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segunda-feira, 11 de abril de 2011

As mercearias antigas


Bilhete-postal ilustrado, não circulado, da Mercearia de José Tomé Natário Feteira, na Rua
 5 de Outubro, nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Mais tarde seria ali a
 Mercearia  de Luís Raimundo, mais conhecida por Loja do Boneco. Actualmente funciona
ali  a Livraria e Papelaria Aníbal.

AS MERCEARIAS DE ESTREMOZ
Nos anos cinquenta do século passado existiam inúmeras mercearias em Estremoz, que procuravam dar resposta às necessidades de consumo da população.
Havia mercearias em muitas das ruas da cidade, algumas das quais eu frequentava, para satisfazer os avios, maiores ou menores, que a minha mãe me encarregava de fazer. Recorrendo ao nome dos proprietários, cito algumas situadas na vizinhança imediata dos locais em que morei: Genaro Manteigas (Rua do Almeida, 3), Adriano Pimenta (Largo da Liberdade, 12), Luís Campos (Largo General Graça, 31), Luís Raimundo (Rua 5 de Outubro 16), Miguel Silveira (Rua Dom Vasco da Gama, 3), Mendes, Meira e Nisa (Praça Luís de Camões, 13-14), Luís Rosado (Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108) e Figo (Rossio Marquês de Pombal, 73).
O ATENDIMENTO
Quando eu morava na Rua da Misericórdia, número sete, numa casa que foi abatida para dar lugar à ampliação do edifício dos Correios, ia-me aviar à do Senhor Adriano Pimenta, no Largo 28 de Maio, que após o 25 de Abril, conquistou o direito à sua primitiva designação de Largo da Liberdade.
Quando na minha condição de migrante, fui morar para a Rua 5 de Outubro, número quarenta e oito, passei a aviar-me à do Senhor Luís Campos.
A mercearia do Senhor Adriano Pimenta era uma pequena mercearia, onde ele era a única pessoa que assegurava os avios, ainda que tivesse um rapaz, o Anselmo, encarregado de fazer mandados no exterior. O Anselmo ia buscar as coisas ao armazém, que era ali bem perto, assim como levar as compras a casa dalgum freguês.
O Senhor Adriano Pimenta era um benfiquista ferrenho. Quando despia o guarda-pó da mercearia, era vê-lo, ufano, de emblema na lapela, a caminho de casa, com o orgulho próprio de ser benfiquista. O Senhor Adriano era um contador de histórias nato, uma pessoa sempre bem disposta, que não se ensaiava nada de pregar uma partida das valentes, a algum sportinguista menos avisado. E quando algum tinha o azar de lhe cair no laço, ele ria a bandeiras despregadas, com sonoras gargalhadas que contagiavam os presentes. Ir à mercearia do Senhor Adriano Pimenta era um tratamento eficaz contra a má disposição.
Na mercearia do Senhor Luís Campos, o proprietário geria a mercearia duma posição estratégica, ao fundo, onde normalmente estava sentado a uma escrivaninha, colocada perpendicularmente a um extenso balcão. Era aquilo a que se pode chamar um cavalheiro à antiga portuguesa, sempre atento e solícito para com os seus clientes, no sentido de bem os servir. Ao balcão trabalhavam vários caixeiros e alguns marçanos, à procura de tarimba e da inerente promoção a ser conferida pelo patrão, quando já tivessem traquejo. Ser caixeiro era uma profissão invejada na cidade. Diz o cancioneiro popular:

“Em Estremoz fui caixeiro,
Em S. Bento, lavrador,
No Canal, carpinteiro,
Em Évora Monte, cantador.”

