segunda-feira, 23 de junho de 2014

A lavadeira na poesia erudita

MULHER A LAVAR A ROUPA. Mariano da Conceição (1903-1959).
Dimensões (cm): Alt. 13; Larg. 6,6.
Marcas: ESTREMOZ/PORTUGAL aposta por carimbo (0,8 cm x 2 cm)
Museu Nacional de Etnologia, Lisboa.

Os poetas eruditos falam-nos de lavadeiras na ribeira, no rio e no tanque.  
De lavadeiras na ribeira nos fala o político, deputado, jornalista, escritor e poeta Guerra Junqueiro (1850 -1923), no seu poema “Boas  Noites” [1]:

Estava uma lavadeira
A lavar n'uma ribeira,
Quando chega um caçador.


—Boas tardes, lavadeira!

—Boas tardes, caçador!

—Sumiu-se-me a perdigueira
Alli n'aquella ladeira,
Não me fazeis o favor
De me dizer se a bréjeira
Passou aqui a ribeira?


—Olhai que d'essa maneira
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.


—Que me importa, lavadeira!
Aqui na minha algibeira
Trago dobrado valor.
Assim eu fôra senhor
De levar a vida inteira
Só a vêr o meu amor
Lavar roupa na ribeira...


—Talvez que fosse melhor,
Vêr... coser a costureira!
Vir, de ladeira em ladeira,
Apanhar esta canceira
E tudo só por amor
De vêr uma lavadeira
Lavar roupa na ribeira...
É escusado, senhor!


—Boas noites... lavadeira!

—Boas noites, caçador!...


De lavadeiras no rio nos fala o poeta, escritor e político reguenguense, António de Macedo Papança (1852-1913), Conde de Monsaraz , no seu poema “Lavadeiras” [2]:

Lavam no claro rio, entre balceiras,
       Ranchos de lavadeiras;
No rio em cujas águas, loiro e esparso,
       Faísca o sol de Março
Numa alegria rústica e pagã.

       Oito horas da manhã.
       Sopra uma leve aragem,
Que ondula e que estremece na paisagem
E em tomo dá palpitações de vida
À roupa nas ramadas estendida;
………………………………………………..

E pela margem fora as lavadeiras,
Velhas e novas, loiras e trigueiras.
        Na faina que as não poupa
        Lavam, batem a roupa:

Braços nus, pernas nuas, ancas largas,
Num retoiçar de peitos e de ilhargas,
        Ensaboando, esfregando,
Rubras de sol, curvadas e cantando,
        Meneia-se cada uma
         Entre flocos de espuma.

De lavadeiras no rio nos fala, ainda, o dramaturgo, escritor e poeta estremocense, Silva Tavares (1893-1964), no seu poema “As lavadeiras” [3]:
……………………………………
O chape-chape sempre constante,
mercê da esfrega mais do sabão.
       — chape-gue-chape
       sôa, cantante,
       sem que se escape
       por um instante
dos meus ouvidos essa canção!

E sôbre a pedra todas curvadas,
chape-que-chape, sem descansar,
      as lavadeiras
      passam — coitadas!—
      vidas inteiras
      sempre ajoelhadas,
como se a pedra fosse um altar!...
……………………………………………

De lavadeiras no rio nos fala, também, Fernando Pessoa (1888-1935), na quadra “Lavadeira a bater roupa” [4]:

Lavadeira a bater roupa
Na pedra que está na água,
Achas a minha mágoa pouca?
É muito tudo o que é mágoa.
  
Alberto Caeiro, poeta bucólico e anti-filósofo, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, fala, igualmente, das lavadeiras do rio, no seu poema: “Quem me dera que eu fosse o pó da estrada” [5]

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando. . .
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira. . .
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse. . .
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena. . .

De lavadeiras do rio nos fala ainda Amália Rodrigues (1920-1999) no seu poema “Lavava No Rio, Lavava”, o qual cantava com música de José Fontes Rocha [6]
  
Lavava no rio, lavava
Gelava-me o frio, gelava,
Quando ia ao rio lavar.
Passava fome, passava,
Chorava, também chorava,
Ao ver minha mãe chorar!
Cantava, também, cantava!
Sonhava, também, sonhava!
E, na minha fantasia,
Tais coisas fantasiava,
Que esquecia que chorava,
Que esquecia que sofria!

Já não vou ao rio lavar,
Mas continuo a chorar!
Já não sonho o que sonhava!
Já não lavo no rio!
Por que me gela este frio
Mais do que então gelava?

Ai, minha mãe, minha mãe
Que saudades desse bem,
Do mal que eu não conhecia!
Dessa fome que eu passava,
Do frio que nos gelava,
E da minha fantasia!

Já não temos fome, mãe!
Mas já não temos também
O desejo de a não ter!
Já não sabemos sonhar,
Já andamos a enganar
O desejo de morrer!

Já Pedro Homem de Mello (1904-1984) no poema: “Povo”, [7] , chama “Povo que lavas no rio” às lavadeiras do rio:

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!
……………………………….

Fernando Pessoa, que já abordara poeticamente a lavadeira do rio, fala de outro tipo de lavadeira no poema “A lavadeira no tanque”[8]:

A lavadeira no tanque
Bate roupa em pedra bem.
Canta porque canta e é triste
Porque canta porque existe;
Por isso é alegre também.

Ora se eu alguma vez
Pudesse fazer nos versos
O que a essa roupa ela fez,
Eu perderia talvez
Os meus destinos diversos.

Há uma grande unidade
Em, sem pensar nem razão,
E até cantando a metade,
Bater roupa em realidade. . .
Quem me lava o coração?

Finalmente, o engenheiro Álvaro de Campos, outro dos heterónimos de Fernando Pessoa, no poema “Tabacaria” [9], admite a sua eventual felicidade se casasse com a filha da sua lavadeira:
……………………..
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
…………………..
  



[1] In “Flores do Campo”. Porto. Livraria Universal, 1876.
[2] In  “Musa Alentejana / Lira de Outono”. Lisboa. Livraria Férin, 1954.
[3] In “Gente Humilde”. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1934.
[4] s. d. / Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).
[5] 1914 /“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.). Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
[6] A canção “Lavava No Rio Lavava” integra o álbum de Amália “Gostava de Ser Quem Era “, editado em 1980 pela casa Valentim de Carvalho.
[7] In “Miserere”. Lisboa: Editora Portugália, 1948. Este poema constituiu letra de fado cantado pela primeira vez por Amália Rodrigues, com música de Joaquim Campos. Posteriormente passou a fazer parte do reportório de cantores como António Variações, Cidália Moreira, Dulce Pontes, Mariza, Mafalda Arnauth, José Cid e José Perdigão.
[8] 15-9-1933 / Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosári15-1-1928 / Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993): 252. 1ª publ. in Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933. Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
[9] 15-1-1928 / Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993): 252. 1ª publ. in Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.

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