sábado, 24 de abril de 2010

Igreja de Santo André - História dum Crime


Foto de C.J. Walowski (1891). 

“Igreja de Santo André – História de Um Crime”, foi o título de uma exposição fotográfica, que a Associação Filatélica Alentejana, levou a efeito no Centro Cultural Dr. Marques Crespo, em Estremoz, em Novembro-Dezembro de 2009. Essa exposição teve por finalidade relembrar aos mais novos, aquele que foi, sem sombra de dúvida, o maior crime perpetrado contra o património construído em Estremoz – a demolição da Igreja de Santo André, no ano de 1960. Mas foi também, uma denúncia e um libelo acusatório contra aqueles que foram responsáveis por esse crime: o regime de Salazar, então no poder e em força, pois ainda não eclodira a guerra colonial.
Os meus votos então foram no sentido de aquela exposição constituir um indicador da nossa firme determinação dum julgamento moral à revelia, daqueles que foram responsáveis por esse hediondo crime.
Vejamos em breves palavras, a história do crime que, na verdade, foi a demolição da Igreja de Santo André, em Estremoz.
Diz-nos Marques Crespo em “Estremoz e o seu Termo Regional”, que a Igreja de Santo André, de uma só nave, sete capelas e exterior majestoso, viu abater com muito estrondo a sua abobada, no dia 8 de Outubro de 1940, cerca das 22 horas e 30 minutos, não tendo ocorrido felizmente qualquer desastre pessoal. A partir daí, o culto e a actividade paroquiana passaram a ser exercidos no vizinho templo do Convento de S. Francisco. Diz-nos ainda Marques Crespo, que desde logo foram tentadas as reparações necessárias, que foram sofrendo interrupções, por serem dispendiosas.
Também o semanário regionalista “Brados do Alentejo”, na sua edição de 13 de Outubro de 1940, relata que: “No passado dia 8, terça-feira, petas 22,30 horas, foi a população de Estremoz sobressaltada por um enorme estrondo. Minutos depois, correu pela cidade a noticia de ter desabado a abóbada da nave central da igreja paroquial de Santo André, com 20 metros de comprimento por 10 de largura.
A nova causou ainda algum pânico, pois minutos antes do desabamento, tinham saído do templo os fieis que tomaram parte na devoção do Rosário. Felizmente, porém, não havia, no momento da derrocada, pessoa alguma na igreja, senão estaria Estremoz hoje de luto por muitas famílias.
A abóbada, de há muito largamente fendida, tendo desprendido dela horas antes um pedaço de caliça, estava assim desde o tremor de terra de Benavente, sendo possível ligar agora também a derrocada a um abalo sísmico quási imperceptível, pois que muitas pessoas viram na mesma ocasião em suas casas lâmpadas da iluminação eléctrica a tremer.
O estrondo foi enorme, ouvindo-se a muita distância, e da igreja erguiam-se altas e espessas ondas de pó”.
Muita prosa emocionada foi escrita desde então na imprensa local. E não cabe aqui dar conta dela. Torna-se necessário dar um grande salto no tempo. Em 3 de Maio de 1959, diz J. Barros, articulista do jornal local “Brados do Alentejo”: “Mas então vai ser demolida a Igreja de Santo André?! Ter-se-ia chegado por meio de estudos técnicos adequados à desoladora e dura conclusão de que o edifício em causa sofre de uma progressividade ruinosa à qual pouco ou nada é possível opor?
Ter-se-ia encarado o problema em todos os aspectos técnicos relacionando-os com as possibilidades financeiras de realizar as obras de consolidação e restauro bem definidas pelo estudo do assunto visando a restituição do templo ao culto religioso?
Não se pode supor que nada disto tivesse deixado de ser meditado, estudado e apreciado, pois não é de crer que semelhante resolução — se é que em verdade foi já tomada — houvesse sido a preferida entre as que se oferecessem. A ser assim, teria certamente surgido longa matéria técnica e financeira que fundamentou e justificou a dolorosa solução de demolir a condenada Igreja.
É sem dúvida custoso admitir que o templo ao que parece ora condenado, não tenha possibilidade de reparações e consolidações e que por coincidência singular, seja o local onde ele se encontra erigido, o que merece a preferência para nele construir o Palácio de Justiça.
Mas não haverá em Estremoz, na baixa da cidade, e em ponto central, outro local onde a construção do Palácio de Justiça se possa efectivar sem ter que demolir uma das maiores Igrejas da cidade, desaparecendo assim mais outro templo religioso?"
E depois disto o que se passou? Para ser rápido, há que dar um salto ainda maior no tempo. Sob o título “ESTREMOZ – A DEMOLIÇÃO DA IGREJA DE SANTO ANDRÉ E O PALÁCIO DA JUSTIÇA”, diz o “Diário de Notícias” de 5 de Outubro de 1960: “Começou a demolição da Igreja paroquial de Santo André, em pleno coração da cidade. A restauração da Igreja foi a sua morte. A nova abobada, tinha um corpo que as paredes laterais não suportavam e os técnicos verificaram depois de várias experiências que a derrocada da Igreja seria um facto sem qualquer possibilidade de evitar-se. Autorizada a sua demolição, no mesmo local se erguerá em breve o Palácio da Justiça, cuja construção se impunha, dadas as deficientes e apertadas instalações das repartições locais deste Ministério.”