Um dos caixeiros mais antigos era o Senhor Marcial Louro, que foi hoquista, sportinguista ferrenho, daqueles de comer caldo verde em dia de festa. Usava o cabelo, todo ondulado, penteado para trás com brilhantina e dizia-se que dormia com rede no cabelo, a fim de não desmanchar o penteado. Outro caixeiro era o Senhor Manuel Basílio, que era o contador de histórias da mercearia, já que uma mercearia à antiga tinha que ter de tudo. O Senhor Manuel Basílio estava sempre bem disposto e tinha uma língua afiada quando era preciso – coisas que o Senhor Luís Campos aprendeu a gerir, a bem da clientela. Outro Caixeiro era o Senhor Rúdio, careca, mas de bigode e pêra, para mostrar cabelo. O Senhor Rúdio tinha o vago ar, de inspector de qualquer coisa e, trabalhava normalmente à caixa registadora, já que tinha uma perna mais curta que a outra. Porém, como em tempo de guerra não se limpam armas, quando a clientela abundava, o que era frequente, lá tinha que dar à perna e desenrascava-se como os restantes.
O AVIO E AS EMBALAGENS
Na época, a maioria dos géneros que hoje são vendidos em embalagens individuais estanques, eram manipulados pelos merceeiros que os retiravam das tulhas, dos sacos, dos caixotes, das latas de grandes dimensões, donde eram retirados com corredoras de dimensão adequada, geralmente de alumínio, mas também as havia em latão, folha de flandres e zinco. Por vezes também eram utilizadas pinças metálicas.
No avio, comprava-se sempre açúcar louro, o qual era fornecido ao cliente dentro dum cartuxo de papel acinzentado. O caixeiro batia o cartuxo em cima da pedra mármore do balcão, a fim de o açúcar assentar e com recurso a uma corredora, deitava ou retirava mais uma pitada de açúcar ou duas, até o fiel da balança “António Pessoa”, indicar o peso pretendido. Depois era o ritual do fecho do cartucho, que ficava imponentemente vertical, com o vago ar de prisma paralelepipédico, com duas orelhas de papel. Cinquenta anos depois, continuo a gostar de ver um cartucho com as orelhas arrebitadas.
Assim se pesava também o sal, a farinha, o arroz, o grão, o feijão e o café. Só que neste último caso, o aroma começava logo ali a povoar-nos as narinas e a revelar ou não a sua qualidade.
Dada a variedade dos produtos encartuchados, as mercearias dispunham de uma gama diversificada de carimbos que eram apostos nos cartuchos, para cada um de nós saber o que se transportava lá dentro.
A manteiga e a banha de porco eram retiradas de latas grandes, com o auxílio das respectivas espátulas e eram pesadas em papel vegetal, com o qual se fazia o embrulho, o qual, por sua vez, era embrulhado em papel manteigueiro.
O azeite era aviado em garrafa levada de casa pelo cliente e medido e tirado de um bidão, situado por debaixo do balcão, com o recurso a uma bomba de dar à manivela. Este azeite, na altura da sua compra ao fornecedor, tinha a acidez testada pelo merceeiro, que para o efeito dispunha dum estojo de óleo-acidímetro. É que a vida comercial era respeitável e não se podia vender gato por lebre.
As especiarias (pimenta, cravinho, cominhos, noz moscada, colorau) eram pesadas em folhas de papel de chá, de dimensão adequada, com as quais se improvisava a embalagem. Esta, algumas vezes era cónica e obtida por enrolamento, fixado no fim, através de dobragem na ponta.
As bolachas, independentemente de serem Marias, torradas ou de água e sal, eram fornecidas às mercearias em caixa cúbica, com cerca de 25 centímetros de aresta, fabricadas em folha-de-flandres, forrada a papel vegetal. Dali eram retiradas com uma pinça metálica, na quantidade pretendida e enroladas em papel de chá ou acomodadas num cartucho, dependendo da quantidade. Em ocasiões especiais também se compravam biscoitos sortidos, que eram logo pesados em cartuxos. Chegavam à mercearia, embalados em caixas como as das bolachas, mas tinham para aí metade da altura daquelas.
Enlatados, levavam-se para casa: atum “Tenório”, sardinhas em azeite “Tricana” e salsichas “Frescata”. Embalados, levavam-se caixas grandes de fósforos “Clube”, a fim de serem usados na cozinha, assim como farinha “Amparo”, “Predilecta” ou “33”, para adicionar ao leite do pequeno-almoço.
Habitualmente levava-se bacalhau que a gente escolhia e que era cortado com a respectiva faca, mesmo ali à nossa frente, para depois ser embrulhado em papel de jornal. Era uma operação que, invariavelmente, eu acompanhava sempre atento. Quando uma vez no liceu, o meu professor de História, o saudoso Dr. Azevedo, a propósito da Revolução Francesa perguntou à turma:
- Sabem o que é uma guilhotina?
Eu respondi desembaraçadamente:
- É um género de faca de bacalhau para cortar a cabeça à Nobreza!
O vinagre e o vinho compravam-se avulsos na taberna, embora também pudessem ser comprados na mercearia. Ali, se compravam para as ocasiões especiais, garrafas de vinho maduro, verde, do Porto, moscatel, assim como licores, brandes e aguardentes.
As batatas, as cebolas, os alhos, os ovos, os queijos e os enchidos eram geralmente comprados no mercado municipal, mas também podiam ser comprados na mercearia.
Para a higiene pessoal compravam-se sabonetes de glicerina ou “Musgo Real”, assim como "Pasta Medicinal Couto”.
Para a lavagem da roupa e para fazer barrelas, levava-se sabão azul e branco ou sabão macaco, vendidos à barra. Se não queríamos uma barra inteira, o caixeiro cortava com mestria, o peso certo de sabão. E dizia ufano:
- Nunca falha!
É que ele sabia empiricamente que, sendo a barra de sabão homogénea, o peso de sabão era proporcional ao comprimento cortado na barra. Feito isto, o sabão era meticulosamente embrulhado em papel de jornal, que assim cumpria mais uma fase da sua reciclagem.
O ROL
Quando ia às compras levava sempre um rol, elaborado previamente pela minha mãe. Só se comprava o que fazia falta, já que o dinheiro não nasce do chão e acabávamos de sair da II Guerra Mundial e das cadernetas de racionamento.
O rol servia também para fazer as contas do avio, desde que não se quisesse factura, o que era o meu caso. No final do avio, o caixeiro conferia sempre as coisas connosco, não se desse o caso de ter havido algum engano.
O REGRESSO A CASA
Para os miúdos como eu, o melhor do avio era o fim, pois o Senhor Luís Campos era generoso e dava guloseimas à rapaziada: rebuçados de fruta, de coco, de seiva de pinheiro, de Santo Onofre ou do Dr. Bentes. De resto, tinha sempre uma palavra amável, bem como recomendações para os meus pais, assim como os caixeiros, os quais, cada um à sua maneira, procediam de modo análogo, seguindo as orientações do patrão.
O AVIO LEVADO A CASA
O Senhor Luís Campos tinha um empregado, o Mourinha, que num carro de mão, de razoáveis dimensões, ia entregar os grandes avios, às casas dos fregueses da “alta”, assim como transportar mercadoria da estação da CP para a mercearia. Só em condições excepcionais, o Senhor Luís Campos recorria aos serviços dum carreiro, que trabalhasse com um carro de carga (alentejano, é claro!), puxado por uma besta. Lembro-me de dois carreiros: o Fateixa e outro do qual não recordo o nome, mas que trabalhava para a avó do Serafim, meu amigo e companheiro de carteira na Escola Primária. Eram eles que faziam o grosso do transporte que abastecia as mercearias. O cancioneiro popular regista a sua presença:

“Ailé,
Lá em Estremoz,
Meu amor é carreiro,
Acarreta arroz.”

