segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Estremoz e o Feriado Municipal



A 31 de Agosto de 2021, completaram-se 95 anos sobre a elevação de Estremoz à categoria de cidade, na sequência do Decreto n.º 12.227, publicado no Diário do Governo desse dia.

Dia da Cidade
Seria expectável que a 31 DE AGOSTO de cada ano, fosse comemorado o DIA DA CIDADE, assinalado como Feriado Municipal, por ter sido nesse dia que a "Notável Villa de Estremoz" foi objecto de ELEVAÇÃO à categoria de CIDADE.
Todavia tal não acontece e o Dia da Cidade é assinalado com Feriado Municipal na Quinta-Feira da Ascensão e Dia da Espiga, data móvel do calendário litúrgico, importante para os cristãos e que ocorre no quadragésimo dia após a ressurreição de Jesus, assinalando a sua Ascenção (Elevação) ao Céu.
Apesar de toda a respeitabilidade de que é merecedora a efeméride religiosa, isso não justifica de modo algum que a data seja considerada Dia da Cidade e Feriado Municipal, em detrimento da data de 31 de Agosto, em que Estremoz ascendeu e muito bem à categoria de cidade.

O seu a seu dono
Perante a dúvida que possa surgir nalguns espíritos, creio ser aqui aplicável a sentença latina “Redde Cæsari quæ sunt Cæsaris, quæ sunt Dei, Deo”, cujo significado é “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Trata-se de uma frase atribuída a Jesus nos evangelhos sinópticos (Mateus 22:21), Marcos 12 (Marcos 12:17) e Lucas 20 (Lucas 20:25), quando lhe perguntaram se devia pagar o tributo a César e cujo sentido é: “Dê-se a cada um aquilo a que tem direito”.
A meu ver, a comemoração da Ascensão de Jesus ao céu, é de âmbito cristão. Pelo contrário, a comemoração da elevação de Estremoz à categoria de cidade, é do foro cidadão. Dito por outras palavras: “A cada um o que é seu” (“Unicuique suum”).

Uma sugestão
Creio que que o Executivo Municipal saído das eleições autárquicas do próximo dia 26 de Setembro, poderia e deveria reflectir sobre este assunto. Aqui fica a sugestão.

Publicado inicialmente a 1 de Setembro de 2021




 

domingo, 31 de agosto de 2025

Provérbios de Setembro


Mês de Setembro (c. 1510). Iluminura do miniaturista flamengo Gerard
Horenbout (c.1465 - c. 541). Breviário Grimani. Manuscrito (Ms. lat. I 99),
 28 x 21,5 cm. Biblioteca Marciana, Veneza.

