sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ensaio sobre o ciúme


CIÚME (1923). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre madeira (45,5 x 41,5 cm).
Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.
PREÂMBULO
Na gíria popular é habitual ouvirem-se frases do género: “O António anda consumido de ciúmes por causa da Maria e do José.”. Significa isso que a relação entre a Maria e o José, despertou no António, ciúmes que o mortificam. Mas o que é o ciúme? O ciúme é a resistência complexa a uma sintoma perceptível numa relação relevante ou no carácter dessa relação, envolvendo sempre três ou mais pessoas: aquela que sente ciúmes, aquela de quem se sente ciúmes e aquela ou aquelas que são o motivo dos ciúmes.
O ciúme desperta múltiplas emoções: raiva, dor, inveja, tristeza, medo, depressão e humilhação.
O ciúme está na origem de pensamentos variados: ressentimento, culpa, comparação com o rival, preocupação com a imagem, auto-comiseração;
O ciúme activa reacções físicas diversas: taquicardia, falta de ar, boca seca ou excesso de salivação, transpiração, aperto no peito, dores físicas.
O ciúme leva à manifestação de determinados comportamentos: questionamento permanente, procura impaciente de confirmações e acções agressivas, por vezes violentas.
O ciúme é instintivo, natural e marcado pelo medo ou vergonha da perda do amor de quem se ama. O ciúme está relacionado com a falta de confiança no outro e/ou em si próprio.

O CIÚME NA BÍBLIA SAGRADA
Dos 46 livros que na Bíblia Sagrada constituem o Antigo Testamento, apenas 16 relatam o ciúme, num total de 44 alusões, assim distribuídas: Génesis (1), Êxodo (2), Números (8), Deuteronómio (6), Josué (1), I Reis (1), Salmos (2), Provérbios (1), Eclesiastes (1), Eclesiástico (2), Isaías (3), Ezequiel (11), Joel (1), Naum (1), Sofonias (1), Zacarias (2). Por sua vez, dos 27 livros que na Bíblia Sagrada constituem o Novo Testamento, apenas 6 narram o ciúme, num total de 11 menções, assim distribuídas: São Mateus (1), Romanos (4), I Coríntios (1), II Coríntios (1), Gálatas (1), São Tiago (3). O ciúme é assim mais referido no Antigo Testamento que no Novo Testamento. Quanto ao livro que o relata mais, trata-se de Ezequiel.
O ciúme ataca os homens:
- “irmãos ficaram com ciúmes de José, enquanto o pai meditava sobre o assunto.” (Génesis 37,11)
O próprio Deus é ciumento:
- “Não te prostres diante desses deuses, nem os sirvas, porque Eu, Javé teu Deus, sou um Deus ciumento: quando Me odeiam, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos;” “ (Êxodo 20,5)
É apontado um ritual para o caso do marido ter ciúme da mulher:
- “Este é o ritual para o caso de ciúme, quando uma mulher se desvia e se torna impura, enquanto está sob o poder do marido;” (Números 5,29)
Reconhece-se o ciúme como causador de raiva e o direito de vingança sem piedade:
- “Porque o ciúme provocará a raiva do marido, que não terá piedade no dia da vingança:” (Provérbios 6,34)
Reconhece-se que a mulher ciumenta de uma rival pode causar desvarios, nomeadamente através do praguejar:
- “Mas a mulher ciumenta de uma rival causa grande dor e aflição. E a praga da língua é o ponto comum de todas estas coisas.” (Eclesiástico 26,6)
Condena-se também explicitamente o ciúme no dia a dia:
- “Vivamos honestamente, como em pleno dia: não em orgias e bebedeiras, prostituição e libertinagem, brigas e ciúmes.” (Romanos 13,13)
Reconhece-se também o ciúme como fonte de desordem e outras más acções:
- “De facto, onde há ciúme e espírito de rivalidade, existe também desordem e todo o género de más acções.” (São Tiago 3,16)

O CIÚME NO ADAGIÁRIO
O adagiário português regista máximas relativas ao ciúme:
O ciúme é encarado como consequência natural do amor:
- “Quem tem ciúme quer bem.”
- “Sem ciúmes não há grande afeição.”
- “Não há esperança sem temor, nem ciúme sem amor.”
Todavia, o ciúme depende mais de outros factores que do amor:
- “O ciúme depende mais da vaidade que do amor.”
- “Há no ciúme, mais amor-próprio do que amor.”
O ciúme mata o amor que o gerou:
- “O amor gera o ciúme e o ciúme mata o amor.”
O ciúme é associado aos sentidos da visão e da audição:
- “O ciúme tem olhos de lince.”
- “O ciúme tem lume nos olhos.”
- “Nada há que os ouvidos do ciúme não oiçam.”
- “O ciúme nasceu cego e morreu surdo.”
A opinião sobre o ciúme é negativa:
“O ciúme é o maior de todos os males.”
“Vingança e ciúmes são espadas com dois gumes.”