O LIVRO DOS FIADOS
O “Livro dos Fiados” era uma instituição que vigorava nas antigas mercearias, no tempo em que toda a gente tinha vergonha. Ou porque o chefe de família não tinha recebido ainda o magro salário ou por dificuldades económicas, eram registadas em livros estreitos e de capa negra, os avios que as carências da época não permitiam satisfazer imediatamente, mas que a honra de cada um avalizava que seriam pagas, o que infalivelmente era feito, no mais curto espaço de tempo possível.
OLHANDO PARA TRÁS
O capitalismo ou seja a ânsia de lucro fácil e o desrespeito pela condição humana, quer de consumidores, quer de funcionários, não tinha ainda inventado, nem os supermercados nem os hipermercados, os quais são templos de consumo aos incautos, que quando se aviam estão a trabalhar para o dono da grande superfície, que não lhes paga para isso. Muitos acabam por comprar o que não querem, já que não tiveram a disciplina de fazer um rol de compras, como a minha mãe, sensatamente fazia. E que dizer do desperdício que originam, com a parafernália de embalagens e sacos que lhes impingem, umas vezes dados, outras vezes comprados?
Nos anos cinquenta do século passado, as mercearias antigas eram os nossos templos do consumo possível e necessário. Então, a barriga dava horas, como, de resto, hoje dá, porque a barriga é um imparável relógio suíço. Contudo, nós éramos mais sensatos que muitos hoje são, pois as compras eram apenas para satisfação das necessidades inadiáveis e nunca para escape de frustrações acumuladas. Comprava-se com conta, peso e medida. E éramos felizes, muito mais que alguns são hoje, com todas as loucuras de consumo que cometem.
Oh que saudades que eu tenho das mercearias antigas!

Publicado anteriormente a 11 de Abril de 2011
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

Bilhete-postal comercial da Mercearia de José Tomé Natário Feteira na Rua 5 de Outubro,
 nº 16, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de Estremoz, em 30 de Janeiro
de 1912, para o Porto. Impresso na Tipografia Minerva, de Adriano Motta, editora do  jornal
 “Eco de Estremoz”, onde iniciei a minha actividade jornalística, cerca de 1960.

Bilhete-postal comercial e ilustrado da “Loja Popular” de Joaquim Teodoro Duarte Campos,
no Largo General Graça, nº 31, em Estremoz, na segunda década do séc. XX. Expedido de
Estremoz, em 29 de Fevereiro de 1916 (em plena 1ª Guerra Mundial), para o Porto. A Joaquim Teodoro Duarte Campos sucedeu Luís Campos, cuja actividade comercial é referida no texto.

Bilhete-postal dos Correios com carimbo comercial da “Mercearia Central” de Luís Rosado,
no Largo da República, 8 e Rossio Marquês de Pombal, 107-108. Expedido de Estremoz, em
12 de Maio de 1918 (já no final da 1ª Guerra Mundial), para o Porto. Mais tarde foi ali a
Mercearia  de Rosado & Louro.     

terça-feira, 5 de abril de 2011

O cavalinho de pau




ESTREMOZ NOS ANOS CINQUENTA
Nasci em 1946, em Estremoz, no Largo do Espírito Santo, que é um largo que tem como referência a fonte do mesmo nome, a Torre das Couraças, o Convento dos Agostinhos que foi Fábrica de Cortiça dos Reynolds e dos Robinson, assim como o poeta Sebastião da Gama, que ali morou no segundo andar do número dois.
O alegrete, o espaço em torno da fonte e o adro, foram os terreiros primordiais da minha infância, os palcos primitivos onde desempenhei os primeiros papéis da minha vida, enquanto brincava, o que era, sem dúvida, a minha principal e mais importante tarefa de todos os dias.
Uma das minhas brincadeiras iniciais foi o cavalinho de pau, o que é natural, pois nos anos cinquenta do século passado, eram frequentes, em Estremoz, o carro de tracção animal, os trens e as caleches, bem como o próprio acto de montar a cavalo.
Os carros de tracção animal, puxados por uma ou duas bestas, eram o veículo usado diariamente no transporte de carga: azeitona para os lagares, trigo para a moagem, mercadorias da estação da CP ou da Camionagem para o comércio local, assim como pelos hortelões que das hortas e quintas dos arredores vinham vender vegetais e fruta ao mercado municipal.
Nos trens se faziam transportar por um cocheiro fardado, as famílias dos grandes proprietários rurais.
Pela cidade circulavam também cavalos, por vezes conduzidos a pé pelos seus tratadores, a fim de beberem água no chafariz do Lago do Gadanha. É que os grandes proprietários rurais tinham casa no campo, que acumulavam com casa na cidade. Esta, estava provida de cavalariça onde alojavam os animais, assim como os seus aprestos, a palha destinada à alimentação e para enxerga, assim como os trens e as caleches. Era também corrente na época, ver alguém dessas casas, passear a cavalo pelas ruas da cidade ou trotear e voltear no Rossio Marquês de Pombal, o qual funcionava assim como picadeiro público.

