terça-feira, 10 de maio de 2011

O Sentido da visão: Calão

 MULHER COM VÉU - Jaime Martins Barata (1899-1970). Óleo sobre tela.

PREÂMBULO
Seja qual for o contexto em que nasceu ou seja usado, o calão transvaza largamente o seu núcleo inicial de cultores e é incorporado na linguagem corrente do cidadão comum. Daí fazer sentido aqui, uma abordagem do mesmo, em termos de literatura oral e no contexto do sentido da visão.
Uma tal abordagem será centralizada em termos tais como “vista”, “olho”, “ver”, “olhar”, “luz”, “cor”, “doenças da visão” e “cegueira”.
VISTA
A visão (vista) será, porventura o sentido mais eficaz na gestão da nossa interacção com o mundo que nos cerca. Por sua vez, o calão potencia fortemente o substantivo feminino, adjectivando-o em cada caso, da maneira mais adequada:
- Vista aguda = Perspicácia [3]
- Vista alegre = O lenço [2] (Calão de Minde)
- Vista armada = Visão com o auxílio de instrumentos ópticos [3]
- Vista baixa = O porco [2] (Calão de Minde)
- Vista de olhos = Relance rápido, superficial [3]
- Vista desarmada = Visão sem o auxílio de instrumentos ópticos [3]
- Vista grossa = Cumplicidade [3]
- Vista grossa = Ver e fazer de conta que não vê [1]
- Vistas curtas = Diz-se de pessoa pouco inteligente = De espírito tacanho [3]
- Vistas largas = Diz-se de pessoa inteligente e de espírito liberal e aberto [3]
OLHO
O calão adjectiva amplamente o(s) olho(s) como órgãos sensoriais da visão. E com tudo isso, a língua portuguesa sai mais rica:
- Medir a olhómetro = Avaliar à vista [4]
- Olho à Belenenses = Olho azul devido a uma pancada [3]
- Olho alerta! = Chamada para algum perigo [3]
- Olho ao peito = Olho negro [3]
- Olho atrás, olho adiante = Cautelosamente [3]
- Olho clínico = Aptidão = Capacidade = Perspicácia [3]
- Olho comprido = Bisbilhotice [3]
- Olho da providência – Protecção divina [3]
- Olho da rua = Ao ar livre =No meio da rua [3]
- Olho de águia = Perspicaz = Inteligente [3]
- Olho de azougue = Perspicaz = Inteligente [3]
- Olho do céu = O Sol [3]
- Olho gordo (grande) = Diz-se que o tem pessoa invejosa [3]
- Olho no Cristo que é de prata = Frase com que se chama a atenção para se vigiar algo que pode ser furtado [3]
- Olho por olho = Pagar-se na mesma moeda [3]
- Olho traseiro = O cu [3]
- Olho vê, mão pilha = Diz-se de gatuno que age com rapidez [3]
- Olho vivo = Olhar de pessoa inteligente
- Olho vivo! = Atenção! = Cautela! [3]
- Olho vivo, pé ligeiro = É preciso estar com atenção e pronto a desaparecer [3]
- Olho-de-boi = Clarabóia [3]
- Olhos envinagrados = Olhos avermelhados, de bêbado [3]
- Olhos atravessados = Olhos vesgos ou travessos [3]
- Olhos de amêndoa = Olhos oblíquos [3]
- Olhos de besugo = Olhos esbugalhados [3]
- Olhos de carneiro mal morto = Olhos mortiços [3]
- Olhos de garça = Olhos verdes ou azuis [3]
- Olhos de gazela = Olhos suaves, meigos [3]
- Olhos de goraz = Olhos esbugalhados, protuberantes [3]
- Olhos em alvo = Olhos mortiços [3]
- Olhos em bico = Ficar espantado = Olhos parecidos com os dos chineses [3]
- Olhos nos olhos = Frente a frente [3]
- Olhos que te viram ir = Diz-se quando se perde uma oportunidade que já não voltará [3]
VER
O exercício da visão consiste no acto de ver, termo que é verbo e substantivo com largo espectro de significâncias, reforçadas em contexto de calão:
- Ver a Deus pelos pés = Receber uma fortuna inesperada [3]
- Ver à légua = Ver longe = Prever [3]
- Ver a primeira luz = Nascer [3]
- Ver a vida a andar para trás = Andar em maré de azar [3]
- Ver arder as barbas do vizinho = Ver em outrem algo que também lhe pode acontecer [3]
- Ver Braga por um canudo = Não alcançar o que se desejava [3]
- Ver cabelos num ovo = Ver de mais [3]
- Ver cobra = Ficar espantado = Assustar-se
- Ver com estes que a terra há-de comer = Jura em que se invocam os olhos [3]
- Ver com olhos de ver = Observar com atenção [3]
- Ver com os olhos e comer com a testa = Desejar algo inacessível que se contempla, mas não se pode usufruir [3]
- Ver com sete olhos = Observar minuciosamente [3]
- Ver de que lado sopra o vento = Esperar pelos acontecimentos para agir conforme as circunstancias [3]
- Ver em que param as modas = Aguardar os acontecimentos [1]
- Ver as estrelas = Sofrer de repente uma grande dor [3]
- Ver estrelas = Referência a uma situação que se gora [4]
- Ver flamingos à meia-noite = Sofrer de repente uma grande dor = Ver-se embaraçado ou perdido [3]
- Ver furo = Reconhecer uma possibilidade = Ver uma oportunidade [3]
- Ver lobo = Diz-se de pessoa que ficou assustada com o que viu [3]
- Ver longe = Prever = Ser perspicaz [3]
- Ver moscas (mosquitos) na outra banda = Ver muito bem = Estar a inventar coisas [3]
- Ver navios = Não se conseguir o que se deseja = Ter uma desilusão [1]
- Ver o argueiro no olho alheio e não ver a trave no seu = Criticar os defeitos alheios e não conhecer os próprios [3]
- Ver o caso mal parado = Não descortinar solução para um problema [3]
- Ver o céu por dentro = Morrer [3]
- Ver o cu ao pé das calças = Apanhar um grande susto [3]
- Ver o fim do túnel = Ver o resultado final = Admitir melhoria de situação [3]
- Ver o fundo ao tacho (prato, canastra, saco) = Acabarem-se os rendimentos = Acabar-se tudo [3]
- Ver o padeiro = Ter cópula [4]
- Ver o padeiro = Ver navios [4]
- Ver o sol aos quadradinhos = Ser ou estar preso [4]
- Ver os touros de palanque = Presenciar qualquer tumulto em lugar seguro [1]
- Ver para crer (como S. Tomé) = Só acreditar no que se vê ou está irrefutavelmente provado [3]
- Ver passar os comboios = Não estar ocupado = Não ser contemplado numa situação de favor [4]
- Ver passarinho novo (verde) = Andar optimista = Ter uma surpresa agradável [3]
- Ver pelo mesmo prisma = Analisar segundo o mesmo ponto de vista [3]
- Ver pelo rabo (canto) do olho = Ver de esguelha = Ver sem querer ver = Ver superficialmente [3]
- Ver pelos olhos de outrem = Julgar pelo que outro viu ou disse [3]
- Ver por um canudo = Não conseguir o desejado [3]
- Ver por um óculo = Perder = Deixar distanciar-se = Perder de vista [4]
- Ver se pegam as bichas = Lançar um argumento, opinião ou acção a ver se os outros aceitam = Tentar convencer [3]
- Ver sombras no escuro = Idem [3]