O CIÚME NO CANCIONEIRO POPULAR
O universo psicológico do ciúme está bem patente no cancioneiro popular alentejano. Assim, o ciumento crê que não há amor sem ciúme:

“Amar, e não ter ciumes,
Isso não é querer bem;
Quem não zela o que bem ama,
“Muito pouco amor lhe tem.” [3]

“A minha cruel rival,
De raiva a vejo soffrer;
Apesar de ter ciúmes,
Hei-de te amar até morrer.” [3]

Pensa também que o amor não é para repartir:

“O amor e o dinheiro
são duas coisas parecidas,
depressa se vão embora
se são muito repartidas.” [4]

O ciumento é desconfiado:

“Meu amor ficou de vir
mas ainda não apareceu,
quem seria essa ingrata
que por lá mo entreteu.” [4]

“Eu hei-de ir para um altinho,
Debaixo não vejo bem,
Quero ver se o meu amor
Dá paleio a mais alguém.” [3]

O ciúme desperta dor:

“Vi-te ao poço, mai-la outra,
enquanto eu ceifava o trigo;
ai, quem pudesse ceifar
a dor que trago comigo.” [4]

“‘St’a chegada a triste noite,
Noite para mim de horror!
O meu bem em braços d’outra
E eu entregue á minha dor.” [3]

O ciumento não tem sossego:

“O maldito do ciume
Não me deixa socegar,
Nem de noite, nem de dia,
Nem á hora do jantar.” [3]

O ciúme desperta inveja:

“A enveja do ciúme
É um ferro abrasador
Muita gente tem enveja
D’eu querer bem ao meu amor.” [1] (Mina de S. Domigos)

O ciumento chega a admitir a morte:

“No caminho de Olivença
Foi que eu ouvi dizer,
Que tinhas outros amores;
Fiquei capaz de morrer!” [3]

“À entrada desta rua
Levantei meus olhos, vi
Meu amor em braços doutra,
Não sei como não morri.” [1] (Beja)

O ciumento condena-se ao desterro:

“Se a minha rival ditosa
Tem a sina de vencer,
Então me deixo de amores
Desterrada vou viver.” [3]

O ciumento duvida do valor da troca:

“Trocaste-me a mim por outra,
Eu bem sei que me trocaste,
Gostava bem de saber
Quanto na troca ganhaste.” [2] (Alcáçovas)

O ciúme por vezes aconselha à separação:

“Eu te deixo, tu me deixas,
ficamos ambos em paz,
tu tens outra rapariga
e eu tenho outro rapaz.” [4]

O ciumento despede o antigo amor:

“Vai-te embora, amor ingrato,
Já não quero nada teu,
Pois que foste dar a outro
Coração que já foi meu.” [2] (Veiros)

Há corações ciumentos que dizem resistir:

“O meu coração
Em tudo é valente:
Mesmo em ciúme,
Vive alegremente.” [2] (Castro Verde)

“Se julgas que eu me importo
de teres outra em meu lugar,
aquilo que eu deito fora
qualquer pode arrecadar.” [4]

Sabem uma coisa? O melhor é não ter ciúmes…

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Cancioneiro Popular Português, vol. I. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1971.
[3] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia Progresso. Elvas, 1909.
[4] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 14 de Outubro de 2011  

ALEGORIA DO CIÚME (1640). Luca Ferrari (1605-1654). 
Óleo sobre tela (171 x 116 cm). Hermitage, São. Petersburgo. 

NA PRAIA - DOIS SÃO COMPANHIA, TRÊS NÃO SÃO NADA (1872). Gravura em madeira desenhada
por Winslow Homer (1836-1910). Publicada no semanário “Harper”, a 17 de Agosto de 1872. 

