terça-feira, 12 de outubro de 2021

Monumento nacional demolido em Estremoz para dar lugar a hotel de charme

 

O edifício situa-se na encosta escarpada da colina de Estremoz.

Reportagem de CARLOS DIAS transcrita com a devida vénia do jornal PÚBLICO de 11-10-2021, com autorização do seu director MANUEL CARVALHO, a quem o autor do blogue, reconhecidamente agradece. 

O edifício foi abandonado nos anos 30 do século passado e chegou a 2021 reduzido à fachada principal, derrubada em Abril. Será reconfigurada com os elementos que a constituíam, no projecto assinado por Siza Vieira e Carlos Castanheira.

 

Com o arranque, no mês de Abril, das obras de adaptação de um conjunto de antigos edifícios abandonados, entre eles a “Casa do Alcaide-Mor”, que é monumento nacional desde 1924, para dar lugar a um hotel de charme e várias habitações turísticas, com a designação de villas, fica encerrado um conturbado processo iniciado em 2016.

No entanto, a polémica persiste. Vítor Cóias, especialista na requalificação e reabilitação de património que privilegia a utilização de técnicas e materiais tradicionais, contesta opções do projecto que é assinado pelos arquitectos Siza Vieira e Carlos Castanheira. Na informação que prestou ao PÚBLICO, interroga-se: “Pode-se demolir um monumento nacional e substituí-lo por uma réplica com estrutura de betão armado?” E dá a resposta: “Pode, como se demonstra com a Casa do Alcaide-Mor da Cidadela de Estremoz.”

Ao fim de quase um século de abandono, em que sucessivos executivos municipais antes e depois do 25 de Abril contemporizaram com a progressiva degradação de um monumento nacional, nem a fachada, derradeiro testemunho do que foi a “Casa do Alcaide-Mor”, foi possível recuperar. No local das obras já estão montadas as armaduras e cofragens de pilares de betão armado, “aparentemente no plano das fachadas demolidas”, refere o especialista.

O edifício que foi a residência privada de D. Sancho de Noronha, alcaide-mor de Estremoz durante o século XV, mantinha a mais interessante fachada de arquitectura civil erguida na encosta escarpada da colina de Estremoz, a cerca de 80 metros da torre de menagem do castelo. Evidenciava vários estilos, tais como o mudéjar, o renascentista, o manuelino e o neoclássico. Destacavam-se as janelas da fachada frontal de estilo manuelino-mudéjar.

José Sádio, que será o próximo presidente da Câmara de Estremoz e é vereador no actual executivo, pelo PS, explicou ao PÚBLICO que o processo se tornou “irreversível”, mas que a fachada agora demolida será reposta. “Foi mapeada toda a estrutura, para que possa ser construída igual à que estava” e onde serão colocados todos os elementos que a caracterizavam. “Foram guardadas as cantarias para serem incorporadas na nova fachada”, referiu Vítor Cóias.

Em Abril de 2016, o então presidente da Câmara de Estremoz, Luís Mourinha, eleito na lista do Movimento Independente por Estremoz e que perdeu o mandato em Fevereiro de 2019 por ter sido condenado pelo crime de prevaricação, garantia ao PÚBLICO: a deliberação aprovada (em Março de 2016) pelo executivo municipal determina que a fachada da antiga casa “vai manter-se tal com está”. Mas, em Abril passado, acabou por ser demolida.

Projecto de milhões

A Casa do Alcaide-Mor de Estremoz foi adquirida em hasta pública por 180 mil euros pelo antigo presidente da Portucel e ex-administrador da EDP Jorge Godinho, que é sócio-gerente da empresa Barrocas Turismo e Lazer. Também comprou um conjunto de outros edifícios do mesmo quarteirão a particulares, desde a antiga Casa do Alcaide-Mor até à Capela da Rainha Santa Isabel. Na sua maior parte, estavam devolutos. O promotor teve de negociar apenas a saída de um residente que tinha feito obras no edifício que habitava.

Durante a apresentação do projecto da autoria de Siza Vieira e Carlos Castanheira, a 17 de Julho de 2019, Jorge Godinho adiantou que o empreendimento oferece, para além do hotel e das villas, “vários pátios, com espaços de lazer, e um patamar ajardinado junto à muralha” que permita a todos os hóspedes e visitantes frequentar uma zona de restauração na unidade hoteleira.