- Abril, frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado. Agosto, debulhar, Setembro, vindimar.
- Agosto amadura, Setembro derruba.
- Agosto amadurece, Setembro vindimece.
- Agosto arder, Setembro beber.
- Agosto debulhar, Setembro vindimar.
- Agosto madura, Setembro vindima.
- Agosto tem a culpa, e Setembro leva a fruta.
- Agosto tem a culpa, Setembro leva a fruta,
- Águas verdadeiras, por S. Mateus as primeiras.
- Aí pela Senhora da Ajuda, às sete, é sol-posto.
- Arranja bom Setembro, com a burra fico eu.
- Arranja bom Setembro, com a burra te fico eu.
- Chovendo no S. Miguel, faz conta das ovelhas que os borregos são teus.
- Chovendo no São Miguel, faz conta das ovelhas que os borregos não são teus.
- Chuvas verdadeiras, em Setembro as primeiras.
- Corra o ano como for, haja em Agosto e Setembro calor.
- Dia de São Mateus, vindimam os sisudos e semeiam os sandeus.
- Em 29, São Miguel fecha as asas.
- Em Agosto secam os montes e em Setembro as fontes.
- Em Dia de São Mateus, começam as enxertias.
- Em Dia de São Mateus, vindimam os sisudos e semeiam os sandeus.
- Em dia de São Matias, começam as enxertias.
- Em não chovendo por São Mateus, faz conta com as ovelhas, que os borregos não são teus.
- Em Setembro ardem os montes e secam as fontes.
- Em Setembro ardem os montes, secam as fontes.
- Em Setembro cuida da vindima que olhar para a uva não mata a sede.
- Em Setembro lavra, semeia e colhe que é mês para tudo.
- Em Setembro palha no palheiro e meninas ao candeeiro.
- Em Setembro planta, colhe e cava, que é mês para tudo.
- Em Setembro ramo curto, vindima longa.
- Em Setembro S. Mateus, não peças chuva a Deus.
- Em Setembro secam as fontes e a chuva leva as pontes.
- Em Setembro secam as fontes e as chuvas lavam as pontes.
- Em Setembro semeia o teu pão mas escuta o que o teu vizinho diz, porque no dia oito o centeio deve estar da altura da pena da perdiz.
- Em Setembro semeia o teu pão.
- Em Setembro tem Deus a mesa posta.
- Em Setembro, andando e comendo.
- Em Setembro, ardem os montes e secam as fontes.
- Em Setembro, ardem os montes e secam as fontes.
- Em Setembro, ardem os montes, secam-se as fontes.
- Em Setembro, cara de poucos amigos e manhã de figos.
- Em Setembro, colhendo e comendo.
- Em Setembro, palha no palheiro e meninas ao candeeiro.
- Em Setembro, palhas ao palheiro, meninos ao candeeiro.
- Em Setembro, perdizes pequenas só das agostinhas me lembra.
- Em Setembro, planta, colhe e cava que é mês para tudo.
- Em Setembro, S. Miguel soalheiro enche o celeiro.
- Em Setembro, vai andando e correndo, mas às vezes também ardem as moitas e as fontes a secar vêm.
- Em Setembro, vai andando e vai comendo.
- Em tempo de figos não há amigos.
- Em vinte e nove, S. Miguel fecha as asas.
- Guarda prado, criarás gado.
- Lua Nova setembrina sete vezes domina.
- Não peças a morte a Deus, nem a chuva por São Mateus.
- Janeiro gear, Fevereiro chover. Março encanar, Abril espigar, Maio engrandecer, Junho ceifar, Julho debulhar. Agosto engavelar, Setembro vindimar. Outubro revolver. Novembro semear. Dezembro nascer.
- Janeiro gear, Fevereiro chover. Março encanar, Agosto recolher. Setembro vindimar.
- Janeiro gear. Fevereiro chover. Março encanar, Abril espigar, Maio engrandecer. Junho ceifar, Julho debulhar, Agosto engavelar. Setembro vindimar, Outubro revolver. Novembro semear, Dezembro nasceu Deus para nos salvar.
- Lua nova setembrina, sete luas domina.
- Lua nova trovejada, trinta dias é molhada e se for a de Setembro até Março irá chovendo.
- No dia oito de Setembro abalam as merendas, vêm os serões.
- No pó semeia que Setembro to pagará.
- No São Mateus vindimam os sisudos e semeiam os sandeus.
- Nunca se viu nem se há-de ver, Feira Franca sem chover.
- Nuvens em Setembro: chuva em Novembro e neve em Dezembro.
- O São Miguel ou seca as fontes ou leva açudes e pontes.
- Para boas colheitas, pede bom tempo a Deus nas têmporas de São Mateus.
- Para que o ano não vá mal, hão-de encher os rios três vezes entre S. Mateus e o Natal.
- Para vindimar deixa Setembro acabar.
- Para vindimar deixa o Setembro acabar.
- Pela senhora da Ajuda, às sete o sol é posto.
- Pelo S. Mateus não peças chuva a Deus.
- Pelo S. Mateus, pega nos bois e lavra com Deus.
- Pelo São Bernardo seca-se a palha pelo pé.
- Pelo São Gil adoba o teu candil.
- Pelo São Mateus deixa os taralhões.
- Pelo São Mateus faz contas das ovelhas, que os borregos são teus.
- Pelo São Mateus munge as vacas e lavra com Deus.
- Pelo São Mateus não peças água nem morte a Deus.
- Pelo São Mateus não peças chuva a Deus.
- Pelo São Mateus vindimam os sisudos, semeiam os sandeus.
- Pelo São Mateus, conta as ovelhas que os cordeiros são teus.
- Pelo São Mateus, pega nos bois e lavra com Deus.
- Pelo São Mateus, vindimam os sisudos e varejam os sandeus.
- Pelo São Miguel, estão as uvas como mel.
- Pelo São Miguel dá-se as figueiras ao rabisco.
- Pelo São Miguel os figos são mel.
- Pelo São Miguel, estão as uvas como mel.
- Por São Mateus, faz conta das ovelhas que os borregos são teus.
- Por São Mateus pega no arado e lavra com Deus.
- Por São Mateus, pega nos bois e lavra com Deus.
- Quando não chove depois do São Mateus, é por milagre de Deus.
- Quando não chove por São Mateus, é por milagre de Deus.
- Quem planta no S. Miguel, vai à horta quando quer.
- Quem planta no São Miguel, vai à horta quando quer.
- Quem se aluga no S. Miguel, não se senta quando quer.
- São João e São Miguel passados, tanto manda o amo como o criado.
- São Miguel das uvas, tanto tardas e tão pouco duras!
- São Miguel passado, tanto manda o amo como o criado.
- São Miguel passado, todo o amo é mandado.
- São Miguel soalheiro, enche o celeiro.
- Se acaso em Setembro a cigarra cantar, não compres trigo para o vir a guardar.
- Se chover pelo São Mateus, cuida das ovelhas que os borregos são teus.
- Se em Setembro a cigarra cantar, não compres trigo para guardar.
- Se houvesse dois S. Miguéis no ano, não havia moço que parasse no amo.
- Se por acaso em Setembro a cigarra cantar, não compres trigo para o vires a guardar.
- Setembro a comer e a colher.
- Setembro cara de poucos amigos e manhã de figos.
- Setembro cara de poucos amigos, cara de figos.
- Setembro é o Maio do Outono.
- Setembro matou a mãe à sede.
- Setembro molhado, figo estragado.
- Setembro ou seca as fontes ou leva as pontes.
- Setembro ou seca as fontes, ou leva açudes e pontes.
- Setembro que enche o celeiro dá triunfo ao rendeiro.
- Setembro que enche o celeiro, salva o rendeiro.
- Setembro seca os montes, rios e fontes.
- Setembro, andando e comendo.
- Setembro, cara de poucos amigos e manhã de figos.
- Setembro, comendo e colhendo.
- Setembro, molhado, figo estragado.
- Setembro, ou seca as fontes ou leva açudes e pontes.
- Setembro, ou seca as fontes ou leva as pontes.
- Setembro, ou seca os montes ou lava as fontes.
- Setembro, ou seca os montes ou leva as fontes.
- Setembro, que enche o celeiro, dá triunfo ao rendeiro.
- Setembro, vindimar.
- Sol pelo São Mateus, chuva até ao Menino Deus.
- Terra de gramão, terra de pão.
- Trinta dias tem Novembro, Abril, Junho e Setembro; de vinte e oito, só há um, e os mais têm trinta e um.
- Vai-te com Deus e S. Miguel com as almas.
- Vindima molhada, pipa depressa despejada.