CIÚME E NAMORO (1874). Haynes King (1831-1904). Victoria and Albert Museum, London. 

O CIÚME (1896). Maxime de Thomas (1867- 1920). Litografia original
impressa em tom vermelho sobre papel verde. Editor: Le Centaur, Paris.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A semana na literatura oral


JOÃO  SEMANA - Ilustração de Alfredo Roque Gameiro  (1864-1935)
para o romance "As Pupilas do Senhor Reitor", publicado em 1867,
 por Júlio Dinis (1839-1871).

A semana (do latim septimana = sete manhãs) é um período de tempo de sete dias sucessivos.
Na língua portuguesa, os dias da semana têm denominações baseadas na liturgia católica, por iniciativa de Martinho de Dume (518-579), bispo de Braga e de Dume, canonizado pela Igreja Católica e figura de proa da História Ca cultura e da Língua Portuguesas
Martinho considerava impróprio de bons cristãos continuar a designar os dias da semana pelos nomes latinos pagãos de Lunae dies, Martis dies, Mercurii dies, Jovis dies, Veneris dies, Saturni dies e Solis dies. Daí ter introduzido a terminologia litúrgica para os designar (Feria secunda, Feria tertia, Feria quarta, Feria quinta, Feria sexta, Sabbatum, Dominica Dies), donde as designações actuais em língua portuguesa (Segunda-feira, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira, Sábado e Domingo).
Devido á sua formação cristã, o povo aceitou de bom grado as novas designações e a partir daí perpetuou-as nos adágios que a sua criatividade foi gerando ao logo dos tempos. Eis alguns desses adágios:

SEGUNDA-FEIRA
- ”Não há domingo sem missa, nem segunda-feira sem preguiça.”
TERÇA-FEIRA
- ”Às terças e sextas-feiras não cases os filhos, nem urdes a teia.”
QUARTA-FEIRA
- ”Quem promete à quarta e vem à quinta, não faz falta que sinta.”
QUINTA-FEIRA
- ”Não há semana sem quinta-feira.”
SEXTA-FEIRA
- ”A sexta-feira arremeda o domingo.”
SÁBADO
- ”Não há sábado sem sol, nem noiva sem lençol.”
DOMINGO
- ”Quem à semana bem parece, ao domingo aborrece.”

Os dias da semana foram também perpetuados no cancioneiro popular português. Eis algumas das quadras desse cancioneiro: 

“Segunda-feira, águas claras
Regam a toda a verdura,
A regar esses teus olhos,
Amor de pouca ventura.”

“Terça-feira, alecrim verde.
Bem puderas tu, menina,
Ser agora o meu amor,
Já que amar-te é minha sina.”

“Quarta-feira é a rosa
Por ser a flor desmaiada;
Nossa amizade. Menina.
É feliz, nunca se acaba.”

“Quinta-feira. A açucena.
Por ser a flor excelente;
Não sei se fala verdade,
Nem se a menina me mente.”

“Sexta-feira, alecrim verde
Anda rentinho do chão;
Bem puderas tu, menina,
Andar em meu coração.”

“Sábado é um trevo.
Por ser a flor mais alegre;
Nossa amizade, menina,
É firme, nunca se perde.

“Quem me dera cá domingo,
Dia de tanta alegria;
O meu gosto é ir buscar-te
Para minha companhia.”

Mais adágios e quadras existem, mas propositadamente não quisemos ser exaustivos. A nossa finalidade era, mais uma vez e só apenas essa, mostrar a importância da via popular e da literatura oral na consolidação da língua portuguesa, um dos vectores mais importantes, se não o mais importante, da nossa identidade cultural.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 11 de Outubro de 2011

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Estremoz - Mercado das velharias (2ª edição)

Mercado de sábado. Estremoz, Agosto de 2006. Fotografia de José Cartaxo.