- Ver tudo cor-de-rosa = Só ver o lado bom do mundo [3]
- Ver tudo negro = Não encontrar solução para um assunto ou problema = Diz-se de pessoa pessimista [3]
- Ver uma bruxa = Apanhar uma repreensão severa [1]
- Ver uma bruxa = Ver-se embaraçado [3]
- Veremos, como diz o cego = Frase com que se manifesta dúvida ou incredulidade perante um facto possível de acontecer [3]
- Ver-se à brocha = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se à rasca = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se à vara = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se amarelo = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se azul = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se da cor da abelha = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se da cor da pele do Diabo = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se doido = Sentir-se atarantado, sem saber o que fazer [3]
- Ver-se e desejar-se = Estar muito atrapalhado = Estar sobrecarregado [3]
- Ver-se em assados = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em calças pardas = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em calças pardas = Ser severamente castigado [4]
- Ver-se em calças pardas = Ver-se em dificuldades [1]
- Ver-se em maus lençóis = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em palpos de aranha = Ver-se em situação embaraçosa e difícil = Estar desorientado [3]
- Ver-se em panças = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em talas = Ver-se em dificuldades [1]
- Ver-se entre a cruz e a caldeirinha = Ver-se em dificuldades = Estar perante um dilema [3]
- Ver-se gago = Ver-se em dificuldades = Estar perante um dilema [3]
- Ver-se grego = Deparar-se uma dificuldade que muito trabalho e tempo demora a resolver-se [3]
- Ver-se grego = Estar em dificuldades [4]
- Ver-se nas amarelas = Ver-se em dificuldades ou perigo [3]
- Ver-se nas ataqueiras = Ver-se em dificuldades ou perigo [3]
OLHAR
O “olhar”, verbo de sentido abrangente, mas também substantivo preciso, marca tal como o verbo e substantivo “ver”, um significativo registo no nosso calão:
- Olha o bicho! Olha o bicho! = Expressão com que se chama a atenção para algo que se estreia, como uma peça de vestuário [3]
- Olha o bufo = Vem gente = Vem polícia [2] (Calão do Porto)
- Olha o passarinho = Forma de chamar a atenção, sobretudo de crianças [3]
- Olhar com bons olhos = Ver ou avaliar com aprovação [3]
- Olhar como boi para palácio = Não compreender nada de um assunto ou do que se passa [3]
- Olhar como boi para palácio = Não ligar apreço = Não dar importância [1]
- Olhar contra o governo = Olhar de esguelha = Estar contra [3]
- Olhar contra o governo = Ser vesgo [1]
- Olhar das chedas o carro = Olhar alguém com desprezo [3]
- Olhar de alto = Olhar com sobranceria [3]
- Olhar de banda = Olhar com desconfiança [3]
- Olhar de banda como o Miranda = Referência a quem olha de esguelha [3]
- Olhar de esconso (esguelha) = Referência a quem olha de esguelha [3]
- Olhar de frente = Manifestar coragem [3]
- Olhar de lado = Olhar com sobranceria [3]
- Olhar para (ante) ontem = Estar pensativo ou distraído [3]
- Olhar para a sombra = Começar a ter vaidade = Namoriscar [3]
- Olhar para dentro = Dormir [3]
- Olhar para o ar = Estar sem fazer nada [3]
- Olhar para o boneco = Estar sem fazer nada = Distrair-se [3]
- Olhar para o próprio umbigo = Ser narcisista e egoísta [3]
- Olhar para o Sete-Estrelo = Olhar o céu = Estar distraído = Estar sem fazer nada [3]
- Olhar para o tempo = Andar na vadiagem = Andar sem fazer nada [1]
- Olhar pelo canto (rabo) do olho = Olhar de soslaio = Olhar disfarçadamente [3]
- Olhar pelo físico = Defender-se de excessos [3]
- Olhar por alguém = Tratá-lo = Protegê-lo [3]
- Olhar por baixo = Diz-se fingidora, sonsa [3]
- Olhar por cima da burra = Olhar alguém com desprezo ou superioridade [3]
- Olhar por cima da burra = Ser severo com alguém [4]
- Olhar por cima dos ombros = Tratar alguém com severidade [1]
- Olhar por si = Defender as suas conveniências [3]
- Olhar quebrado = Olhar lânguido [3]
LUZ
A luz que atinge o globo ocular está na base do mecanismo da visão e de alguns termos de calão no âmbito da visão:
- Deitar o luzio = Olhar = Observar [2]
- Luz = Dinheiro [2]
- Luzeiro = Pedra preciosa = Brilhante = Dia [5]
- Luzente = Pedra preciosa = Brilhante = Dia [5]
- Luzento = Brilhante [2]
- Luzernas = Os olhos [1]
- Luzes = O dia [2]
- Luzio = Dia [1]
- Luzio = Lampião [1]
- Luzio = Olho [1]
- Luzio = Olhos = Olhar [4]
- Luzir-lhe o olho = Mostrar muito interesse por algo [4]
- Pescas de luzio = Olhadela 0 Piscadela de olhos [2]
COR
Como característica da imagem, a cor não deixa de estar presente no calão:
- Cor de burro quando foge = Cor esquisita = Cor inqualificável [1]
- Cor do Senhor dos Passos da Graça = Roxo desbotado [3]
DOENÇAS DA VISÃO
Sendo a visão uma mais valia, as perturbações da visão teriam necessariamente que estar presentes no calão:
- Pitosca = Zarolho = Míope [1]
- Pitosga = Pitosga [1]
- Zambaio = Vesgo [1]
- Zanaga = Vesgo [1]
- Zarolho = Cego de um olho [2]
- Zarolho = Vesgo [1]
CEGUEIRA
A cegueira ou perda do sentido de visão, está igualmente presente no calão, através de termos ou frases, alguns de conteúdo vernáculo:
- Bater uma ceguinha = Masturbar-se [5]
- Cega = Bebedeira [4]
- Cega = Bebedeira = Masturbação [5]
- Cegada = Grupo de mascarados que percorrem as ruas no Carnaval = Grande confusão = festa muito animada [5]
- Cegante = Alfinete com brilhantes [4]
- Cegante = Anel com brilhantes [2]
- Cego = Estudante que interrogado pelo professor e não tendo estudado, responde: “Peço desculpa, mas não vi. Não pude ver.” [2]
- Cego como uma toupeira = Alguém que vê muito mal [3]
- Cegueta = Indivíduo cego dum olho [2]
- Cegueta = Indivíduo cego dum olho ou estrábico [4]
- Cegueta = Pessoa que vê mal [5]
- Ceguinha = Masturbação [5]
- Ceguinho = Pénis [5]
- Ceguinho seja eu = Forma de jura com que se pretende que acreditem em, nós [3]
NOTA FINAL
Independentemente do fascínio que a abordagem do calão exerceu sobre nós, tivemos que dar a mesma por terminada, para não fastidiar mais o leitor. Muito ainda ficou, naturalmente por dizer.