Publicado inicialmente em 19 de Setembro de 2012

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Frade a Cavalo


Frade a Cavalo (a três quartos). José Moreira (1926-1991).

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Outros frades

Para Jorge da Conceição,
 poeta do barro,
que diz com as mãos,
 o que eu não consigo
 modelar com palavras.

Intróito
Desde o séc. XII que Estremoz foi palco de actividades das ordens religiosas que por aqui proliferaram, conforme nos é revelado pela arquitectura religiosa citadina, que inclui 6 complexos arquitectónicos: o Convento de S. Francisco (séc. XIII), o Convento de S. João da Penitência, da Ordem de Malta (séc. XVI), o Convento dos Agostinhos de N.ª S.ª da Consolação (séc. XVII), o Convento de Santo António dos Capuchos (séc. XVII), o Convento de N.ª S.ª da Conceição dos Congregados do Oratório de S. Filipe Néri (séc. XVII) e o Convento de S. João de Deus (séc. XVIII) (6). Cada uma destas ordens tinha a sua própria missão, a sua área de implantação, poder económico e social, bem como capacidade de influência política.
Entre os Conventos foi-se definindo e consolidando a malha urbana, espécie de palco por onde transitavam os múltiplos actores da farsa humana: Clero, Nobreza e Povo, cada um deles desempenhando o seu próprio papel, nem sempre bem visto pelos outros.
O jurisconsulto francês Charles Loiseaux (1566-1627) no seu “Traite des Ordres et Simples Dignitez” (5), referindo-se a cada uma daquelas classes e por aquela sequência considera que: "Uns dedicam-se especialmente ao serviço de Deus, outros a defender o Estado pelas armas, outros a alimentá-lo e mantê-lo pelo exercício da paz."
A Literatura de Tradição Oral
No caso particular dos frades e para além da sua vida pública, havia também a sua vida privada intramuros dos Conventos e longe dos olhares da plebe. O desconhecimento dessa vida privada estará decerto na origem da fértil imaginação popular associar a figura dos frades a comezainas e libações frequentes ou seja aquilo que no conceito popular constitui a “boa vida”.
Os frades e a sua suposta vida integram há muito e com alguma abundância os registos dos múltiplos domínios da literatura de tradição oral: cancioneiro, lendas, narrativas, lengalengas, adivinhário, toponímia, alcunhas, gíria e adagiário. No caso deste último, são conhecidos adágios que reflectem a suposta boa vida dos frades: “Comer que nem um abade”, “A ordem é rica e os frades são poucos” e “Migalhas de frade, muitas vezes sabem bem”. Estes alguns dos registos fradescos que no decorrer dos séculos têm sido transmitidos de geração em geração, por tradição oral. Tais registos integram há muito e por direito próprio a Mitologia Popular Portuguesa.
Face ao exposto não é de estranhar que a barrística popular de Estremoz tenha perpetuado no barro uma figura que se crê remontar ao séc. XIX (7) e que representa um Frade a Cavalo.
Morfologia e cromática do Frade a Cavalo          
A figura mede cerca de 20 cm e representa um Frade a Cavalo, muito direito, olhando em frente e segurando nas mãos um odre de vinho, negro com costura zarcão e tampa amarelada, configurando madeira. O frade enverga o tradicional hábito castanho com capucho. Curiosamente, as mangas do hábito apresentam orla e tripla abotoadura amarela, cor que também se observa listada no capuz. A abertura superior do hábito apresenta listas castanhas e zarcão, dispostas alternadamente. As vestes integram ainda um cordão amarelo, atado à cintura, com duas pontas pendentes para o lado esquerdo do cavaleiro.
Na cabeça, dois pontos negros representam os olhos, encimados por dois traços castanhos que figuram as pestanas e as sobrancelhas. O nariz em relevo, tem a forma de prisma triangular e a boca é interpretada por uma linha vermelha. Em cada uma das faces é visível uma roseta alaranjada. O cabelo é castanho-escuro, encobre as orelhas e está parcialmente coberto por um chapéu (chapéu aguadeiro) negro, com copa semi-esférica, dobrada a meio e aba circular, totalmente virada para cima. Da parte posterior da copa partem dois ramos de uma fita amarela listada de vermelho e verde nas pontas, pendentes para baixo.
O frade calça botas negras com esporas imitando metal e fixadas às botas por aquilo que simula serem fivelas metálicas assentes no peito da bota.
O frade está montado num cavalo cuja cor afigura pelagem de cor creme, malhada de negro nas patas dianteiras e no topete (franja). A crina e a rabada do quadrúpede apresentam uma série de incisões pintadas a negro.