À minha amiga Manuela Mendes:

O mercado das velharias desenrola-se no Rossio Marquês de Pombal, paralelamente ao mercado de criação e já ocupa uma segunda “rua”, visto que uma se tornou insuficiente. A sua origem perde-se nos anos sessenta do século passado e é, sem dúvida, um dos melhores do país. Ali nasceu espontaneamente e cresceu. Por ali aparecem:
- Alfarrabistas que por vezes nos surpreendem com livros do século XVIII ou manuscritos do século XVII, primeiras edições e encadernações em inteira ou meia de pele, gravuras, postais antigos e registos de santo que nos fazem arregalar a vista;
- Antiquários com pratos, louças e vidros antigos, imagens religiosas em madeira, marfim, barro, mármore ou granito, bem como paramentos religiosos, pratas, quadros a óleo, gravuras antigas, registos, arte pastoril e peças da barrística popular de Estremoz ou das Caldas;
- Moedeiros que vendem moedas e notas, antigas e modernas, principalmente de Portugal e Colónias;
- Vendedores de toalhas, bordados e rendas antigas, que estiveram religiosamente guardadas e que sabe-se lá, porque artes mágicas ou fatalidades do destino, acabaram por surgir à luz do dia;
- Ourives com toda a parafernália de jóias em ouro e prata, que vão desde alianças e anéis, a pulseiras, fios e correntes, passando por símbolos de superstição popular como figas, cornichos e signo-saimões;
- Revendedores de recheios de casa, onde é possível encontrar de tudo: mobílias, loiças, vidros, electrodomésticos, quadros, livros e todo o género de bugigangas;
- Ferro-velhos com uma oferta variada, que vai de alfaias agrícolas caídas em desuso até ferramentas, passando pelos mais diversos tipos de ferragens de uso urbano, bem como objectos metálicos variados, em cobre, estanho, zinco, ferro ou latão.
- E há quem ofereça uma gama muito variada de objectos que passa por antiguidades, moedas e notas, gravuras, livros, postais, louças, vidros, etc., etc,
- Nalguns casos a variedade de objectos é de tal modo diversificada, que se torna difícil sistematizá-la.
- Por ali deambulo todos os sábados, qual peregrino que ali vai para homenagear o seu Santo Padroeiro. Bem vistas as coisas, o mercado das velharias é o meu Santiago de Compostela.
Dizem que eu sou um respigador nato, um cão pisteiro, um farejador de coisas velhas. Talvez seja algo de epidérmico, se não mesmo genético. E perante os meus olhos nascem coisas que parece que estavam ali circunspectas, à espera que eu me abeirasse delas e as resgatasse: objectos de arte pastoril, peças da barrística popular estremocense ou livros que me interessam pelos mais fundamentados motivos. Ali comprei recentemente uma "ANTOLOGIA DE FIALHO DE ALMEIDA", organizada por Manuel da Fonseca e com extensa dedicatória autografa, deste último. A minha biblioteca já incorporava outros livros com dedicatórias autógrafas de outros grandes escritores portugueses, nomeadamente alentejanos, como o Conde de Monsaraz ou António Sardinha, mas quanto ao Manuel da Fonseca, o nosso "Manel", estava às escuras.
Quando as minhas mãos nervosas, tactearam o livro descoberto pela cirurgia do meu olhar, senti uma espécie de calafrio na espinha, seguido dum deslumbramento como terão porventura sentido os nossos navegadores, quando aportarem ao novo mundo.
À semelhança do que acontecia com o meu vizinho Sebastião da Gama, que conheci ainda eu era uma criança, sábado é o dia mais belo da semana. Não troco por nada, a ida ao mercado de sábado.
Num dos seus poemas que relembro de memória, o Manel diz: "Domingo que vem vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida". Pois eu que sou "sabadeiro", digo para mim mesmo: "Sábado que vem vou comprar as coisas mais belas que um homem pode comprar na vida" e de sexta para sábado mal durmo, farto-me da dar voltas na cama, à espera que o dia nasça. Então ergo-me, de súpalo e com toda a adrenalina dos meus sessenta e cinco anos, ai vou eu, respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, em passo acelerado, a caminho do mercado de sábado, em Estremoz. E quando muito mais tarde, perto da hora de almoço, regresso a casa com o estômago vazio, a minha alma vai cheia. E aguenta-se uma semana, até ao sábado que vem.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Pintura de Rui Alves no Centro Cultural de Estremoz

