Hernâni Matos
JOGO DO PIÃO-Ilustração da artista plástica Cristina Malaquias, que teve a gentileza de me oferecer este magnífico desenho, que muito valoriza este post. Obrigado, Cristina. OS TREINOS A destreza no jogo do pião é fruto de horas esquecidas a treinar a rodopiante arte. A consagração de nicar maioritariamente os piões dos outros, desde sempre exigiu treinos intensivos e solitários em que usávamos dois piões, um para jogar e outro destinado a submeter-se a ser arremessado para fora do círculo do jogo. Por vezes, o treino era interrompido pela chegada de um parceiro que lançava o repto: - “Eh pá! Pára isso e vamos jogar a sério.” A resposta só podia ser uma: - “É para já! Julgas que tenho medo?” E o desafio tanto podia ser lançado por um presumido vencedor habitual, como por um corajoso habitual vencido, desejoso de inverter o sentido da sua má sorte. O primeiro destes com o pião mais incólume, o segundo com o pião mais marcado, mas qualquer deles, ferido de guerra. E digo guerra, porque jogar ao pião das nicas era exercitar estratégias de combate, que visavam desalojar o adversário do círculo onde estava, a fim de o nicar, se possível até à sua aniquilação. 0 O PIÃO DAS NICAS “Quem vai à guerra, dá e leva”, adágio que traduz na perfeição, o dia-a-dia dum pião. E o que é um facto indiscutível é que por mais que se dê, sempre se leva. Por isso, um pião das nicas é como que um ferido de guerra, que ostenta marcas identitárias – as nicas – distribuídas pelo seu corpo de madeira. São marcas inconfundíveis que revelam em toda a sua extensão, o passado de desventura de um pião ou, pela sua raridade, o passado de glória do mesmo, umas mais fundas, outras mais superficiais, dependendo do vigor de quem as firmou, bem como da consistência da madeira. E decerto que os mais rijos eram os de azinho. Daí o adágio: “Rijo como o azinho.” 0 O CÍRCULO DO JOGO Quando o círculo do jogo estava sumido, era chegada a altura de traçar outro no chão do terreiro. E esse seria um círculo perfeito, porque a brincadeira é a forma infantil de procurar a perfeição. Para tal, fazíamos como víramos fazer aos jardineiros municipais, quando tinham que marcar na terra uma zona circular, onde fariam nascer um canteiro de flores. Sabem como era? Usávamos uma guita e dois piões que prendíamos à extremidade da guita. Um dos piões era espetado no chão, por um de nós. Com a guita esticada, dávamos então uma volta completa com o outro pião, com o ferrão a sulcar o chão de terra batida. Quando o chão era mais rijo, em vez do segundo pião, usávamos um pauzinho de picão da braseira ou um pau de giz branco, palmado à socapa na escola. Tudo dependia da cor do chão. E isto era um ritual para nós tão importante, como estar em estado de graça, antes de receber a Eucaristia. Só mais tarde, ultrapassados os meus tempos de bibe e de pião, é que vim a conhecer a matemática da circunferência. Esta é conhecida desde a Antiguidade e tinha a ver com o acto prático de mensuração, como acontecia no Egipto, onde devido às cheias periódicas do Nilo, os agrimensores não tinham “mãos a medir”. Quem sabe se, porventura, não terão sido eles que através de múltiplas gerações, transmitiram iniciaticamente aos jardineiros municipais, a técnica do traçado da circunferência que lhes permite delimitar o círculo do canteiro. E dos jardineiros municipais nos tornámos discípulos naquela técnica, convictos de que não basta ver como se faz, é preciso também saber fazer. 0 O PIÃO NA LITERATURA ORAL A minha preocupação com a oralidade da língua, levou-me a pesquisar a presença do pião na literatura oral. No âmbito do adagiário popular são conhecidos os provérbios: “Minha mãe a castigar-me e eu com o pião às voltas”, “Não anda o pião sem a baraça”, “Onde vai o pião vão o ferrão”. No domínio do calão são conhecidas algumas frases. Assim, “Apanhar o pião à unha” significa “Aproveitar sem hesitação uma oportunidade que surge inesperadamente”, bem como “Pião-das-nicas” tem o significado de “Bode expiatório”. Na toponímia, “Pião” é topónimo de lugares das freguesias de Afife, Estreito, Góis e Lagarteira. No contexto das alcunhas alentejanas, conhecemos as seguintes: PIÃO (Alcunha outorgada a alguém que em criança era jogador exímio de pião - Moura, Elvas, Monforte e Moura), PIÃO (O alcunhado é deficiente de um pé e ao andar parece um pião a rodar – Beja), PIÃO DAS NICAS (Moura) e PIÃO DE XARA (A visada tem perna curta e entroncada). A nível de adivinhas, existem muitas cuja solução óbvia é o pião. Destacamos duas. Na primeira, é o lançador que fala, referindo-se ao enrolamento da guita e ao lançamento do pião: 0 “Para andar lhe ponho a capa, E tirei-lha para andar; Que elle sem capa não anda, Nem com ela pôde andar”. 