A cabeça do equídeo está levantada para cima e nela são visíveis duas orelhas cónicas levantadas e viradas para trás, dois olhos negros pintados em círculos brancos, uma linha incisa de cor vermelha que imita a boca e dois pontos incisos que lhe são paralelos, arremedando as narinas bem abertas.
As patas do bicho terminam naquilo que aparentam ser cascos de cor negra.
Sobre o dorso da montada é visível uma manta creme listada de vermelho e verde, na qual supostamente se apoia a sela onde o cavaleiro está sentado. Sob o hábito, as pernas arqueadas do cavaleiro acompanham a curvatura do dorso do animal e o seu contorno está destacado por dois traços zarcão, um à frente e outro atrás de cada perna. Na parte posterior do dorso é observável aquilo que aparenta ser uma manta de viagem, castanha, enrolada. 
O arreio do animal é constituído por uma cabeçada de cor castanha e rédeas da mesma cor que assentam no cachaço do bicho.
O binómio frade-cavalo assenta numa base prismática rectangular de topo verde e orlada de zarcão.
As marcas identitárias de José Moreira
As figuras manufacturadas por José Moreira ostentam marcas identitárias indeléveis que o permitem identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas é definido por sobrancelhas e pestanas paralelas, sendo estas últimas tangentes às meninas do olho, que sendo maiores que noutras representações, tornam o olhar mais expressivo.
Nas figuras zoomórficas e relativamente a outras representações, os cavalos têm uma cabeça maior, um olhar mais vivo, as narinas e a boca estão mais bem definidas e os focinhos estão arrebitados, como que procurando afastar-se do pescoço.
Estando o equídeo a marchar para o lado esquerdo do observador, a crina está totalmente virada para o lado do observador, o mesmo se passando com a rabada, comprida e a roçar o chão.
A base em que assenta esta figura tem um topo integralmente verde, ao contrário de outras representações que a têm pintalgada de branco, amarelo e zarcão.
Leituras do Frade a Cavalo
É sabido que um cavalo se exprime não só por sons, mas também através da linguagem corporal, transmitindo-nos sinais que são inteligíveis. A meu ver, o barrista comunicou à peça alguns desses sinais, que no seu conjunto nos relatam o contexto por ele retratado e perpetuado no barro.  
A cabeça do equídeo levantada significa que o animal quer ver à distância, postura associada a uma situação de alarme, porque o perigo sente-se à distância.
As orelhas levantadas e viradas para trás significam que a montada está atenta a algo que se passa atrás que é a presença do cavaleiro e traduzem submissão e obediência à voz de comando daquele.
As narinas dilatadas são indício de atenção.
A rabada inclinada para o lado do observador dá a sensação de movimento. Bater com a rabada é um movimento que o quadrúpede utiliza para afastar os insectos do corpo e que por isso é observável sempre que o animal está insatisfeito.
Resumindo: o barrista quis representar um cavalo atento, submisso à voz do cavaleiro, mas algo insatisfeito.
Por sua vez, o cavaleiro revela inteira confiança na montada, uma vez que não empunha as rédeas, as quais estão apoiadas no cachaço do bicho. Toda a destreza do frade, supostamente em viagem, parece estar concentrada em segurar nas mãos um odre de vinho para as suas necessidades, configurando os mesmos cuidados com que durante a liturgia o celebrante segura o ostensório.
O que dizem os estudiosos
Para Hugo Guerreiro (4) “Neste conjunto, o Frade a Cavalo agarrado ao odre do vinho, sobressai como expressão de anticlericalismo, comum à época no universo republicano e que teve grande expressão no Figurado produzido por Bordalo Pinheiro. Foi usado para ridicularizar e assim desacreditar o clero.”
Já para Joaquim Vermelho (7), “A figura está tratada de forma naturalista sem denodar qualquer sentido crítico ou caricaturial, não seguindo o figurino da época do frade “gordo e anafado, bem comido e bem bebido”.        
Revejo-me inteiramente na interpretação de Joaquim Vermelho e discordo inteiramente da interpretação de Hugo Guerreiro. Na verdade, na figura em estudo cuja origem remonta ao séc. XIX, não consigo vislumbrar qualquer expressão de anticlericalismo de pendor republicano. Apenas consigo observar a perpetuação no barro de uma das múltiplas componentes da mitologia popular sobre frades: a boa vida.  