Da esquerda para a direita, Hernâni Matos (presidente da AFA), Rui Alves (Pintor) e José Trindade (Vereador do Pelouro da Cultura da CME).
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“PINTURA DE RUI ALVES” foi a Exposição, que de 31 de Outubro a 5 de Dezembrode 2010, esteve patente ao público, na Sala de Exposições do Centro Cultural de Estremoz.
O certame, da iniciativa da Associação Filatélica Alentejana e que contou com o apoio da Câmara Municipal, foi constituída por trinta e cinco trabalhos de acrílico sobre tela, onde o tema dominante era o Alentejo que viu o artista nascer: gente, casarios e paisagens.
Pintura a espátula saída das mãos de quem também é escultor. Pintura que esculpe casas na paisagem alentejana, memória e saudade dum Alentejo onde nasceu e que tem a ver com o mais profundo do seu ser. Quadros que são a imagem do seu e do nosso Alentejo, filtrado através do seu olhar de artista, a partir do qual faz o registo conjugado dos volumes, das formas, das cores e das texturas, em tudo aquilo que toca a sua e a nossa alma.
Rui Alves nasceu em Estremoz em 1956, tem o Curso de Artes Gráficas da Escola António Arroio e desde 1975 que trabalha em Cinema, Fotografia, Teatro, Publicidade, Adereços, Decoração, Efeitos Especiais e é claro, Pintura e Escultura.
Em 2010 já expusera na Freguesia de São João de Brito (Lisboa), Sociedade Recreativa e Dramática Eborense (Évora), Círculo Experimental de Teatro de Aveiro (Aveiro) e Espaço Nimas (Lisboa).
À “vernissage” compareceram mais de seis dezenas de amigos e admiradores, que assim lhe quiseram testemunhar o elevado apreço em que têm o seu trabalho.
De então para cá, Rui Alves soma e segue.


 Francisca de Matos, recitando Miguel Torga.
António Simões dizendo-se a si próprio.
Um aspecto do público.
 
 CEIFEIRA. Acrilico sobre tela (126 x 126 cm).
 ROSTO. Acrilico sobre tela (50 x 70 cm).
 CASAS. Acrilico sobre tela (71 x 56 cm).
HORIZONTE. Acrilico sobre tela (60 x 80 cm).
MONTE. Acrilico sobre tela (50 x 70 cm).

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Livro de Leitura da Primeira Classe


Livro de Leitura da Primeira Classe

Há sessenta anos atrás
Sou duma geração que há sessenta anos atrás se iniciou na leitura, através do bem conhecido livro de leitura da 1ª Classe do Ensino Primário. Tratava-se de um livro profusamente ilustrado, com um grafismo que marcou uma época. Através dele aprendíamos a juntar as letras, formando sílabas, que reunidas geravam palavras, ali ilustradas, para o reforço visual apoiar a memorização.
Estávamos no Estado Novo, pelo que não é de admirar que doutrinariamente o livro veiculasse a Trilogia da Educação Nacional: “Deus, Pátria e Família”. O mesmo se passava com aqueles que se lhe seguiram até à 4ª classe.
Na Aritmética, decorávamos a tabuada até à casa do 10. Qualquer um de nós sabia de cor, o resultado de 100 operações de multiplicação, as quais iam desde o 1x1 até ao 10x10. Na aula, o professor passava-nos contas para fazer, o que era feito em lousas de ardósia nas quais escrevíamos com lápis de pedra. Era o “Magalhães” que Salazar e bem, punha à nossa disposição. Assim adquiríamos aptidão de cálculo mental e treinávamos o cálculo necessário à nossa vida do dia a dia.
Levávamos como trabalho para casa, fazer contas num caderno quadriculado, para disciplinar a escrita e a dimensão dos algarismos. E tínhamos sempre uma cópia para fazer, não só para aperfeiçoar a caligrafia, mas também porque a cópia ajudava à memorização. Para o efeito, usava-mos um caderno de linhas. Porém, aqueles que tinham uma escrita mais irregular faziam cópias em cadernos de duas linhas, para aprenderem a dimensionar as letras, até conseguirem ficar com uma caligrafia padrão.
Fazíamos também ditados, nos quais o professor nos lia pausadamente um texto relativamente curto, que nós tínhamos que escrever no caderno. Assim treinávamos a capacidade de converter a oralidade da língua na sua forma escrita. E acabava-mos por não dar erros.
Fazíamos ainda redacções com tema igual para todos, visando despertar e exercitar a capacidade criadora de cada um, bem como exercitar a correcção da ortografia e da caligrafia.
Fazíamos igualmente desenhos com lápis de carvão e lápis de cor, para o que utilizávamos um caderno de folhas lisas.
Os cadernos tinham geralmente na capa, ilustrações apelando ao amor à Pátria ou exaltando instituições gratas ao Regime, como era a Mocidade Portuguesa. Na capa do caderno, escrevíamos sempre o nosso nome, o número e a classe.
Tínhamos também um “caderno de significados”, que era um caderno de duas linhas com um traço vertical a vermelho, onde registávamos por indicação do professor, as palavras difíceis à esquerda do traço e o respectivo significado à direita.
Escrevíamos com canetas de molhar o aparo nos tinteiros que havia em cada carteira. Não se podia molhar de mais para não borrar. Ao virar a página, tínhamos que secar com um mata- borrão que trazíamos sempre dentro do caderno.
A caneta de molhar, os aparos, o lápis de carvão, os lápis de cor, o apara-lápis e a borracha eram guardados dentro duma caixa de madeira, com tampa de correr. Esta, conjuntamente com os cadernos, o livro de leitura e mais tarde outros livros, era transportada numa sacola de serapilheira que levávamos a tiracolo.