O REGIMENTO DE CAVALARIA 3
Desde 1875 que está instalado em Estremoz, o Regimento de Cavalaria 3. Do extenso e valioso historial do RC3, se destaca a heróica e brilhante vitória alcançada pelos seus cavaleiros, sobre o exército espanhol na Batalha de Fuente de Cantos, travada a 15 de Setembro de 1810, no decurso da Guerra Peninsular.
Os cavaleiros do RC3 quando regressavam ao Quartel após manobras realizadas no campo, iam com as suas montadas até ao Lago do Gadanha para se lavarem e refrescarem, descendo para lá por uma rampa que existiu do lado do Jardim, até cerca dos anos 50 do século passado, assim como outra, do lado oposto àquele. Mais tarde, essas rampas, que estavam vedadas com correntes, foram sacrificadas, porventura em nome do progresso. Nos anos sessenta e com o Lago já sem rampas, eram os pelotões regressados do treino de campo para a Guerra Colonial, que ali entravam cobertos de lama, para uma primeira lavagem de corpo, que não da alma. Nessa época era vulgar, ver oficiais a passear a cavalo pelas ruas da cidade. De resto, quando havia paradas militares no Rossio, a presença da Cavalaria era uma constante.

A GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Onde hoje é a Igreja dos Congregados, situava-se a incompleta Igreja do Convento da Congregação do Oratório de S. Filipe Nery, que como é sabido, ao contrário da Companhia de Jesus, era aberta “às luzes” trazidas pela revolução científica de Copérnico e Galileu. Esta, duma assentada, revogou o não só bíblico como aristotélico modelo geocêntrico do Universo, levando-nos a ver o Universo com outros olhos, que não os da divina revelação.
Ali estava instalado o Quartel da Guarda Nacional Republicana e nas coxias da hoje Igreja, estavam instaladas as cavalariças. Dali saiam os guardas, aos pares, para patrulhas a cavalo nas freguesias rurais.

AS TOURADAS
O meu avô Manuel Alturas, ferroviário aposentado, republicano e amante da Festa Brava, levava-me aos touros e comprava rebuçados que comíamos durante a corrida. Eu ficava encantado com o ritual das cortesias e o evoluir elegante do ginete de Mestre João Branco Núncio, a quem os mais velhos chamavam “O Califa de Alcácer”.
Quando ia às touradas usava calças de cós alto e jaqueta que o meu pai, alfaiate de lavradores e de toureiros, confeccionara para mim. Um pequeno chapéu à Mazantina completava os meus adereços. Desse tempo, guardo como relíquia, a minúscula jaqueta que levava às touradas.

O CIRCO
Em certas ocasiões, tais como a Feira de Maio ou a Feira de Santiago, vinham a Estremoz circos que montavam tendas no Rossio Marquês de Pombal. Os melhores circos traziam cavalos amestrados e, por vezes, equilibristas que em cima deles, desafiavam o impossível, fazendo coisas incríveis, para deleite de vista.

A VASSOURA
Do exposto se conclui que o cavalo era uma presença certa na minha vida diária. Natural era, pois, que eu, habilitado com as asas da minha imaginação, sonhasse em ser cavaleiro. E fazia-o, brincando com o meu cavalinho de pau, o qual durante muito tempo foi a vassoura de cabo alto, lá de casa.
Nas minhas cavalgadas, fazia como o “Califa de Alcácer”. Por vezes mudava de montada e passava a cavalgar a cana de caiar.
Certo dia, a minha mãe, farta das minhas traquinadas com os utensílios domésticos, acabou por me comprar um cavalinho de pau, mesmo a sério, com cabeça de cavalo, crinas, arreios e tudo. E logo que o estreei, como ele não dizia nada, com todo o meu contentamento fui eu próprio que relinchei por ele, o que emprestou mais realismo à minha representação. E sabem que mais? Quando montava o meu corcel, usava sempre um barrete feito de papel de jornal, que o meu avô me ensinara a fazer numa tourada, quando me esqueci de levar o meu chapéu à Mazantina.
O meu barrete de papel era um acessório importante. Quando fazia de militar a cavalo, usava o barrete posto de trás para diante e uma espada de madeira presa no cinto das calças. Já quando era cavaleiro tauromáquico, punha o barrete de papel atravessado na cabeça e usava um pau a fazer de farpa. Mas nada de usar jaqueta ou chapéu à Mazantina, porque isso era só nos dias de festa.
As minhas representações equestres eram diversificadas, iam do trote ao galope, passando pelo volteio. Nelas, na minha imaginação, eu era sempre um garboso cavaleiro montado num puro-sangue de Alter, que cavalgava horas a fio no Largo do Espírito Santo. Acontecia às vezes que uma tourada ficava a meio do seu curso ou, o que era bem pior, não conseguia concretizar uma carga de cavalaria. Sabem porquê? É que a minha mãe aparecia à janela a gritar:
- “Hernâni anda para a mesa, que são horas de comer!”
E eu não resistia à chamada, porque com tanta cavalgada, já tinha a barriga a dar horas.