BIBLIOGRAFIA
(1) - Como entender os sinais e o comportamento dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 12 de Novembro de 2019]. Disponível em: http://www.sanoldog.com.br/como-entender-os-sinais-e-o-comportamento-dos-cavalos/ .  [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(2) - DIAS DA CUNHA, Sandra. A comunicação do cavalo. [Em linha]. [Editado em 16 de Novembro de 2018]. Disponível em: http://www.equitacao.com/artigos/2176/10/a-comunicacao-do-cavalo/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(3) - Formas de expressão e sinais da comunicação dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 21 de Junho de 2019]. Disponível em: https://www.comprerural.com/formas-de-expressao-e-sinais-da-comunicacao-dos-cavalos-eles-sao-muito-sensitivos/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(4) - GUERREIRO, Hugo. Figurado de Estremoz : produção património imaterial da humanidade. Afrontamento. Porto, 2018 (pág. 95). 
(5) ~ LOISEAUX, Charles. Traite des Ordres et Simples Dignitez. Abel l’Angeler. Paris, 1610 (pág. 74).
(6) - MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 2018 (pág. 68).
(7) - VERMELHO, Joaquim. Sobre as cerâmicas de Estremoz – Arquivos da Memória. Edições Colibri/Câmara Municipal de Estremoz. Lisboa, 2005 (pág. 104).