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[2] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[3] - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
[4] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[5] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.

domingo, 8 de maio de 2011

O sentido da visão: Adagiário

CEIFEIRA DE ESTREMOZ (1926) - aguarela de Mestre ALBERTO DE SOUZA (1880-1961), notável aguarelista e ilustrador, que calcorreou o país de lés a lés na primeira metade do século XX, funcionando como consciência plástica da Nação.

Na sequência do post anterior, subordinado à epígrafe "O sentido da visão: Cancioneiro", apresentamos hoje mais de dezasseis dezenas de adágios, sistematizados por vinte e quatro tópicos, os quais integram o conjunto por nós catalogado. Naturalmente, que mais uma vez, estre trabalho corresponde a uma sinopse que deixa de parte, variantes e corruptelas.

A visão (vista) é um dos sentidos que permite observar e analisar o meio ambiente:

- A cegueira quando dá é pela vista.
- A malícia tem vista fraca e memória forte.
- A paciência é boa para a vista.
- Cada um vê mal ou bem, conforme os olhos que tem.
- Doença que não é vista, não é conhecida.
- Entre amigos, a vista basta.
- Longe da vista, longe do coração.
- Mais faz a vista do amo do que as suas mãos.
- Morte não vista é mal crida.

Os órgãos sensoriais da visão são os olhos:

- A juventude é a idade em que os olhos brilham sem ver.
- Dois olhos enxergam mais que um só.
- Graça de olhos tarde envelhece.
- Olho de mãe, olho de falcão.
- Olho de menino, olho de diabinho.
- Olhos que não choram não sabem ver.
- Os mortos aos vivos abrem os olhos.

O mecanismo da visão tem por base os raios luminosos que atingem o globo ocular:

- A luz que vai adiante é a que alumia.
- A candeia que vai à frente alumia duas vezes.
- A candeia, debaixo do alqueire, não comunica a sua luz.
- À luz da candeia faz tua meia.
- À luz da candeia, não há mulher feia.
- A luz se apaga mais depressa do que se acende.
- A luz, onde está o fogo, aparece.
- Mais vale um raio de Sol que um arrátel de sabão.
- O excesso de luz produz a cegueira.
- O sol quando nasce é para todos.

Para a maioria de nós:

- Os ouvidos são mais infiéis que os olhos.

Os olhos dizem muita coisa:

- Os olhos não enganam, nem mesmo quando pretendem enganar.
- Os olhos são o espelho da alma.

À cor dos olhos são atribuídos significados:

- Olho azul em portuguesa é erro da natureza.
- Olho azul em raça portuguesa é velhaco com certeza.
- Olhos verdes, olhos de traidor.

O movimento dos olhos cronometra o tempo:

- Menos tempo gasta um postilhão a andar uma légua, que um preguiçoso a abrir os olhos.
- Num volver de olhos ao mau vento, volta-lhe o capelo.

È através do mecanismo da visão que se forma no cérebro a imagem do que vemos, assim como dela a forma, a volumetria, a medida, a profundidade, a textura, o contraste, a luminosidade, o brilho e naturalmente a cor:

- Azul e verde, ranho na parede.
- Das cores a grã; da fruta a maçã.
- Em vendo amarelo, todo me descanelo.
- Gostos e cores não se discutem.
- O azul é o almoço do sol.
- O castanho-escuro corre o mole e o duro.
- O verde é esperança; quem espera sempre alcança.

Os espelhos reflectem a nossa imagem e assim, através deles, a maioria de nós consegue observar o seu rosto:

- Ao cego não dão cuidado os espelhos.
- Levantou-se a torta e pôs-se ao espelho.
- Para quê cego com espelho?
- Tiraram-me o espelho por feia, e deram-no à cega.

Há dificuldades de visão (astigmatismo, estrabismo, hipermetropia, miopia) que podem ser corrigidas, através do uso de óculos com lentes adequadas:

- Quatro-olhos vêem mais que dois.
- Se não vejo pelos olhos, vejo pelos óculos.

A falta do sentido da visão constitui a cegueira:

- A cegueira quando dá é pela vista.
- A ver vamos como diz o cego.
- A ver vamos, dizia o cego e cada vez via menos.
- Achou o cego um dinheiro.
- Antes cegues que mal vejas.
- Antes torto que cego de vez.
- Bem cego é quem muito vê por aro de peneira.
- Cego é aquele que vê e não quer ver.
- Cego é quem não vê por uma peneira.
- Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiar os que vêem.
- É mais cego aquele que não quer ver do que aquele que não vê.
- Janelas fechadas são olhos de cego.
- Louvar-me num cego para julgar das cores.
- Maria, antes com um olho só, do que com um filho.
- Marido, não vejas! Mulher, cega não sejas!
- Na terra dos cegos, quem tem um olho é rei.
- Não há cego que se veja.
- Não pode o cego distinguir cores.
- O ambicioso é um cego a caminhar com pernas de pau.
- O olho do cego é na mão.
- O pior cego é o que não quer ver.
- Os cegos desesperados por si se consolam.
- Quem dá a vista aos outros, cego fica.
- Quem não enxerga por trás de cerca de vara é cego.
- Se o cego guia o cego, correm ambos o risco de cair.
- Sonhava o cego que via.
- Um cego não pode ser guia de outro cego.
- Um cego não pode ser juiz em cores.

Uma boa visão exige cuidados de saúde:

- A palha no olho alheio e não a trave no nosso.
- Cada um vê o argueiro no olho do vizinho, e não vê a tranca no seu.
- Nada é bom para os olhos.
- O mal do olho cura-se com o cotovelo.
- Quando o nó se faz piolho, com mal anda o olho.
- Quem quiser olho são, ate a mão.
- Sol roxo, água a olho.

Quando dormimos fechamos os olhos:

- Se não dorme meu olho, folga meu osso.

A religião não podia deixar de ter múltiplas ligações aos olhos:

- Com o olho e com a fé não zombarei.
- Fui para me benzer e quebrei o olho.
- O amor e a fé nos olhos se vê.
- Quem, por virtude, se abate aos olhos dos homens, eleva-se aos olhos de Deus.
- Santos da Catalunha, olhos grandes e vista nenhuma.