Publicado inicialmente em 5 de Abril de 2011
Texto que integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

JUNHO – iluminura do “Breviário de Eleanor de Portugal” (segundo
o uso  de Roma), manuscrito e iluminado em Bruges, c. 1500, pelo
Mestre dos antigos Livros de Orações de Maximiliano I e de Jaime IV
 da Escócia, que alguns estudiosos identificam como sendo Gerard
Horenbout. MS M.52 fol. 4V, metade superior. Morgan Libray,
Nova Iorque.  Na faixa superior, várias figuras montam cavalinho
de pau e parecem travar uma batalha simulada.

JUNHO - Iluminura (9,8x13,3 cm) do “Livro de Horas de D. Fernando”
 [Século XVI (1530-1534)],  manuscrito com iluminuras da oficina
Simon Bening. Número de Inventário: 01163.10 TC. Número de
Inventário do Objecto: 13/6v. Ilum. Museu Nacional de Arte Antiga.
Em baixo, à direita, o cavalinho de pau.

JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira
(161 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena.

CAVALINHO DE PAU - Pormenor do quadro JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter
Bruegel,  o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161x118 cm).
Museu  de  História de Arte, Viena.

CRIANÇAS A BRINCAR NUMA SALA - Ilustração do “Splendor Solis”
(1582),  códice alemão ilustrado, que é um tratado alquímico
atribuído ao  lendário  Salomon Trismosin, considerado o mestre
de Paracelso. Harley 3469,  f.31v, British Library, Londres.

BRINCADEIRAS INFANTIS (1774) - Gravura de Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726–1801), extraída de
“J. B. Basedows Elementarwerk mit den Kupfertafeln Chodowieckis u.a. Kritische Bearbeitung in drei Bänden, herausgegeben von Theodor Fritzsch. Dritter Band. Ernst Wiegand, Verlagsbuchhandlung
 Leipzig 1909". Representado o cavalinho de pau, o cavalo de balanço, o carrinho de bébé e o baloiço.

RETRATO DE HENRIETTE VON HEINTZE COM OS SEUS FILHOS (1803) - Óleo
sobre tela de Friedrich Carl Gröger (1766-1838), Museum Behnhaus, Lübeck.

“RIDE A COCK HORSE” - Ilustração da escritora e ilustradora
infantil Kate Greenaway (1846-1901) publicada no livro
Mother Goose” (1881).

RIDE A COCK HORSE TO BANBURY CROSS (1902) - Ilustração de
William  Wallace Denslow (1856 - 1915), ilustrador e caricaturista,
do livro “Denslow's Mother Goose”.

sábado, 19 de março de 2011

O jogo do pião


JOGO DO PIÃO-Ilustração da artista plástica Cristina Malaquias, que teve a gentileza de me oferecer este magnífico desenho, que muito valoriza este post. Obrigado, Cristina.


