeção branco. Nos ombros têm um manto, amarelo à frente e zarcão atrás.
O presépio de trono ou de altar, existe em três tamanhos. No caso dos produzidos pelas irmãs Flores, que foi aqueles que estudámos têm as seguintes características:
- Formato pequeno (13x14x21 cm): figuras com 12 cm de altura;
- Formato médio (16x16x25,5 cm): figuras com 15 cm de altura;
- Formato grande (22x21,5x36,5 cm): figuras com 20 cm de altura.
A FINALIZAR
Para além do chamado presépio de trono ou de altar, existem outros modelos de presépios de Estremoz, que oportunamente serão por nós, objecto de outros posts.
BIBLIOGRAFIA
[1] - ABELHO, Azinhal. Barros de Estremoz. Edições Panorama. Lisboa, 1964.
[2] – BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus. Coimbra, 1713.
[3] - CHAVES, Luís. O primeiro «Presépio» de Lisboa conhecido (Século XVII). In, O Archeologo Português. Lisboa, Museu Ethnographico Português. S. 1, vol. 21, n.º 1-12 (Jan-Dez 1916), p. 229-230.
[4] – FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa. Editora T. Cardos & Irmão, 1899.
[5] – PESSANHA, Sebastião. Os bonecos d’Estremoz. In, Terra Portuguesa, I-II, 1911, p. 105.
Mariano da Conceição (1903-1959), criador do presépio de trono ou de altar,
trabalhando na sua oficina. Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988),
obtida nos anos 40 do séc. XX.