O amor nasce com o próprio acto de visão:

- O amor e a fé nos olhos se vê.
- O amor é cego mas vê muito longe.
- O amor, ainda que cego para ver, é lince para adivinhar.
- A mão na dor e o olho no amor.
- Os olhos da namorada têm luz mais viva do que a do sol.
- Coração de mãe, olhos de mãe.
- O amor nasce da vista e vai ao coração.

Os olhos são sentinelas que nos mantêm alerta em relação às ameaças a que podemos estar sujeitos:

- Abre um olho para comprar e os dois para vender.
- Ao amigo que não é certo, com um olho fechado e outro aberto.
- Chaves de Faro, prados de Loulé, e criados de S. Brás, olho vivo e pé atrás.
- Contas na mão e olho no ladrão.
- Mãos na roca, olhos na porta.
- Não fies nem um tostão de quem põe os olhos no chão.
- Não metas em tua casa quem dois olhos haja, senão trigo e cevada.
- Os que falam com olhos fechados querem ver os outros enganados.
- Quem com mau vizinho há-de vizinhar, com um olho há-de dormir e com outro vigiar.
- Traze de olho o criado que ronha.
- Um olho no burro, o outro no cigano.
- Um olho no prato, outro no gato.

A mulher marca presença no adagiário da visão:

- A mulher do cego para quem se enfeita?
- A viúva rica com um olho chora e com outro repenica.
- Devemos procurar a mulher antes com os ouvidos que com os olhos.
- Levantou-se a torta e pôs-se ao espelho.
- Mulher honrada não tem ouvidos nem olhos.
- Olho de mãe, olho de falcão.
- Quem não tem mulher, muitos olhos há mister.

Os olhos têm naturalmente a ver com sentimentos:

- A doçura tira nojo e a gordura abre olho.
- A inveja tem os olhos vesgos para o bem, e pulmões de ferro para apregoar o mal.
- Ao medo sobejam os olhos.
- Aos olhos da inveja, todo o sucesso é crime.
- Facilmente aos olhos se afigura aquilo que se pinta ao desejo.
- Gente baixa só tem olho no interesse.

Com os olhos se chora, produzindo lágrimas, em estados emocionais alterados: casos de dor, medo, aflição, raiva, tristeza, depressão, saudade, alegria exagerada, etc.:

- A linguagem das lágrimas, não a entendem os corações de argila.
- As chamas da caridade secam as lágrimas da dor.
- As grandes desventuras não têm lágrimas.
- As lágrimas são o forte das mulheres.
- As lágrimas são, quase sempre, o último sorriso do amor.
- Ás mulheres parece que trazem as lágrimas numa bilha.
- Chorar com um olho e rir com o outro.
- Chorar por um olho azeite e, por outro, vinagre.
- Chorem olhos de teu amigo e ele enterrar-nos-á vivo.
- Fugi do homem orgulhoso, que se envergonha de verter lágrimas.
- Lágrimas abrandam pedras.
- Lágrimas abrandam penas.
- Lágrimas com pão ligeiras são.
- Lágrimas de herdeiros, risos secretos.
- Lágrimas de mulher são tempero de malícia.
- Lágrimas de mulher valem muito e custam-lhe pouco.
- Lágrimas de sermão e chuva de trovoada, cai na terra e não vale nada.
- Nada seca mais depressa do que as lágrimas.
- Não choram os olhos as perdas das coisas que não cansaram os braços.
- Não os olhos que choram, senão as mãos que trabalham.
- Os olhos que não têm chorado, não vêem nada.
- Que mil olhos chorem, menos os meus.

Os animais também estão presentes no adagário sobre a visão:

- Aos olhos tem a morte quem a cavalo passa a ponte.
- Cria o corvo, tirar-te-á o olho.
- Em tempo nevado, o olho vale um cavalo.
- Não há coisa encoberta senão olhos de toupeira.
- O cavalo engorda com o olho do dono.
- O olho do amo engorda o cavalo.
- Quem a cavalo passa a ponte, ao olho vê a morte.

Através dos olhos conseguimos percepcionar a beleza:

- A beleza da mulher é uma das suas armas, as lágrimas são outra.
- A beleza depressa se acaba.
- A beleza é frágil; a virtude é eterna.
- A beleza enche os olhos mas não enche a barriga.
- A beleza está nos olhos de quem a vê.
- A beleza exterior inspira amor; a interior inspira estima.
- A beleza não se põe na mesa.
- A beleza não tem senão a profundidade da pele.

Podemos também apreender a boniteza:

- Boniteza não põe mesa.
- Bonito é o que bonito parece.
- Lindos olhos, feio bicho.

Podemos igualmente ter ou não a noção de feiura:

- À luz da candeia, não há mulher feia.
- Nem tudo o que é feio é mau.
- O desejo torna formoso o que é feio.

A acção do olhar precede a alimentação:

- Abre o olho, que assam carne.
- Comer sem beber, cegar e não ver.
- Mau é ter os olhos maiores do que a barriga.
- Os olhos comem primeiro que a boca.
- Os olhos não comem sopas.
- Os olhos também comem.
- Pão com olhos, queijo sem olhos, e vinho que salte aos olhos.

Porque julgamos que todos viram “com olhos de ver”, o que era nosso objectivo mostrar, damos por terminado o presente post.

Hernâni Matos

sábado, 7 de maio de 2011

O sentido da visão: Cancioneiro

ROSA DE GUADALUPE (1955) – Litografia de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).

Uma das formas possíveis de percepção do mundo é a visão, cujos órgãos sensoriais são os olhos. Façamos uma abordagem deste sentido, recorrendo ao cancioneiro popular alentejano:

A função dos olhos é ver:

"Os olhos que vivos são,
O seu alimento é ver.
Dos olhos nasce a feição,
Da feição, o bem querer." [1]

O olhar diz muito:

"O nosso olhar é espelho
Do que sente o coração.
A boca pode mentir,
O nosso olhar é que não." [1]

Os olhos atraem-nos e prendem-nos:

"Os teus olhos me prenderam
Um dia ao sair da missa.
Que prisão tão rigorosa
Sem cadeia nem justiça." [1]

O piscar de olho é declaração de amor:

"Este domingo que vem
Já não é como o passado,
Que me piscaste o olho
À cancellinha do adro." [2]

O olhar reflecte o amor:

"Ó Manel, tu vais á monda?
Eu cá também vou mondar;
diz-me lá: gostas de mim?
Eu bem vejo o teu olhar"[3]

Os olhos são avaliados pela cor:

"Os olhos azuis são falsos,
Os pretos são lisongeiros,
Os olhos acastanhados
São leais e verdadeiros." [1]

Os olhos podem chorar de tristeza:

"Os meus olhos com chorar
fizeram covas no chão,
coisa que os teus não fizeram,
não fizeram, nem farão." [3]

