sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


















domingo, 23 de outubro de 2022

Imortalidade

 

Luís Brito da Luz. Criação de Ricardo Fonseca (1986-).

Transcrevo com a devida vénia
um excelente texto de Luís Brito da Luz,
onde se fala da imortalidade, da amizade
e dos Bonecos de Estremoz

Objecto de fascínio pela humanidade desde o início dos tempos, a imortalidade sempre moveu o homem na tentativa de viver como uma forma de vida, física ou espiritual, durante um período infinito de tempo. A Epopeia de Gilgamesh, poema épico da Mesopotâmia do século vinte e dois anterior ao nascimento de Cristo, constituído por doze placas de escritas cuneiforme, cada uma com trezentos versos, uma das primeiras obras literárias da humanidade, é essencialmente a procura de um herói pela imortalidade. Agarrou-se o homem, primeiramente à imortalidade espiritual, dado que durante a maior parte do tempo em que vivemos, era a única condição possível de vida eterna. A crença na vida após a morte é um princípio fundamental de muitas religiões (cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, zoroastrismo, etc.) e dos homens que as professam. Durante séculos e séculos este princípio confortava os vivos dotados de alma eterna.
Muito recentemente, cientistas, futurólogos, filósofos e adeptos do transumanismo (transformação da condição humana com o uso de tecnologias emergentes) defendem que a imortalidade é possível em humanos já neste século, alcançável através de engenharia genética e implantes tecnológicos, enquanto outros, através de rejuvenescimento biológico acreditam no sustar do envelhecimento proporcionando aos seres humanos a tão desejada imortalidade biológica, mas não a invulnerabilidade à morte por lesão física (a probabilidade de um individuo morrer desta forma, com base em dados estatísticos de 2002, seria de uma vez em cada mil e setecentos anos). Também a criogenia mantém a esperança de que os mortos possam ser revividos no futuro e a Mind upload (conceito de transferência de um cérebro humano a um meio alternativo que oferece as mesmas funcionalidades) daria a imortalidade da consciência.
Para já, e parafraseando Franz Kafka que diz que “o sentido da vida é que ela termina”, apenas conseguimos aumentar a esperança média de vida, e não estender essa mesma vida (pessoas com mais de cem anos já viviam há séculos) e conhecer a imortalidade biológica, em pelo menos uma espécie de água-viva, a felizarda Turritopsis nutricula.
Também a Fama, para os famosos claro, é um meio de alcançar a imortalidade, mas apenas semanticamente.
No que a mim me diz respeito, até a ciência responder convenientemente a este desígnio, sou imortal espiritualmente pois professo a fé católica e também sou imortal porque me perpetuei ao ser pai, recorrendo à ajuda de Deus que me permita a persistência da minha vida através do tempo, com a minha prole sobrevivente ou material genético que ficar. Mas também sou imortal, semanticamente, pelas obras que fiz e que escrevi, particularmente nos livros que editei, nos vinhos que produzi e nas árvores que plantei. Igualmente, também serei imortal nas memórias dos que me amam, tal como aqueles que eu amei e já partiram, continuam vivos nas minhas.
Agora, o que eu não sabia, é que tinha alcançado a imortalidade de uma outra maneira. Foi preciso fazer cinquenta anos para me tornar novamente imortal. Por ocasião da festa de celebração desta especial e única data, e com muita pena minha por o meu amigo Fernando Aldeagas, o Mac como é tratado, não poder estar fisicamente comigo, por motivos de saúde, pediu-me que fosse a sua casa, uns dias depois, pois ele e a Elsa, sua mulher, tinham uma prenda para me oferecer. Ao abrir uma caixa de cartão, gentilmente entregue pela Elsinha, e pomposamente forrada, encontrei lá dentro um boneco de Estremoz devidamente embrulhado e acondicionado. Ao colocar o boneco nas mãos, facilmente depreendi pela experiência que fui adquirindo ao longo dos anos como colecionador de bonecos de Estremoz, que o mesmo era da produção da famosa oficina das Irmãs Flores, Maria Inácia e Perpétua Fonseca aprendizes, nos primórdios da sua carreira, de Sabina Santos, descendente da famosa Olaria Alfacinha, a qual remonta a finais do seculo dezanove. Ao colocar o boneco de cabeça para baixo apercebi-me que o artista não era uma das irmãs, mas o seu sobrinho Ricardo Fonseca, também ele artista e a trabalhar na oficina com a tias. Estava assinado com o seu nome, datado e com o nome “Estremoz” como é costume na produção desta casa. Restava-me virar a peça de frente para ter uma surpresa inesquecível. Corei a olhar para mim mesmo como se estivesse a olhar para o espelho, no exacto momento em que o Mac me diz “és tu!”. Fiquei estupefacto pois imediatamente realizei a perfeição da obra. Os pormenores são soberbos, com a calvície a emergir num cabelo a pedir para ser cortado, as patilhas exactamente no sítio certo, a barba feita, a camisa da Ralph Lauren eximiamente passada, diria mesmo quase engomada, e aberta até ao sítio certo, as três dobras nas mangas, dois dos meus atributos preferidos, os livros e as uvas a metaforizar o vinho, as calças de gangas passadas mas não vincadas com as bainhas correctas, o cinto a condizer com os sapatos, estes italianos, castanhos e sempre bem engraxados. Um hino à minha pessoa.
Não sei qual foi a foto que o Mac escolheu para o Ricardo se basear (apenas me disse que lhe tinha entregue uma foto minha), contudo afianço sem qualquer hesitação que o trabalho está muito superior à reprodução.
Dado que a Produção de Figurado em Barro de Estremoz integra o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, desde 2014, e é Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO desde 07 de Dezembro de 2017, também eu tinha acabado de me tornar imortal, uma vez mais, tornando-me também Património Cultural Imaterial da Humanidade, ainda por cima certificado (a produção dos bonecos de Estremoz está certificada desde 07 de Dezembro de 2018).
Das muitas prendas que recebi pelo meu aniversário, todas elas excelentes, sem dúvida alguma que esta foi a que mais me tocou no coração.
Bem hajam pela vossa amizade!

Estremoz, 8 de Outubro de 2022
Luís Brito da Luz