Publicado em 28 de Agosto de 2020


Frade a Cavalo (de frente). José Moreira (1926-1991).

 
Frade a Cavalo (de trás). José Moreira (1926-1991).

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Olaria enfeitada


Fig. 1 - Cantarinha enfeitada. Irmãs Flores (2000).


A olaria enfeitada não integra o figurado de Estremoz. Trata-se de peças produzidas na roda 
pelos oleiros e enfeitadas “à maneira de Estremoz” e na qual predominam cores como o zarcão, o azul, o verde e o vermelho. São peças com dupla autoria, que ostentam por vezes na base, as marcas dessa dupla autoria.
Na olaria enfeitada é possível distinguir dois sub-conjuntos com funcionalidades distintas:
- VASILHAME ENFEITADO: Cantarinha enfeitada (Fig. 1), Púcaro enfeitado ou Fidalguinho (Fig. 2), Terrina enfeitada (Fig. 3), Chávena e pires enfeitados (Fig. 4) e Vaso enfeitado (Fig. 5);
- ILUMINÁRIA ENFEITADA: Candelabro enfeitado (Fig. 6), Castiçal enfeitado (Fig. 7) e Palmatória enfeitada (Fig. 8).
A cantarinha enfeitada e o púcaro enfeitado integram a Sistemática dos Bonecos de Tradição por serem comuns à produção de todos os barristas. Já exemplares como Terrina enfeitada, Chávena e pires enfeitados, Vaso enfeitado, Candelabro enfeitado, Castiçal enfeitado e Palmatória enfeitada, são incluídos na Sistemática dos Bonecos da Inovação, por não serem comuns à produção de todos os barristas.


Publicado em 2 de Agosto de 2019

 Fig. 2 - Púcaro enfeitado (ou Fidalguinho). Olaria Alfacinha (sd).


Fig. 3 - Terrina enfeitada. Olaria Alfacinha (sd).

Fig. 4 - Chávena e pires enfeitados. Autor desconhecido (finais do séc. XIX).
Colecção Armando Alves.
  
 Fig. 5 - Vaso enfeitado. Mariano da Conceição (sd).
Colecção Jorge da Conceição.

 Fig. 6 - Candelabro enfeitado. Olaria Alfacinha (sd).
Colecção Irmãs Flores.

 Fig. 7 - Castiçal enfeitado. Irmãs Flores (2018).

Fig. 8 - Palmatória enfeitada. Liberdade da Conceição (1983).

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

A olaria tradicional de Estremoz é de se lhe tirar o chapéu


Moringue

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A olaria tradicional de Estremoz é extremamente rica em múltiplos aspectos. Na verdade, observando-a como um todo, revela-se de imediato uma grande variedade de funcionalidades, tipologias, morfologias, tipos de decoração e tamanhos.

Assim, por exemplo, a funcionalidade “recipiente para água”, depara-se imediatamente com a possibilidade de assumir várias tipologias: ânfora, barril, bilha, cafeteira, cântaro, cantil, copo, depósito, garrafa, jarro, moringue, pote, púcaro, reservatório, tronco. A qualquer uma destas tipologias, podem corresponder múltiplas morfologias, dependendo do modo como a volumetria do objecto olárico foi preenchendo o espaço tri-dimensional, à medida que o mesmo crescia na roda, até atingir a sua forma final. Daí que seja notável, por exemplo, a diversidade morfológica dos moringues. A uma tal variedade há que acrescentar a multiplicidade introduzida pelo tipo de decoração escolhido: pedrado, riscado, polido, relevado e suas possíveis combinações.

Creio que o leitor perceberá agora a razão de ser do presente texto, assim como perceberá decerto a dureza da tarefa hercúlea que constitui a recuperação da extinta olaria tradicional de Estremoz. 

Hernâni Matos

Publicado em 14 de Setembro de 2024

Pote com tampa

Depósito com tampa


Cafeteira

Ânfora


Bilha


Garrafão

Tronco

domingo, 24 de agosto de 2025

Berço com bébé, assobio de Maria Luísa da Conceição

 


Fig. 1 - Maria Luísa da Conceição. Berço com bébé (Fig. de assobio).