Nos olhos se reflecte o sono:

"O sonno me deu nos olhos,
Batucou, entrou p’ra dentro
Elle me disse baixinho.
Vamos á cama, que é tempo." [2]

A certa altura os olhos reflectem falta de vista:

"Os olhos da minha cara
Como eram já não são.
Fazem a mesma diferença
Que o Inverno faz do Verão." [1]

Os olhos podem ser alvo de brejeirice:

"Já não sei que faço aos olhos,
Que geitinho lhes sei dár,
Que as mulheres m’os cobiçam,
Homens querem-m’os tirar." [2]

Os olhos podem igualmente ser motivo de sarcasmo:

"Os olhos da minha sogra,
São duas sardinhas fritas.
Quando olho para ela.
‘Té me revolvem nas tripas." [1]

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1909.
[3] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

D. Manuel II - O Bibliógrafo




Ao meu amigo José Manuel dos Santos Pereira (vulgo “o D. Manuel”), que nas suas colecções especializadas de Filatelia Tradicional e de Inteiros Postais, levou o estudo das emissões de D. Manuel II, a um nível de profundidade nunca antes conseguido.

PRÓLOGO
A Filatelia é comum e simultaneamente reconhecida como “Rei dos hobbys” e como “Hobby de Reis”. E se, porventura, é certo que esta conjunção de proposições é uma proposição verdadeira, não será, eventualmente, menos certo que há outros hobbys que não estando alcandorados à categoria de hobbys merecedores do epíteto de “Rei dos hobbys”, não perdem, com isso, merecimento que os leve a deixar de ser considerados como “hobby de Reis”. Refiro-me, naturalmente às Antiguidades, à Numismática e à Bibliofilia.
Nesta panóplia de interesses coleccionistas, o meu coração pende para esta última, o que julgo ser passível da compreensão do prezado leitor. É que no jeito adquirido de trespassar montanhas de papel para perseguir uma ideia, o possuir livros como quem possui uma mulher, com total entrega e muito amor, tornou-se uma paixão intransponível. Paixão multifacetada, é certo, dado o meu interesse simultâneo e não necessariamente convergente pela Física, pela Etnologia e pela Filatelia, disciplinas que apesar de terem no terreno uma forte componente prática, não deixam por isso de ter uma forte componente bibliófila.
Livros que, como ponto de partida, são a semente donde brotam finos caules que o tempo engrossa, porque a função do tempo é essa: fazer convergir riachos que em certa altura se transmutam numa torrente, donde dimana a energia e consequentemente a vida.
Livros que folheamos, que acariciamos, que exploramos, que desbravamos, que passamos a conhecer como ninguém e que por isso passam psicologicamente a fazer parte de nós próprios.
Livros que materialmente e psicologicamente possuímos e que alguns de nós sentimos necessidade de assinalar com uma marca de posse: o ex-libris [1], espécie coleccionável, rica nos seus múltiplos aspectos.
Aspectos que eu, sôfrego de tudo o que é inter e multidisciplinar, sinto necessidade de integrar epidermicamente na minha vivência. Daí que a posse acidental de um extenso e precioso acervo de ex-libris, tenha consequências que, de momento, estou ainda longe de ser capaz de avaliar.
Numa primeira investida, estudei-os por temas, depois por desenhadores, por gravadores e por técnica de gravura. Qualquer destes estudos deu os seus frutos, mas não me conteve. É que o alentejano que há em mim, habituado à vastidão da planície, procura descortinar sempre algo mais para além da linha aparente do horizonte. E nesse aumento de profundidade de campo, quis olhar os ex-libris, que de uma forma ou de outra, tivessem a ver com o Alentejo que me vai na alma, com a Pátria que há dentro de mim e com a Cultura que me foi legada. Foi assim, que dum escasso lote de ex-libris, sobressaiu um (fig. 1), que passo de imediato a descrever.


Fig. 1

O EX-LIBRIS DE D. MANUEL II
Trata-se de um ex-libris do “MUSEU-BIBLIOTECA DO PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA”, onde estes dizeres estão encimados pelo ex-libris de D. Manuel II, que como é sabido foi um bibliófilo e bibliógrafo distintíssimo.
O ex-libris de D. Manuel II já foi inúmeras vezes descrito [2] após a sua divulgação pública em Portugal[3]. Inspirado na página do rosto de “O Livro e Legenda que fala de todolos feitos e paixões dos Santos Mártires”, impresso em letra gótica, em 1513, em Lisboa, por João Pedro de Cremona, por ordem de D. Manuel I.
À semelhança daquela obra, o ex-libris ostenta, lado a lado, as armas reais e a esfera armilar. Esta foi adoptada por D. Manuel I como sua “empresa” (emblema pessoal), ainda antes de ser Rei. Enquanto que o brasão de armas, foi herança familiar de D. Manuel I, a esfera armilar é um emblema pessoal. “E emblema que pela sua adopção por um príncipe português é simultaneamente uma excelente manifestação de presença no renascimento, de vontade portuguesa de estudar e conhecer o universo, de cientificamente conquistar verdades geográficas e astronómicas”.[4]
À gravura existente na página do rosto daquela obra, acrescentou D. Manuel II, as legendas “Ex Libris” e “Depois de Vós Nós / D. Manuel II”. O conjunto está envolvido por uma corda e a gravura por outra corda, mas agora com dois nós.
Através do seu ex-libris, D. Manuel II assume toda a mensagem encerrada no simbolismo da esfera armilar, ao mesmo tempo que não se esquece da sua ascendência Bragança, uma vez que a corda e a frase transcrita no ex-libris eram o emblema pessoal, dos duques de Bragança de quinhentos, que através dele exprimiam que o seu lugar na hierarquia social portuguesa era imediatamente a seguir ao Rei. Ora, sendo D. Manuel II Rei, o uso do antigo emblema ducal bragantino, assume o significado de D. Manuel II aceitar assumir um lugar secundário em relação a D. Manuel I.
VIDA E OBRA DE D. MANUEL II
D. Manuel II [5] subiu ao trono a 6 de Maio de 1908, com 18 anos apenas, em virtude de seu pai D. Carlos I e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe terem sucumbido no regicídio a 1 de Fevereiro de 1908. Tímido, inexperiente, sem gosto nem vocação para a política, D. Manuel II reinaria durante vinte e nove escassos meses, nos quais passaram pelo poder seis ministérios, cuja acção não foi além de pequenas manobras políticas. Seria destronado pelo triunfo da revolução republicana a 5 de Outubro de 1910.
Ao embarcar na Ericeira, em 5 de Outubro de 1910, para o seu exílio na Inglaterra, afirma em carta dirigida ao seu Presidente do Conselho de Ministros, conselheiro Teixeira de Sousa: “Forçado pelas circunstâncias, vejo-me obrigado a embarcar no yatch real “Amélia”. Sou portuguez e se-lo-hei sempre. Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de Rei em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao serviço do meu Paiz. Espero que elle, convicto dos meus direitos e da minha dedicação, o saberá reconhecer. Viva Portugal! Dê a esta carta a publicidade que puder. Sempre muito affectuosamente MANUEL. yatch real “Amélia”, 5 de Outubro de 1910”.[6]
Em 4 de Setembro de 1913 casa com uma prima, a princesa D. Augusta Vitória de Hohenzollern Sigmaringen, pertencente à família real alemã e da qual não teve descendência.
Viveu primeiro em Richmond e depois no Palácio de Fulwell Park, em Twickenham, onde morreu a 2 de Julho de 1932.
O casamento de D. Manuel II com uma princesa alemã, não o impediu de aconselhar os seus partidários a combater pela causa dos aliados, durante a I Grande Guerra e de visitar as tropas portuguesas na frente da Flandres.
Perante as incursões monárquicas sempre proclamou que não queria aventuras, afirmando que a Monarquia se devia restaurar pelo combate no campo legal.
Durante o exílio, que duraria até à morte, consagrou-se à investigação bibliográfica. As suas investigações foram publicadas nos dois primeiros volumes da obra “Livros Antigos Portugueses, 1489-1600, da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima, descritos por S.M. El-Rei D. Manuel em Três Volumes”. A publicação, dirigida pelos livreiros Maggs Bros, de Londres, foi impressa nas oficinas tipográficas da Universidade de Cambridge, tendo o 1º volume sido publicado em 1929 e o 2º volume em 1932. Já o terceiro volume seria publicado em 1935, após a sua morte, tendo sido completado pela sua secretária Miss Margery Withers e editado com prefácios de Aubrey Bel e Ricardo Jorge.
A monumental obra de D. Manuel II descreve 9 incunábulos, 460 livros quinhentistas impressos em Portugal e 6 no estrangeiro. Na obra indicam-se ainda, o mais concisamente possível, 3 manuscritos e 112 volumes da camoneana de D. Manuel II, impressos de 1572 a 1928.
O Sr D. Manuel de Bragança, além de descrever cientifica e miudamente cada livro, apontando todas as suas características de tipo, lugar, autoria, apresentação, utilização de vinhetas, portadas e capitulares, seriação de folhas e páginas, colocação de capítulos, prefácios, índices e estampas, ainda biografa autores e “impremidores”, ainda comenta, às vezes desenvolvidamente, os assuntos, não se proibindo, de quando em quando, do seu bocadinho de crítica histórica”.[7]
“A obra “Livros Antigos Portugueses”, orna-se com multiplas reproduções a preto e vermelho, xilogravuras, portadas, rostos, “colophons” capitulares, estampas, vinhetas e tarjas, caracterizantes de cada obra estudada, algumas de grande raridade e muitas de verdadeiro mérito etnográfico, artístico e histórico”.[8]