E hoje?
Pelos mais diversos motivos, algumas das práticas escolares atrás referidas foram abandonadas. Algumas naturalmente por serem obsoletas. Hoje não faz sentido escrever com canetas de molhar e provavelmente fazer contas em lousa de ardósia. Mas não é a posse e a utilização de um “Magalhães” que treina o cálculo mental e a prática das operações elementares, bem como a prática da caligrafia e a execução livre de desenhos.
Hoje já não se usam sacolas de serapilheira, mas mochilas à medida da bolsa dos pais de cada um. Aí o personagem principal é o “Magalhães” – Faz Tudo!
Já não é preciso saber fazer contas, basta ter o “Magalhães” ligado à Internet e fazem-se as contas no Google. Este motor de busca é a cabeça deles.
Fazer cópias para quê? Por um lado não precisam de memorizar nada e por outro lado basta utilizar o “Magalhães” e escrever no Word. Podem dar erros à vontade, que o Word assinala a vermelho os erros de ortografia e a verde os erros de sintaxe. Depois basta tirar uma cópia na impressora. Esta é a caneta deles.
A caligrafia é a que eles quiserem, é o tipo de letra que escolherem no Word, seja ela Areal, Times New Roman, Comic Sans MS, ou outro tipo qualquer, que lhes der na real gana. Não há caligrafia individualizada, reflexo do todo uno que é cada ser humano. Há o estereótipo gráfico porque cada um optou, no tamanho que escolheu.
O desenho é executado no “Magalhães” com um programa gráfico melhor ou pior, que permite gerir espessuras de traço, cores, luminosidade, contraste, texturas e estilos de desenho. A procura de perfeição a desenhar tem a ver com o domínio do programa utilizado. Essa é a arte deles.
Cadernos de significados para quê? Vai-se ao Google e lá está a Wikipédia. A Wikipédia diz tudo. Para que é que eles precisam de saber, se está na Wikipédia?
Fazer redacções hoje é fácil. Vai-se à Wikipédia e com o ponteiro do rato, copia-se e cola-se. Pesquisa em múltiplas fontes? Rearranjo dos materiais recolhidos em linguagem própria? Trabalho de síntese? Para quê? O que está na Wikipédia é que é! Mas cautela meninos, que os professores dispõem de um programa gratuito existente na Internet que permite ver se os meninos copiaram e colaram ou não. Depois não se queixem se forem acusados de ter copiado à letra, o trabalho apresentado, muitas vezes de forma abrasileirada.

Aviso à navegação
Assiste-se hoje aos mais diferentes níveis, ao facilitismo que o pervertido Sistema Educativo Português concede aos alunos, impreparando-os para a vida. E tudo começa por uma coisa muito simples. O esquecimento ou a ignorância de que cada um de nós só dá valor aquilo que foi fruto do seu esforço pessoal de aprendizagem e aperfeiçoamento, o que longe de facilitismos, passa pela aquisição e memorização de saberes, sem os quais o ser humano não consegue em cada instante julgar e decidir com propriedade.
Corremos o risco de estar a preparar seres humanos dependentes do “Magalhães”, da Internet e da Wikipédia, os quais longe de serem pessoas livres, estão condicionados à informação padrão veiculada “on line”.
Cerca de dois mil anos depois de Spartacus, o gladiador, ter liderado um exército de mais de cem mil escravos contra a opressão do Império Romano, é chegada a altura em que como homens livres, devemos consciencializar toda a gente dos riscos resultantes em termos de liberdade, da utilização de informação estereotipada e padronizada, bem como pela subordinação da criança e do jovem às rotinas do “Magalhães” – Faz tudo.