OS TREINOS
A destreza no jogo do pião é fruto de horas esquecidas a treinar a rodopiante arte. A consagração de nicar maioritariamente os piões dos outros, desde sempre exigiu treinos intensivos e solitários em que usávamos dois piões, um para jogar e outro destinado a submeter-se a ser arremessado para fora do círculo do jogo. Por vezes, o treino era interrompido pela chegada de um parceiro que lançava o repto:
- “Eh pá! Pára isso e vamos jogar a sério.”
A resposta só podia ser uma:
- “É para já! Julgas que tenho medo?”
E o desafio tanto podia ser lançado por um presumido vencedor habitual, como por um corajoso habitual vencido, desejoso de inverter o sentido da sua má sorte. O primeiro destes com o pião mais incólume, o segundo com o pião mais marcado, mas qualquer deles, ferido de guerra. E digo guerra, porque jogar ao pião das nicas era exercitar estratégias de combate, que visavam desalojar o adversário do círculo onde estava, a fim de o nicar, se possível até à sua aniquilação.
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O PIÃO DAS NICAS
“Quem vai à guerra, dá e leva”, adágio que traduz na perfeição, o dia-a-dia dum pião. E o que é um facto indiscutível é que por mais que se dê, sempre se leva. Por isso, um pião das nicas é como que um ferido de guerra, que ostenta marcas identitárias – as nicas – distribuídas pelo seu corpo de madeira. São marcas inconfundíveis que revelam em toda a sua extensão, o passado de desventura de um pião ou, pela sua raridade, o passado de glória do mesmo, umas mais fundas, outras mais superficiais, dependendo do vigor de quem as firmou, bem como da consistência da madeira. E decerto que os mais rijos eram os de azinho. Daí o adágio: “Rijo como o azinho.”
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O CÍRCULO DO JOGO
Quando o círculo do jogo estava sumido, era chegada a altura de traçar outro no chão do terreiro. E esse seria um círculo perfeito, porque a brincadeira é a forma infantil de procurar a perfeição. Para tal, fazíamos como víramos fazer aos jardineiros municipais, quando tinham que marcar na terra uma zona circular, onde fariam nascer um canteiro de flores. Sabem como era? Usávamos uma guita e dois piões que prendíamos à extremidade da guita. Um dos piões era espetado no chão, por um de nós. Com a guita esticada, dávamos então uma volta completa com o outro pião, com o ferrão a sulcar o chão de terra batida. Quando o chão era mais rijo, em vez do segundo pião, usávamos um pauzinho de picão da braseira ou um pau de giz branco, palmado à socapa na escola. Tudo dependia da cor do chão. E isto era um ritual para nós tão importante, como estar em estado de graça, antes de receber a Eucaristia. Só mais tarde, ultrapassados os meus tempos de bibe e de pião, é que vim a conhecer a matemática da circunferência. Esta é conhecida desde a Antiguidade e tinha a ver com o acto prático de mensuração, como acontecia no Egipto, onde devido às cheias periódicas do Nilo, os agrimensores não tinham “mãos a medir”. Quem sabe se, porventura, não terão sido eles que através de múltiplas gerações, transmitiram iniciaticamente aos jardineiros municipais, a técnica do traçado da circunferência que lhes permite delimitar o círculo do canteiro. E dos jardineiros municipais nos tornámos discípulos naquela técnica, convictos de que não basta ver como se faz, é preciso também saber fazer.
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O PIÃO NA LITERATURA ORAL
A minha preocupação com a oralidade da língua, levou-me a pesquisar a presença do pião na literatura oral.
No âmbito do adagiário popular são conhecidos os provérbios: “Minha mãe a castigar-me e eu com o pião às voltas”, “Não anda o pião sem a baraça”, “Onde vai o pião vão o ferrão”. No domínio do calão são conhecidas algumas frases. Assim, “Apanhar o pião à unha” significa “Aproveitar sem hesitação uma oportunidade que surge inesperadamente”, bem como “Pião-das-nicas” tem o significado de “Bode expiatório”. Na toponímia, “Pião” é topónimo de lugares das freguesias de Afife, Estreito, Góis e Lagarteira. No contexto das alcunhas alentejanas, conhecemos as seguintes: PIÃO (Alcunha outorgada a alguém que em criança era jogador exímio de pião - Moura, Elvas, Monforte e Moura), PIÃO (O alcunhado é deficiente de um pé e ao andar parece um pião a rodar – Beja), PIÃO DAS NICAS (Moura) e PIÃO DE XARA (A visada tem perna curta e entroncada). A nível de adivinhas, existem muitas cuja solução óbvia é o pião. Destacamos duas. Na primeira, é o lançador que fala, referindo-se ao enrolamento da guita e ao lançamento do pião:
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“Para andar lhe ponho a capa,
E tirei-lha para andar;
Que elle sem capa não anda,
Nem com ela pôde andar”.
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Na segunda, é o pião que fala:
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“Para andar me põem capa,
Para andar ma vão tirar;
Se não posso andar sem capa,
Com capa não posso andar.”
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Finalmente a nível de cancioneiro popular são bem conhecidas quadras, como estas duas que integram uma popular canção infantil:
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“Eu tenho um pião.
Um pião, que dança.
Eu tenho um pião,
bem na minha mão.”
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“Gira que gira,
O meu pião,
Mas não to dou
Nem por um tostão."
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O BAÚ DAS MEMÓRIAS
Hoje o jogo do pião faz parte do imaginário dos putos da minha geração. Integra o baú espaçoso das nossas memórias de infância. Era um tempo sem televisão, sem vídeos, sem computadores, sem play-stations e sem joysticks. Era um tempo de brincadeiras e jogos, que além de nos divertirem, eram praticadas em grupo e estavam associadas ao exercício físico e ao desenvolvimento mental, nomeadamente da imaginação e da criatividade. Contribuíam assim para a nossa socialização e para o nosso bem-estar físico e mental.
Pelo contrário, as brincadeiras e os jogos de hoje, são jogos programados, que condicionam a imaginação e a criatividade, como convém a este sistema de poder, ao qual interessa a existência de cidadãos acríticos que aceitem passivamente, o que outros pré-determinaram. As brincadeiras e os jogos de hoje, contrariam a socialização da criança, fomentam o individualismo e a agressividade. E é claro, mal da civilização, estão na origem da obesidade infantil. É caso para dizer:
- Oh tempo volta para trás. Dá aos miúdos, os jogos e as brincadeiras que eles perderam…
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BIBLIOGRAFIA
– BRAGA, Teófilo. O Povo Português. Livraria Ferreira. Lisboa, 1885.
– CURVO SEMEDO. Composições Poéticas. Parte II (1903); Parte III (1817). Lisboa.
– EDITORIAL ENCICLOPÉDIA. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Vol. 21. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
- GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
– LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
- LIMA, Augusto Castro Pires de. O Livro das Adivinhas. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1943.
- LIMA, Fernando de Castro Pires de. Adagiário Português. Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho. Gabinete de Etnografia. Lisboa, 1963.
- LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
- MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas.6ª edição. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
– MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 4. 5ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1989.
- NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
- NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
– PORTO EDITORA. Grande Dicionário. Porto Editora. Porto, 2004.
- PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
– RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
– SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
- SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
- VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIII (1933); vol. XXXIV (1934).
  Hernâni Matos
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora".

“Breviário de Eleanor de Portugal” (segundo o uso de Roma), manuscrito e iluminado em Bruges, c. 1500, pelo Mestre dos antigos Livros de Orações de Maximiliano I e de Jaime IV da Escócia, que alguns estudiosos identificam como sendo Gerard Horenbout. MS M.52 fol. 3r, metade superior. Morgan Libray, Nova Iorque. No canto superior esquerdo, dois homens a jogar ao pião.