Fig. 2

A obra de D. Manuel II tem sido unanimente elogiada por historiadores e bibliógrafos, sendo de salientar que “...no que se refere aos livros quinhentistas portugueses, El-rei Dom Manuel é o maior bibliógrafo de todos os tempos, embora não tenha descrito todos esses livros, pois só se dedicou às várias centenas que deles possuía, mas fê-lo com tal mestria e com tanta erudição que bem merece ser designado o Rei Bibliógrafo”.[9]
A obra de D. Manuel II é, pois, uma obra de alta bibliografia, importantíssima por isso, mas também uma prova cabal do seu grande amor por Portugal, o qual ele manifestava permanentemente e que já tivera um dos seus pontos altos, quando, em 20 de Setembro de 1915, assinou o seu testamento em Londres, cuja cláusula 14 contém a disposição de as suas colecções de arte virem a constituir um Museu.
Este Museu da Casa de Bragança seria instalado no paço ducal de Vila Viçosa, passando a partir de 1940 a ser gerido pela Fundação da Casa de Bragança, cujos objectivos são consumar e perpetuar os objectivos estéticos, culturais e beneficentes do Rei D. Manuel II.
Para a instalação do Museu-Biblioteca foi transformado o paço ducal, que nos últimos anos de monarquia serviu de Casa de Campo à Família Real. Não surpreende a escolha do local, pois “De menino, criara D. Manuel, nas suas afeições grande predilecção pelo solar de Vila Viçosa; alguém já escrevera, de resto, que era íntima condição dos Braganças “o alentejanismo pelo coração”. (...) Como, em disposições de última vontade, lembrou também aquele Paço, para serem arrecadadas as preciosidades bibliográficas que, paciente, se dera a reunir, e magnanimamente, doou ao seu País...”[10]
Do vasto acervo de objectos de arte e de interesse histórico que constituem o riquíssimo património do Museu-Biblioteca, há a destacar os livros antigos, incunábulos e manuscritos, adquiridos e reunidos por D. Manuel II, durante o exílio em Londres. Entre esses livros há 69 que se podem considerar exemplares únicos no mundo e 16 que embora existam no estrangeiro, são exemplares únicos em Portugal. “O paço ducal de Vila Viçosa tornou-se o santuário da alma do Rei brigantino que ali permanece no meio dos seus objectos e dos seus livros, como imagem de um tempo que marcou a grandeza de Portugal no mundo”.[11]
D. Manuel II nascera no Palácio de Belém em 15 de Novembro de 1889, filho de D. Carlos I de Bragança e de Amélia de Orléans. Como foi a sua educação? Esmerada como era timbre da Família Real Portuguesa. “Para além dos Pyreneos, so uma casa real, a Casa d’Orléans, ao findar o seculo XVIII, educava os seus princepes com verdadeiro amor pelo caracter e pela intelligencia.”[12]
“Embora tendo assentado praça, como aspirante de marinha, a 1 de Junho de 1904, só em 1907 o especialismo do curso naval, correspondente aos preparatorios da escola Polytechnica, veio alterar o primitivo programa educativo, elaborado pelo preceptor Kerausch, e orientado no sentido de um bacharelato de lettras. O estudo da historia, das litteraturas e das linguas tomava a maior parte da profusa leccionação a que um regimen severo submetera desde os doze annos o Infante.”[13]
“Antes de conhecer o paiz de que seu Pae era Rei, foi nos livros de Historia e nas estancias dos Luziadas que o collegial, recluso nas Necessidades, o entreviu.”...”Eis os fructos e as lições do humanismo com que se alimentou a juventude de D. Manuel.” ...”Pode discordar-se da orientação dada aos primeiros estudos de D. Manuel, accusando-a de excessivamente humanista. Mas ninguém poderá contestar que o humanismo singularmente radica no caracter o culto apaixonado da belleza moral e das virtudes civicas. Esse excesso de humanismo providencialmente preparou o Infante para as eventualidades de uma realeza imprevista, destinada a defrontar-se com uma reacção democrática, ...”[14]
A esmerada educação de D. Manuel II e os bons frutos que dela houve, tornaram a sua vida e obra um corolário natural daquela educação.
Vida e obra que mereceu e continua a merecer a admiração de muitos. A propósito da morte de D. Manuel II, disse o então Presidente do Conselho de Ministros, Dr. Oliveira Salazar: “São inúmeros, na História, os exemplos de grandes homens que, exilados por infelicidades políticas, chegaram a amaldiçoar a Pátria que os baniu; mas aqueles que como o senhor D. Manuel, foram expulsos, sem culpa, da sua Pátria, e, apesar disso, continuaram a amá-la e a prestar-lhes serviços, são ainda maiores do que os grandes”.  [15] Face a estas palavras, não é de admirar que “...por determinação expressa do Governo da República, como reconhecimento por tudo quanto por Portugal fez, foi decidido o regresso do féretro ao seu país natal e a sua sepultura no Panteão Nacional, onde descansa junto de seu Augusto Pai e seu Irmão”.[16]
É assim que depois de decorridos os funerais celebrados na Catedral de Westminster, em Londres, onde se celebram as exéquias dos monarcas e dos grandes vultos britânicos, D. Manuel é transladado para Lisboa, onde tem funerais nacionais, jazendo desde 2 de Agosto de 1932, no panteão de S. Vicente de Fora.
“A História dum monarca, que em luto começara, em luto finda. Parece que um crepe, invisível e fatal, o envolvera desde o berço, sôbre o qual chorara um imperador destronado, até à surpresa da morte na terra do exílio, onde sempre se ensaüdara do seu querido Portugal”. [17]