O conjunto das casas adquiridas a particulares vão funcionar como suítes, todas elas viradas para um hall central, e o projecto vai custar “vários milhões de euros”, refere o promotor, sem adiantar números precisos. Os hóspedes vão usufruir de todos os serviços do hotel.

O imóvel que se encontrava ao abandono desde a década de 30, e que chegou a ser um bordel, teve na sua génese as dificuldades de alojamento que D. Afonso V sentia sempre que se deslocava a Estremoz para caçar. A casa do alcaide-mor passou a albergar o monarca e a sua numerosa corte durante longos períodos, transformando-se em paço real, obrigando o alcaide-mor e a sua família a deslocarem-se para outro local.

É neste contexto que surge a necessidade de encontrar uma nova habitação para o alcaide-mor, que se materializa com a construção da casa onde vai surgir agora, no século XXI, um hotel de charme.

O edifício, que também é conhecido por Casa da Câmara medieval, terá acolhido o paço municipal, mas Túlio Espanca (historiador de arte e primo de Florbela Espanca) admite que esta funcionalidade “parece não ter muito fundamento”. Depois passou por momentos conturbados, quando a Câmara de Estremoz o colocou à venda numa criticada hasta pública.

Foi arrematado por John Ryan, cidadão irlandês em representação de Iris Holding Group, empresa dos Estados Unidos da América com sede num paraíso fiscal nos EUA e com sucursal na Praça Luís de Camões, em Estremoz, pelo preço de 279 mil euros. O cheque no valor de 10% do preço global da licitação (27.900 euros) foi depositado na conta do município de Estremoz, mas rapidamente se descobriu que estava sem provisão-

John Ryan foi notificado pela autarquia para, no prazo máximo de cinco dias úteis, proceder à regularização do cheque. Nada feito. Segue-se mais uma série de prorrogações para que regularizasse o pagamento da caução e é ameaçado com a possibilidade do município recorrer à via judicial para a cobrança em dívida, o que não surtiu qualquer efeito. Depois de várias insistências, Ryan mostrou-se apenas disponível para assinar “o que fosse necessário para a realização de nova hasta pública ou para a adjudicação do imóvel a quem fez a proposta imediatamente anterior à última efectuada” em hasta pública. A venda acabou por ser revogada.

Por fim, em Agosto de 2018 e em nova hasta pública, a Casa do Alcaide-Mor de Estremoz foi arrematada a Jorge Godinho, pelo valor de 180 mil euros, e as obras de reconversão do imóvel, que deveriam ter arrancadono início de 2020, começaram em Abril de 2021.

O edifício que foi a residência privada de D. Sancho de Noronha, alcaide-mor de
Estremoz durante o século XV, evidenciava vários estilos, tais como o mudéjar,
o renascentista, o manuelino e o neoclássico.

Fachada será reconstruída

Na reunião da Câmara de Estremoz realizada no dia 28 de Abril de 2021, os vereadores da oposição (PS) questionaram o presidente da autarquia pela falta de informação que está a envolver o projecto, alegando desconhecerem as razões que forçaram à demolição da fachada do edifício. Mesmo assim, esperam que o derrube da estrutura tenha sido feito “após um levantamento preciso para a sua reconstrução e de acordo com a imagem existente.”

O vereador José Trindade respondeu que foi efectuada uma “demolição/contenção da fachada com aproveitamento de todos os elementos necessários para a sua replicação”, tendo o processo sido precedido de um relatório prévio devidamente aprovado pelos Serviços de Arqueologia da Direcção Regional de Cultura do Alentejo.

Vítor Cóias diz que o projecto de Siza Vieira e Carlos Castanheira “‘turistifica’, mais do que requalifica, e contraria as intenções que vinham sendo manifestadas pelo município, que eram de criar um espaço aberto ao público, com uma utilização de índole cultural.”

Não foi possível obter esclarecimentos do presidente da Câmara de Estremoz, Francisco Ramos, nem da Direcção Regional de Cultura do Alentejo, sobre o assunto.


CARLOS DIAS

1 comentário:

  1. E o capital puro e duro vai fazendo o seu caminho...não será possivel manter tudo como dantes..mas tem de haver prioridades..o Alentejo vai virar Disneilandia e Vale de S.Francisco ...

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