0 Na segunda, é o pião que fala: 0 “Para andar me põem capa, Para andar ma vão tirar; Se não posso andar sem capa, Com capa não posso andar.” 0 Finalmente a nível de cancioneiro popular são bem conhecidas quadras, como estas duas que integram uma popular canção infantil: 0 “Eu tenho um pião. Um pião, que dança. Eu tenho um pião, bem na minha mão.” 0 “Gira que gira, O meu pião, Mas não to dou Nem por um tostão." 0 O BAÚ DAS MEMÓRIAS Hoje o jogo do pião faz parte do imaginário dos putos da minha geração. Integra o baú espaçoso das nossas memórias de infância. Era um tempo sem televisão, sem vídeos, sem computadores, sem play-stations e sem joysticks. Era um tempo de brincadeiras e jogos, que além de nos divertirem, eram praticadas em grupo e estavam associadas ao exercício físico e ao desenvolvimento mental, nomeadamente da imaginação e da criatividade. Contribuíam assim para a nossa socialização e para o nosso bem-estar físico e mental. Pelo contrário, as brincadeiras e os jogos de hoje, são jogos programados, que condicionam a imaginação e a criatividade, como convém a este sistema de poder, ao qual interessa a existência de cidadãos acríticos que aceitem passivamente, o que outros pré-determinaram. As brincadeiras e os jogos de hoje, contrariam a socialização da criança, fomentam o individualismo e a agressividade. E é claro, mal da civilização, estão na origem da obesidade infantil. É caso para dizer: - Oh tempo volta para trás. Dá aos miúdos, os jogos e as brincadeiras que eles perderam… 0 BIBLIOGRAFIA – BRAGA, Teófilo. O Povo Português. Livraria Ferreira. Lisboa, 1885. – CURVO SEMEDO. Composições Poéticas. Parte II (1903); Parte III (1817). Lisboa. – EDITORIAL ENCICLOPÉDIA. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Vol. 21. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d. FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981. - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957. – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959. - LIMA, Augusto Castro Pires de. O Livro das Adivinhas. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1943. - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Adagiário Português. Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho. Gabinete de Etnografia. Lisboa, 1963. - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957. - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas.6ª edição. Editorial Notícias. Lisboa, 2000. – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 4. 5ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1989. - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998. - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986. – PORTO EDITORA. Grande Dicionário. Porto Editora. Porto, 2004. - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001. – RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003. – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990. - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993. - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIII (1933); vol. XXXIV (1934). |
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora".
JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena. |
JOGO DO PIÃO. Pormenor do quadro JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena. |
O PIÃO (c/1780) – gravura francesa de Augustin de St. Aubin (1736-1807), obtida a partir de chapa de cobre. Colecção particular. |
Desenho de John Siebert, litografado por Joseph Brodtmann, cerca de 1830. |
VELHO IRRITADO COM OS PIÕES DAS CRIANÇAS - Ilustração de John Leech (1817-1864) que colaborou como cartoonista do jornal inglês Punch, entre 1841 e 1864. |
O RAPAZ DO PIÃO (s/d). Oléo sobre tela do pintor grego Périclès Pantazis (1873-1884), pertencente a colecção particular. |
Robert Douglas Spedden, de 6 anos de idade, de Nova Iorque, jogando ao pião a bordo do Titanic sob o olhar atento do pai, Frederic Spedden. Fotografia tirada pelo reverendo padre Frank Brown, na travessia entre Southamptom e Quenstown, antes de o navio, que na sua viagem inaugural atravessava o Atlântico, ter chocado com um iceberg e se ter afundado na madrugada de 15 de Abril de 1912. Dos 2223 pessoas a bordo, sobreviveram 706, entre elas, Robert e os seus pais (Fotografia extraída de http://titanic.pagesperso-orange.fr/). |
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo |
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo |
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo |
JOGAR AO PIÃO – Estampa pertencente ao dossier pedagógico “Ser criança entre 1890 e |