Fig. 3
O MEU REI
Estou certo que, quem me está a ler, decerto já terá percebido que o meu Rei, é D. Manuel II [18]. Daí que não seja de estranhar que sendo a Filatelia, o rei dos meus hobbys, eu possua nas minhas colecções, objectos postais circulados cuja figura central é “O bibliógrafo”. Três delas são postais ilustrados, circulados com o selo do lado da vista (T.C.V.’s), os quais conjuntamente com o ex-libris do Museu-Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, são o fulcro do presente artigo.
Dois dos postais ilustrados circularam durante o reinado de D. Manuel II e são reproduzidos nas fig. 2 e 3. Qualquer deles tem apostos selos de 10 reis, verde, papel esmalte, denteado 14x15, com período de circulação: 1.1.1910 a 30.3.1913. Os selos representam o retrato de perfil do Rei D. Manuel II, vestido de generalíssimo, segundo desenho e gravura do busto e cercadura de Domingos Alves dos Reis.
O postal da fig. 2, é de edição privada, não identificada, reproduzindo uma das primeiras fotografias de D. Manuel II, usando a farda de generalíssimo e tendo à esquerda as Armas da Monarquia. Circulação: LISBOA 14.8.1910 a MADRID (?). Obliteração de partida, do tipo quadrangular de LISBOA CENTRAL/4ª SECÇÃO. Porte de 10 reis, correspondente aos bilhetes postais simples do serviço nacional e aos impressos para o estrangeiro.


Fig. 4
O postal da fig. 3, é de edição “GLORIA”, Porto, reproduzindo uma gravura a cores. Ao centro e dentro de uma cercadura encimada pela coroa real, D. Manuel II vestido de generalíssimo. À direita de D. Manuel II, duas bandeiras da Monarquia e à esquerda, o brasão real. Circulação: PORTO 12.6.1910 a SEINE 15.10.1910. Obliteração de partida, do tipo hexagonal de PORTO CENTRAL/3ª SECÇÃO. Porte de 20 reis, correspondente aos bilhetes postais simples do serviço internacional.
O terceiro postal ilustrado, reproduzido na fig. 4, circulou já depois da implantação da República. Tem aposto um selo de 10 reis, verde, papel esmalte, denteado 14x15, da emissão anterior, com sobrecarga “REPUBLICA” a vermelho e período de circulação: 1.11.1910 a 30.3.1913.
Este último postal, é de edição “A. MIRE”, Lisboa, reproduzindo uma gravura a cores da bandeira da monarquia, em cujo campo azul e dentro de uma cercadura, figura D. Manuel II, vestido de generalíssimo. Circulação: LISBOA 29.11.1910 a LISBOA 30.11.1910. Obliteração de partida, do tipo hexagonal de LISBOA CENTRAL/3ª SECÇÃO (A.E.) e obliteração de chegada do tipo circular de LISBOA CENTRAL/2ª SECÇÃO. No verso, flâmula obliterante constituída por 6 barras paralelas e marca do dia octogonal, datada de 30.11.1910. Porte de 10 reis, usado nos bilhetes postais simples do serviço nacional.
Os T.C.V.’s aqui apresentados são postais máximos precursores, uma vez que aconteceram acidentalmente, antes da Convenção Postal Universal, assinada no Cairo a 20 de Março de 1934, ter passado a proibir expressamente a possibilidade de expedir T.C.V.’s. Além disso circularam durante um período muito curto (o período de circulação dos selos de D. Manuel II sem e com sobrecarga “REPUBLICA” foi: 1.1.1910 a 30.3.1913), pelo que são raros. Por essa dupla circunstância, a de serem postais máximos precursores, cumulativamente raros, podem muito justamente ser considerados jóias maximófilas, não porque sejam peças do meu Rei, mas apesar disso por direito próprio, que importa aqui salientar.

Hernâni Matos
Texto publicado na revista "Convenção Filatélica", nº 4, Estremoz, Novembro de 2002.