Texto publicado inicialmente em 28 de Setembro de 2011
O presente texto integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

 Caderno "Lusito"

Lousa

Caderno de significados

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Tempo para falar do tempo


Vénus, Cupido e o Tempo (Alegoria da Luxúria) (1540-1545). Agnolo Bronzino
(1503-1572). Óleo sobre Madeira (147 x 117 cm). National Gallery, London.

A História é um relato crítico dos acontecimentos do passado, no qual o Homem foi o actor principal. Não há História sem Homem, como também não há História, sem espaço e sem tempo, variáveis físicas indispensáveis à caracterização dos cenários onde decorre a acção. A História é assim um fluxo de acontecimentos que se sucedem na teia quadrimensional espaço-temporal, onde estamos inseridos, seja por graça de Deus ou fruto do Big-Bang. Para o caso tanto faz.
Vejamos o que sobre o tempo nos diz a nossa Literatura de Tradição Oral. A nível do Adagiário Português, múltiplas sentenças proclamam que o tempo é algo que flui:
- “O tempo é ligeiro e não há barranco que o detenha.”
- “O tempo que vai não volta.“
- “O que o tempo traz, o tempo leva.“
- “O tempo corre e tudo descobre.“
- “O tempo é o relógio da vida.“
Outros adágios sublinham o valor do tempo:
-“ O tempo não é elástico.“
- “Sem tempo nada se faz.“
- “O tempo é dinheiro.“
Por outro lado, existem também provérbios que nos advertem relativamente à perda de tempo:
– “Quem o tempo sabe poupar, muito tem a ganhar.“
– “O tempo perdido não se recupera “
- “Quem tem tempo e tempo espera, tempo perde.“
Finalmente existem aforismos relativos às mudanças de tempo:
– “Mudam-se os tempos, mudam os pensamentos.“
– “Mudam-se os tempos, mudam as vontades.“
– “Outros tempos, outros costumes.“

A nível de lengalengas, é bem conhecida a seguinte:

O TEMPO

“O tempo pergunta ao tempo
Quanto tempo o tempo tem.
O tempo responde ao tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto tempo o tempo tem.”

O tempo mede-se em “horas”, que têm como submúltiplos o “minuto” e o “segundo” e, como múltiplos, o “dia”, a “semana”, o “mês”, o “ano”, o “século” e o “milénio”. Algumas destas unidades de tempo são referidas no Adagário Português:
Minutos
- “Amizade de um dia, recordação de um minuto.”
- “Mais vale ficar vermelho cinco minutos, que amarelo toda a vida.”
- “Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto.”
Horas
- “De uma hora para a outra, cai a casa. “
- “Em má hora nasce, quem má fama alcança.”
- “Há horas do Diabo.”
- “Há horas felizes.”
- “Há horas para tudo.”
- “Todos têm a sua hora.”
- “Uma hora melhora outra.”
Dias
- “Ainda não se acabou o dia de hoje.”
- “Amizade de um dia, recordação de um minuto.”
- “Bons dias em Janeiro pagam-se em Fevereiro." “
- “De manhã se faz o dia.”
- “Fevereiro coxo, em seus dias vinte e oito."
- “Há mais dias que linguiças." “
- “Mais criam dias que meses." ““
- “Nada como um dia depois do outro.
- “Não há como um dia depois do outro.”
- “Nem todos os dias há carne gorda."
- “O dia de amanhã, ninguém viu.”
- “Os dias são do mesmo tamanho, mas não se parecem”
- “Quando a fome aperta, os minutos parecem séculos.”
- “Roma e Pavia não se fizeram num dia.”
- “Tudo tem seu dia.”
- “Um hóspede ao cabo de três dias enjoa.”
Semanas
- “A semana do trabalhador tem seis dias, a do preguiçoso seis manhãs.”
- “Não há semana sem quinta-feira.”
- “Quem à semana bem parece, ao domingo aborrece.”
- “Se esta semana é curta, sete dias traz a outra.”
Meses
- “A água falta nos meses, mas nunca falta no ano."
- “De pendão a grão, trinta dias são.”
- “Deixar correr trinta dias por um mês.”
- “Mais criam dias que meses."
- “Todo o mês volta outra vez.”
Anos
- "A água falta nos meses, mas nunca falta no ano."
- "Antes ano tardio do que vazio."
- "Ao ano andar, aos dois falar." “
- “A velhice não está nos anos.”
- “Ao moço e ao galo, um ano.”
- “Atrás de ano, ano vem.”
- “Os anos não perdoam.”
Séculos
- “A História se repete através dos séculos.”
- “De século em século, a História repete-se.”
- “Largos dias têm cem anos.”
- “Quando a fome aperta, os minutos parecem séculos.”