Preâmbulo
A figura de assobio que é objecto do presente escrito (Fig.1) foi adquirida por mim há cerca de 20 anos à barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), no decurso de uma visita à sua oficina.
Trata-se de um exemplar invulgar e de produção restrita que foi criado a pedido de uma cliente para ser oferecida como lembrança duma festa de baptizado aos convidados. Terão sobrado alguns assobios e daí eu ter o privilégio de possuir um na minha colecção, à semelhança do que se passa com Jorge da Conceição, filho da barrista.

Descrição
Base achatada, de secção elíptica, pintada de branco, com o tubo de sopro numa das extremidades, na cor natural do barro. Na base (Fig. 2), as marcas: carimbo “ESTREMOZ” (2 cm x 0,8 cm), seguido da marca manuscrita “M. Luísa”.
O motivo central do assobio assente na base descrita é um berço de bébé, de fundo cor de rosa e supostamente para menina, dada a convenção tradicional de cores: cor de rosa (menina), azul (menino). A parte lateral do berço apresenta superfície ondulada, sem decoração alguma. A coberta do berço e o toldo encontram-se decoradas com o que configuram ser flores de corola branca e pétalas azuis. O topo da parte frontal do berço ostenta um laço decorativo em branco. A extremidade da coberta do berço virada para o interior do mesmo encontra-se oculta pela dobra de um lençol branco, junto ao qual assomam as mãozinhas do bébé e a cabecinha assente na almofada, também cor de rosa.

Epílogo
O berço com bébé é uma das mais invulgares criações que constituem o legado da barrista Maria Luísa da Conceição. Daí eu me congratular por ser um dos raros possuidores desta notável figura de assobio.

Hernâni Matos

Fig. 2 - Na base, as marcas: carimbo “ESTREMOZ” (2 cm x 0,8 cm), seguido da marca
manuscrita “M. Luísa”.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

79 voltas ao Sol

 

O passageiro terrestre com Fátima, sua mulher e Catarina, sua filha.

Escravo involuntário da atracção gravitacional, viajo pelo cosmos como passageiro terrestre. A minha velocidade translacional em relação ao Sol é de 30 Km/s ou seja 10.000 vezes mais lenta que a luz do Sol que nos ilumina. Não sou dado a grandes velocidades. Vão perceber porquê.

No passado dia 19 de Agosto concluí o meu 79º passeio solar. Convenhamos que começa a ser monótono, repetitivo e mesmo cansativo. Com a agravante de ter plena consciência de que como passageiro terrestre a duração do meu passeio ser finita, ainda que indeterminada.

O meu corpo em desagregação lenta mas inexorável como todos os outros, é regido pelas leis da Física Quântica. Daí que quando a minha viagem chegar ao fim, cumprir-se-á uma espécie de lei de Lavoisier generalizada, já que “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A minha estrutura orgânica decompor-se-á numa miríade de átomos de elementos constitutivos da Tabela Periódica, com especial predominância de átomos de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, cálcio, fósforo, potássio, enxofre, sódio, cloro e magnésio. Libertos do meu corpo irão desempenhar novos papéis, novas funções, novas missões, sabe-se lá quais. A minha decomposição orgânica será também acompanhada da libertação de energia que mantinha coesa a minha estrutura orgânica. Também ela irá desempenhar novos papéis, novas funções, novas missões.

O fim da viagem cósmica é um acto de libertação das amarras gravitacionais da matéria e do espaço-tempo-energia.  A partir daqui há um universo de crenças que não quero ferir por respeito às crenças que constituem um direito individual de cada um. Para além disso esta conversa já vai longa.

Como passageiros terrestres desta viagem cósmica em que nos vemos envolvidos, cumprimos rituais tribais cuja origem se perdem nos alvores do tempo. Uma delas é assinalar anualmente cada volta ao Sol em convívio e comunhão de espírito com a Família e amigos.

No dia em que completei a mais recente volta ao Sol, optei por me cingir à companhia da célula familiar e lá fui com a Fátima, minha mulher e a Catarina, minha filha, rumo à Mercearia Gadanha, prestigiado restaurante estremocense, que figura no Guia Michelin e onde fomos principescamente atendidos. Abstenho-me de revelar a ementa, mas asseguro-vos que o ritual tribal de comemorar mais uma volta completa ao Sol, foi deveras gratificante e reconfortante.

 Hernâni Matos


Imagem recolhida com a devida vénia no website da Gadanha Mercearia, em Estremoz.