[1] - Alguns não saberão porventura o que é um ex-libris. “É o símbolo pessoal, estampado ou impresso, geralmente em papel – de desenho heráldico, alegórico, simbólico, ornamental ou falante, onde figura também o nome e, facultativamente, a divisa do bibliófilo -, que se cola no verso da capa de cada livro possuído, para garantir a pertença da obra e favorecê-la com esse derradeiro requinte artístico” – Rato, Fausto Moreira. Manual de Ex-Librística. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1976. “O primeiro ex-libris conhecido foi usado por Frederico I da Baviera (1198). Em Portugal, o ex-libris mais antigo conhecido foi usado a partir de 1662 por Francisco de Mello e Torres (1620-1667), Marquês de Sande” – Godinho, Auto-Gélio. Ex-Libris. Associação Portuguesa de Ex-Libris. Porto, s/d.
[2] - A primeira descrição de que temos conhecimento figura em: Rosa, João. Alentejo à Janela do Passado. Edição do Autor. Lisboa, 1940.
[3] - O que terá acontecido na 1ª Exposição de ex-libris portugueses, organizada em 1927, pelo republicano Luís Derouet, que o pediu expressamente ao ex-monarca.
[4] - Azevedo, Francisco de. Marca de Posse de um Homem de Bem e de Grande Cultura: O Ex-Libris de El-Rei D. Manuel II, in No Primeiro Centenário de El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1991.
[5] - De seu nome: D. Manuel Maria Filipe Carlos Amélia Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orleães Sabóia e Saxe-Coburgo Gota.
[6] - Carta citada por Serrão, Joaquim Veríssimo. D. Manuel II (1889-1932) – O Rei e Homem à Luz da História. Fundação Casa de Bragança. Lisboa, 1990.
[7] - Notícia de “O Século”, de 2 de Julho de 1932, dia da morte de D. Manuel II.
[8] - Idem, idem.
[9] - Faria, Francisco Leite de. A Biblioteca do Senhor D. Manuel II e Alocução Proferida na Missa Solene do Primeiro Centenário do seu Nascimento, in No primeiro Centenário de El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa da História. Lisboa, 1991.
[10] - Rosa, João. Ob. Cit.
[11] - Serrão, Joaquim Veríssimo. D. Manuel II, um Grande Português, in No Primeiro Centenário De El-Rei D. Manuel II (1889-1932). Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1991.
[12] - Queiroz, Eça de. Artigo dedicado à Rainha D. Amélia, publicado na “Revista Moderna” de 15 de Janeiro de 1908.
[13] - Dias, Carlos Malheiro. Quem é o Rei de Portugal. Illustração Portugueza. Lisboa, 18 de Maio de 1908.
[14] - Dias, Carlos Malheiro. Idem, idem.
[15] - Citação de Rosa, João. Alentejo à Janela do Passado. Edição do Autor. Lisboa, 1940.
[16] - Salazar, António. D. Manuel II, a criança que o destino tornou homem in Baêna, Miguel Sanches. Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio. Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1990.
[17] - Martins, Rocha. D. Manuel II - História do seu Reinado. Edições A,B,C, Lisboa, s/d.
[18] - Isto, apesar de filatelicamente ter um fraco pelos Braganças – ou não fosse eu alentejano.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Milagre das Rosas


Milagre das Rosas. Irmãs Flores. 

O MILAGRE DAS ROSAS
Segundo a lenda, a Rainha Isabel de Aragão (1270-1336), esposa de el-Rei D. Diniz (1261-1325) terá saído do Castelo do Sabugal, numa manhã de Inverno para repartir pães pelos mais desprotegidos. Surpreendida pelo monarca, que lhe perguntou onde ia e o que acarretava no regaço, a Rainha teria clamado: “São rosas, Senhor!” Suspeitoso, D. Dinis teria indagado: “Rosas, no Inverno?” D. Isabel expôs então o recheio do regaço do seu traje e nele havia rosas, ao envés dos pães que encobrira.
A lenda, com algumas variantes, integra a nossa tradição oral desde finais do século XIV, sendo certo que o registo mais antigo conhecido é o do retábulo quatrocentista conservado no Museu Nacional de Arte da Catalunha. Por sua vez, o primeiro registo escrito do “Milagre das Rosas” data de 1562 e encontra-se na Crónica dos Frades Menores, de Frei Marcos de Lisboa:
“(…) levava uma vez a Rainha santa moedas no regaço para dar aos pobres(...) Encontrando-a el-Rei lhe perguntou o que levava,(...) ela disse, levo aqui rosas. E rosas viu el-Rei não sendo tempo delas“
Em meados do séc. XVI, a lenda “O Milagre das Rosas” estava já amplamente disseminada. Dessa época datam o quadro anónimo, conhecido por “Rainha Santa Isabel”, do Museu Machado de Castro, em Coimbra, assim como a afamada iluminura da “Genealogia dos Reis de Portugal” de Simão Bening, baseada em desenho de António de Holanda.
A PRIMEIRA BIOGRAFIA DA RAINHA
Uma biografia anónima de Isabel de Aragão, conhecida por “Lenda ou Relação”, foi redigida imediatamente após a sua morte, por alguém que de perto com ela conviveu, provavelmente o seu confessor, Frei Salvado Martins, bispo de Lamego, ou então uma das donas de Santa Clara que a assistiram durante o tempo de viuvez. O original da biografia perdeu-se. Todavia, no Museu Machado de Castro, em Coimbra, conserva-se uma cópia quinhentista, manuscrita e iluminada, que tem o título: “Livro que fala da boa vida que fez a Rainha de Portugal, Dona Isabel, e seus bons feitos e milagres em sua vida, e depois da morte.” Nela, o autor refere que:
(…) e por qualquer lugar onde fosse não aparecia pobre que dela não recebesse esmola (…) E em cada quaresma fazia grandes esmolas a homens e a mulheres envergonhados; e no dia que se diz Ceia do Senhor lavava a certas mulheres pobres e leprosas os pés, e lhos beijava, e vestia-as e dava-lhes de calçar e contas por amor de Deus.”
Na obra, são evocados inúmeros actos de devoção e piedade cristã da Rainha e exaltadas as suas virtudes de caridade e de misericórdia, bem como as numerosas e relevantes obras sociais e o apoio prestado a conventos e congregações religiosas.
Conforme refere o biógrafo anónimo, a Rainha morreu no Castelo de Estremoz, com 66 anos de idade, no dia 4 de Julho de 1336, de uma doença súbita surgida quando se dirigia para a raia em missão de apaziguamento entre o filho, D. Afonso IV, e o neto, Afonso XI de Castela. Contra o conselho de todos, D. Afonso quis cumprir a tenção de sua mãe ser sepultada no Mosteiro de Santa Clara. A longa trasladação fez-se sob o sol aceso de Julho e, para assombro de todos, apesar dos grandes calores que se faziam experimentar, o ataúde exalava um perfume tão aprazível que "tão nobre odor nunca ninguém tinha visto", assim se lê na primeira biografia.
As virtudes da Rainha, mais tarde considerada Santa, estiveram na origem da sua beatificação por Leão X, em 1536, com autorização de culto circunscrito à Diocese de Coimbra. Em 1556, o papa Paulo IV, torna extensiva a devoção isabelina a todo o Reino de Portugal. Seria o papa Urbano VIII, dada a incorrupção do corpo e o relato dos milagres, quem proclamaria em 1625, a canonização de Isabel de Aragão como Rainha Santa.
Texto publicado inicialmente em 27 de Abril de 2011

Milagre das Rosas. Maria Luísa da Conceição.


Milagre das Rosas. Fátima Estróia.

Milagre das Rosas. Afonso Ginja.

Milagre das Rosas. Maria Isabel Catarrilhas Pires.

Milagre das Rosas. Jorge da Conceição.

Milagre das Rosas. Ricardo Fonseca.

Milagre das Rosas. Duarte Catela.

Milagre das Rosas. Carlos Alves.

Milagre das Rosas. Madalena Bilro.


Milagre das Rosas. José Carlos Rodrigues.

Milagre das Rosas. Inocência Lopes.