MARÇO - Iluminura (9,8x13,3 cm) do “Livro de Horas de D. Fernando” [Século XVI (1530-1534)], manuscrito com iluminuras da oficina Simon Bening. Número de Inventário: 01163.07 TC. Número de Inventário do Objecto: 13/3v. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Em baixo, o jogo do pião.

JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena.
JOGO DO PIÃO. Pormenor do quadro JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena.
BRINCADEIRAS INFANTIS (1774) - Gravura de Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726–1801), extraída de “J. B. Basedows Elementarwerk mit den Kupfertafeln Chodowieckis u.a. Kritische Bearbeitung in drei Bänden, herausgegeben von Theodor Fritzsch. Dritter Band. Ernst Wiegand, Verlagsbuchhandlung Leipzig 1909". 
O PIÃO (c/1780) – gravura francesa de Augustin de St. Aubin (1736-1807), obtida a partir de chapa de cobre. Colecção particular.
Desenho de John Siebert, litografado por Joseph Brodtmann, cerca de 1830.
VELHO IRRITADO COM OS PIÕES DAS CRIANÇAS -  Ilustração de John Leech (1817-1864) que colaborou como cartoonista do jornal inglês Punch, entre 1841 e 1864.

O RAPAZ DO PIÃO (s/d). Oléo sobre tela do pintor grego Périclès Pantazis (1873-1884), pertencente a colecção particular.
O RAPAZ DO PIÃO (1906) – Obra do escultor inglês Edwin Roscoe Mullins (1848-1907).
Robert Douglas Spedden, de 6 anos de idade, de Nova Iorque, jogando ao pião a bordo do Titanic sob o olhar atento do pai, Frederic Spedden. Fotografia tirada pelo reverendo padre Frank Brown, na travessia entre Southamptom e Quenstown, antes de o navio, que na sua viagem inaugural atravessava o Atlântico, ter chocado com um iceberg e se ter afundado na madrugada de 15 de Abril de 1912. Dos 2223 pessoas a bordo, sobreviveram 706, entre elas, Robert e os seus pais (Fotografia extraída de http://titanic.pagesperso-orange.fr/).
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo em nitrato. Divisão de   Documentação Fotográfica / IMC. Número de Inventário do Objecto: 00155.001.184 
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo em nitrato. Divisão de Documentação Fotográfica / IMC. Número de Inventário do Objecto: 155.001.122
JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo em nitrato. Divisão de Documentação Fotográfica / IMC. Número de Inventário do Objecto: 155.001.181

JOGAR AO PIÃO – Estampa pertencente ao dossier pedagógico “Ser criança entre 1890 e 1940”, do Ecomuseu da região de Fourmies Trélon, França (Imagem extraída de http://www2.ac-lille.fr/patrimoine-caac/fourmies/enfant/jeux.htm).

sábado, 29 de janeiro de 2011

A caça aos grilos - 2ª edição

Esta é a 2ª edição do post A CAÇA AOS GRILOS, editado em 21 de Fevereiro de 2010, agora revisto, reformulado e ampliado com apontamentos de literatura oral, bem como pela adição de uma nova ilustração e de um novo vídeo.

 Gaiola paras grilos, feita de cana, cortiça e cordão (Colecção do autor).

EU E OS GRILOS
Íamos apanhar grilos cuja toca localizávamos pelo som. Feito isto, o grilo estava perdido. Obrigávamo-lo a sair à força com uma palhinha que metíamos na toca. Porém, se não saía a bem, saía a mal. Para grandes males, grandes remédios. Víamo-nos então forçados a dar uma mijadela na toca, o que tinha o condão de persuadir o grilo a sair. Apanhávamo-lo depois com as mãos postas em concha e metíamo-lo numa caixa de fósforos das grandes, nas quais previamente tínhamos feito uns pequenos respiradouros, não fosse o caso de o bicho, salvo da morte por afogamento, viesse a morrer de asfixia. Depois, já em casa, o grilo era metido numa gaiola, havendo as feitas só de cana e as de arame e cortiça ou de arame e madeira.
Alimentávamos o grilo com folhas de serralha ou de alface, que íamos renovando para o “cantor” ter permanentemente alimentação fresca.
Os grilos que cantavam bem eram chamados de “realistas”.
As gaiolas estavam geralmente junto às janelas.
Tivemos conhecimento que, por vezes, os trabalhadores rurais prendiam na camisa uma gaiola de “bunho” com um grilo lá dentro, que cantava para eles o dia inteiro.
OS GRILOS NA LITERATURA ORAL
A caça aos grilos era uma traquinice dos putos da minha laia e da minha geração. Decorridos mais de cinquenta anos sobre a última mijadela numa toca, resta a saudade dos tempos que já lá vão. Esta, aliada à memória dos nossos ancestrais, tornou-me arqueólogo da oralidade com a missão explícita de escavar os múltiplos géneros da nossa literatura popular. Daí que tenha registado a presença dos grilos no adagiário português:
- “Anda a raposa aos grilos.“
- “Fica melhor a mulher no seu lar, ouvindo o grilo cantar. “
- “Infeliz da raposa que anda aos grilos.“
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos e ao juiz quando vai à forca. “
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos e pior quando anda aos ovos.“
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos.” [13]
- ”Quando a raposa anda aos grilos, a mulher dama fia e o escrivão não sabe quantos são do mês, mal deles três.“
- “Quando a raposa anda aos grilos, mal da mãe, pior dos filhos.“
- “Quando a raposa anda aos grilos, vai mal para a mãe e pior para os filhos.“
- “Quando o grilo grilar, está a seara a aloirar.“
- “Se queres um grilo, vai pari-lo.“
- “Tomai a sorte do grilo, que é comer e cantar.“
A presença dos grilos no reportório das adivinhas portuguesas é vasto e na maioria delas, a solução é obviamente: “Grilo”. Eis uma:  

