Presépio Alentejano. Peça da autoria do jovem barrista estremocense, Ricardo Fonseca.
É sabido que pela sua paisagem própria, pelo carácter do povo alentejano, pelo trajo popular, pela gastronomia, pela arte popular, pelo cancioneiro popular, pelo cante, pela casa tradicional, o Alentejo é uma região com uma identidade cultural própria. Esta deve ser transmitida duma forma clara pela genuína arte popular. Começa logo pelos materiais empregues, como é o caso do barro utilizado pelos barristas desta terra de Além Tejo, do termo de Estremoz. Exactamente o mesmo barro, que de acordo com o Génesis, Deus terá usado para modelar o primeiro homem. Barro sobre o qual, António Simões poetizou em 1983:
Barro incerto do presente
Vai moldar-te a mão do povo
Vai dar-te forma diferente
P´ra que sejas barro novo!
É com a magia das mãos, auxiliada por utensílios rudimentares, que os barristas, homens e mulheres do povo, corporizam a imaginária que lhes vai na alma e que decoram com as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.
É o caso do “Presépio Alentejano” do jovem barrista Ricardo Fonseca. Trata-se dum Presépio de três figuras, com a Sagrada Família representada em contexto alentejano.
São José é um barbado pastor que se protege do frio com um chapéu aguadeiro, calças de burel, camisa xadrez de flanela e um capote também de burel, com gola de pele de ovelha. Tem os pés protegidos por botas de atanado, a mão esquerda enfiada no bolso das calças, por causa do frio, enquanto que a direita empunha um cajado, pois o Menino Jesus tem que ser protegido e mais vale prevenir que remediar. Lá diz o rifão: Apanha com o cajado quem se mete onde não é chamado.
O Menino Jesus está deitado em cima das palhinhas contidas num cesto de vime, daqueles que são vulgares no Alentejo e encontra-se coberto por uma mantinha xadrez. Lás diz o rifão: A fome e o frio nunca criaram infante. O Menino parece ser irrequieto, já que tem os pés destapados, o que parece preocupar a Mãe, conforme revela a postura das Suas mãos. Nossa Senhora é representada como uma mulher do povo com avental de trabalho e saia azul até aos pés. Usa lenço florido na cabeça e um xaile sobre as costas e por cima da blusa de flanela florida, uma vez que o frio de Dezembro não é para brincadeiras. Lá diz o rifão: Em Dezembro treme de frio cada membro.
O chão é de laje, rocha xistosa, vulgar na região, usada para atapetar a entrada dos montes e pavimentar o seu interior. A horizontalidade do chão evoca a planura da charneca alentejana.
A contextualização do Presépio é reforçada pela fachada do monte, que está por detrás da Sagrada Família. O telhado é de telha romana e a parede está caiada de branco. Lá diz o cancioneiro popular alentejano:
Nas terras do Alentejo
É tudo tão asseado...
As casas e o coração,
Sempre tudo anda lavado...
Rodapé e ombreira da janela decorada com azul do Ultramar, azul que tem a ver com a identidade cultural alentejana e possui um valor simbólico: o azul exprime o desejo de paz e de calma, próprio dos alentejanos e o azul límpido do céu, característico das claridades do Sul, o que é ainda reforçado pelas várias tonalidades de azul do vestuário de Nossa Senhora.
Curiosa a representação de uma parreira sob o beiral do monte. Na minha opinião, trata-se de uma alegoria à actual importância económica da vinicultura no Alentejo, a qual transformou em vinhas aquilo que em tempos foram campos de semeadura de trigo. Os cachos, esses são de uvas pretas, daquelas com que se produz o vinho tinto e espesso que o alentejano, legítimo herdeiro da cultura báquica mediterrânica, gosta de mastigar nos seus rituais báquicos.
Do exposto se conclui que o “Presépio Alentejano”, de Ricardo Fonseca, é uma bem conseguida peça de genuína arte popular alentejana. Com ela originou uma mudança de paradigma nos presépios, tal como nos anos quarenta do século XX, o conseguiu Mariano da Conceição (1903-1959), através da criação do “Presépio de Trono ou de Altar”, hoje uma peça clássica da barrística popular estremocense. Pela sua enorme beleza e pela matriz identitária que dele irradia, o “Presépio Alentejano” está igualmente condenado a ser uma peça clássica da barrística popular estremocense.
Parabéns Ricardo!
Publicado inicialmente a 20 de Dezembro de 2013