Segundo a Mitologia Popular Portuguesa, o tempo de vida de uma pessoa tem a ver com o dia de nascimento e a sua orientação geográfica ao dormir:
- Quem nasce em dia de Natal, vive muito tempo. [1]
- É bom dormir com a cabeça para o Nascente, porque se vive muito tempo, de acordo com o adágio:
“Cabeça para o Nascente
E pés para o Poente,
Viver eternamente.” [1]
A Mitologia Popular Portuguesa refere-se também à simultaneidade de acontecimentos, a qual pode ser benéfica:
- Se duas pessoas abrirem a boca ao mesmo tempo, hão-de ser compadres ou vizinhos. [1]
Todavia, a simultaneidade de acontecimentos pode ser malévola:
- Se duas ou mais pessoas lavam as mãos ao mesmo tempo na mesma bacia, ou se limpam à mesma toalha, nesse dia jogam à pancada. [1]
- Se dois casamentos se fazem ao mesmo tempo, um deles há-de ser infeliz porque a felicidade foge inteiramente para o outro. [1]
- Se duas pessoas bebem água ao mesmo tempo, uma delas adoece. [1]
- Quando na mesma terra, dois relógios dão horas ao mesmo tempo, é sinal que aí está para morrer alguém. [1]
O tempo é tema central de telas criadas por grandes nomes da pintura universal, dos quais destacamos, agrupados por períodos:
- RENASCENTISMO: Domenico di Michelino (1417-1491), italiano; Agnolo Bronzino (1503-1572), italiano
- MANEIRISMO: Gian Battista Zeloti (c. 1526-1578), italiano;
- BARROCO: Simon Vouet (1590-1649), francês; Pietro Liberi (1605-1687), italiano; Jean-François de Troy (1679-1752), francês; François Lemoyne (1688-1737), francês;
- RÓCÓCÓ: Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), italiano;
- ROMANTISMO: Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828), espanhol;
“Porque o tempo gasta tudo” e “Tempo bastante sempre é pouco”, julgo chegado o tempo de dar por terminado este texto..

BIBLIOGRAFIA
[1] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.

O Triunfo da Fama, o Triunfo do Tempo e o Triunfo da Eternidade. Domenico di Michelino
(1417-1491). Tempera sobre painel em fundo dourado (42 x 177 cm). Colecção privada.

O Tempo, as Virtudes e a Inveja Libertada pelo Diabo (c. 1553). Gian Battista Zeloti (c.1526-1578).
Óleo sobre tela. Palazzo Ducale, Venice. 

O Pai Tempo Dominado pelo Amor, pela Esperança e pela Beleza (1627). Simon Vouet (1590-1649).
Óleo sobre tela (107 x 142 cm). Museo del Prado, Madrid. 

O Tempo Vencido pela Verdade (c. 1665). Pietro Liberi (1605-1687). Óleo sobre tela (114 x 157 cm).
Colecção privada.

Uma Alegoria ao Tempo Revelando a Verdade (1733). Jean-François de Troy (1679-1752).
Óleo sobre tela. National Gallery, London.

O Tempo salvando a Verdade da Falsidade e da Inveja (1737). François Lemoyne (1688-1737).
Óleo sobre tela (149 x 114 cm, alargado para 181 x 148 cm). Wallace Collection, London. 

Uma Alegoria com Vénus e o Tempo (1754-1758). Giovanni Battista Tiepolo
(1696-1770). Óleo sobre tela (292 x 190 cm). National Gallery, London.

O Tempo e as Velhas Mulheres (1810-1812). Francisco de Goya y Lucientes
(1746-1828). Óleo sobre tela (181 x 125 cm). Musée des Beaux-Arts, Lille.