“Eu canto ao desafio
Como a cigarra no Verão.
Gosto muito de alfaces
E não trabalho ao serão.” [10]   

Eis outra:                        

“Lá no deserto onde vivo
Me vão buscar da cidade.
Nascendo em dias grandes
É mui curta a minha idade.
Cantar sem abrir a boca
É o meu divertimento.
Como leigo que sou
Pertenço a certo convento.
Dão-me uma pequena cela
Onde só posso habitar,
E uma ração em cru
Até na cela acabar.” [5]                           
    
Mais uma:                                 

“Não sou frade, nem sou monge,
Nem sou de nenhum convento;
Meu fato é de franciscano,
E só de ervas me sustento.” [7]  

E ainda mais uma:           
                       
“Seja de noite ou de dia
um pequeno bailarino
oferece serenatas
sem guitarra ou violino.” [1]                    
                  
Todavia a solução da adivinha pode envolver mais que um animal, como acontece nesta:  
 
“Quem é quem é
Que canta
Sem ser com a garganta?” [3]                                  

A solução agora é “A cigarra e o grilo” .                               
     
A adivinha pode, de resto, aparentemente envolver cálculo mental:              

“Bão três grilos p’la estrada fora.
Vem um carro mata um.
Quantos ficam?” [9].                             
                   
Naturalmente que a solução é: “Ficou aquele que morreu. Os outros andaram sempre.”                                                                    
No âmbito das alcunhas alentejanas são conhecidas as seguintes:                             
GRILA - A receptora, em criança, andava sempre aos pulos (Barrancos). [12]
GRILA ESPANHOLA – Alcunha outorgada a um individuo que fala muito e é espanholado (Elvas). [12]
GRILO – Designação atribuída a um indivíduo que gosta muito de cantar (Odemira, Portel, Viana do Alentejo, Santiago do Cacém, Almodôvar, Serpa e Grândola). [12]
GRILO – o alcunhado herdou a alcunha da mãe (Borba). [12]
GRILO – O receptor, em criança, tinha o hábito de apanhar grilos (Cuba e Santiago do Cacém). [12]
GRILO – O visado, em criança, sempre que via uma gaiola com grilos à porta de alguém, começava a logo a assobiar (Moura). [12]
GRILO – Os visados são de baixa estatura e muito cantadores (Alandroal). [12]                     
A nível de gíria portuguesa são conhecidos os termos:                                 
“Grilo = Relógio = Apito” [2]    
“Grilo = Telefone = Relógio de bolso = Coração” [11] [8]
“Grila = Ponta de Cigarro = Pirisca” [11] [6]
Finalmente, no sector da toponímia são de assinalar os seguintes topónimos:
- “GRILA – Lugar da freguesia de S. Pedro, concelho da Covilhã.“ [4]
- “GRILO – Freguesia do concelho de Baião.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de Fornos, concelho de Castelo de Paiva.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de S. Vicente do Paul, concelho de Santarém.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de Vale de Figueira, concelho de Santarém.“ [4]
- “GRILOS - Lugar da freguesia Arazede, concelho de Montemor-o-Velho.“ [4]
A TERMINAR
Só os grilos machos produzem sons, o que fazem visando atrair as fêmeas para a reprodução. Para o efeito, possuem uma série de pelos nas bordas das asas, alinhados como pentes, produzindo sons quando roçam uma asa contra a outra. O som emitido tem a frequência de 4 as 5 KHz e pode ser ouvido a quilómetro e meio de distância.
Em muitos paises como Portugal, o grilo sempre foi considerado como animal de estimação, sendo mantido em cativeiro dentro de gaiolas, pelo que como param de cantar quando alguérm se aproxima, funcionam como detectores de ladrões.
A Biblia contém referências ao grilo:
- “Poderão comer toda espécie de gafanhotos e grilos.” [Levítico 11:22]
- “Aí o fogo te devorará, a espada te exterminará; ela te devorará como o gafanhoto, ainda que fosses numeroso como o gafanhoto, e te multiplicasses como o grilo.” [Naum 3:15]
Nalguns países, os grilos são criados em larga escala para serem vendidos como alimento vivo e serem usados como isca em pescarias ou consumido como iguaria em restaurantes exóticos. Pela nossa parte, habituados à excelência da gastronomia alentejana, dispensamos tais iguarias e preferimos ouvir cantar os grilos nos campos e em liberdade, o que é cada vez mais difícil, dado o uso intensivo de pesticidas e herbicidas. A vida está cada vez mais difícil no planeta Terra, mesmo para os grilos.
BIBLIOGRAFIA 
[1] - ARTMUSICA .
[2] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[3] – CARDOSO, Fernando. Novíssimas Flores para Crianças. Editora Portugal Mundo.Lisboa,
[4] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[5] - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[6] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[7] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[8] - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[11] - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[12] – RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[13] - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1841.
[14] - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.    



Gaiolas de bunho, cana e arame (Colecção de Manuela Mendes).

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