A Igreja foi demolida e o Palácio da Justiça foi construído. A inauguração deste Palácio da Justiça, que como resultado do crime cometido, se deveria chamar antes, Palácio da Injustiça, foi efectuada a 3 de Abril de 1964, com pompa e circunstância pelo mais alto magistrado da Nação – modo como se designava então, eufemisticamente, o Presidente da República, Almirante Américo Tomaz.
Da inauguração, há registo fotográfico de Rogério de Carvalho. A partir daquela data, tinham impunemente imposto a Estremoz, mais um edifício cinzento e incaracterístico, símbolo de uma distorcida capacidade empreendedora do Estado Novo, que não olhava a meios para atingir os seus fins.
Estremoz ficara então mais pobre. O seu património edificado, por sinal religioso, empobrecera ao ser despojado da vetusta Igreja de Santo André, que apenas por estar ferida, foi condenada à morte, eliminada fisicamente e feita desaparecer do mapa topográfico de Estremoz, que não da memória de elefante dos mais velhos como eu ou ainda mais velhos do que eu. Nunca esqueceremos o crime cometido, nem tão pouco os que o cometeram. Os elefantes são assim.
Honra seja feita aqueles que com as armas possíveis – as palavras – lutaram com convicção e emoção, para que tal não acontecesse. Um destaque muito especial para o padre Serafim Tavares, pároco de São Francisco, homem de púlpito que soube usar a tribuna da imprensa local e foi um dos líderes da resistência ao crime que viria a ser perpetrado.
Hoje um crime destes não seria possível, porque a opinião pública, livre de peias e de mordaças, se mobilizaria em massa para o impedir. Porém, para que cada vez menos, seja possível aconteceram crimes como este, é que exposições como esta são importantes. Para lembrar aos mais novos e às gerações vindouras, aquilo que aconteceu, para alertar consciências e despertar resistências, para memória futura.
Creio que em Évora, aqui bem próximo de nós, um crime destes não teria sido possível, pois desde o primeiro quartel do século XX, mais precisamente desde 1919, que ali existe e está activo o Grupo Pro-Évora, uma Associação de Defesa do Património daquela cidade, cuja acção foi decisiva numa época em que se assistia à mutilação das características históricas mais relevantes daquela urbe. A Câmara Municipal de Évora desenvolveu, de resto, um trabalho notável, pelo que a classificação do Centro Histórico de Évora como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, em Novembro de 1986, foi como dizem os seus responsáveis “o corolário de um longo caminho tendente a salvaguardar o conjunto edificado da cidade intramuros”.
Neste ano de graça ou de desgraça, dependendo do ponto de vista, de 2009, Estremoz ainda não tem uma Associação de Defesa do Património, a qual como órgão independente, lidere a opinião pública, intervindo activamente na defesa do património da nossa cidade. Por isso, porque estamos atrasados no tempo, é muito difícil, se não improvável que alguma vez o Centro Histórico de Estremoz, consiga ser classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Oxalá me engane.
Esta exposição não teria sido possível sem a recolha por nós efectuada, no decurso do tempo, de fotografias e de postais ilustrados, expostos ampliados, em sequência cronológica, procurando mostrar a grandeza tutelar dum templo, o qual para além de local de culto, demarcava um espaço sociológico de convívio cívico que se perdeu. Para além das fotografias registadas por fotógrafos anónimos que trabalhavam para editoras comerciais de postais ilustrados no século XX, merecem especial destaque as fotografias de Wolanski (finais do século XIX - princípio do século XX) e de Rogério de Carvalho e de Tony (2º quartel do século XX), três grandes repórteres fotográficos do tecido urbano e etnográfico da nossa urbe transtagana.
Porém, o que avalizou o registo fotográfico do crime cometido, foram as fotografias obtidas por Manuel Gato, um dos sócios da extinta firma Quadrado e Gato, do Rossio Marquês de Pombal. Foi ele que com a sua elevada consciência cívica e raro sentido de oportunidade e importância de reportagem fotográfica, obteve uma sequência de fotografias, a qual relatam duma forma fria e imparcial, a demolição impiedosa de uma Igreja que era sede de Paróquia. Igreja cuja demolição efectuada em 1960, por ordens do poder salazarista, já havia sido, de resto, alvo na imprensa local, de uma crónica de morte anunciada. Esta a história do maior crime perpetrado contra o património em Estremoz.
Chegados a este ponto, julgo ser opinião unânime dos estremocenses e não só, que neste julgamento à revelia, o réu – o regime de Salazar – deva ser considerado culpado pelo horrendo crime cometido contra o património construído da nossa cidade.
A vítima – a veneranda Igreja de Santo André – nós nem ninguém a poderá restituir à sua existência física, apenas lhe poderemos reservar um lugar muito especial nas nossas memórias e relembrá-la às gerações mais novas.

Texto publicado inicialmente em 24 de Abril de 2010
Texto que integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"
editado pela Colibri em 2012.

Foto de Rogério Carvalho (cerca de 1940).


Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Palácio da Justiça. Postal edição Câmara Municipal de Estremoz (1986).

15 comentários:

  1. Bem haja pela memória de elefante que invoca.
    Estremoz não merecia este crime.Outros tempos outras vontades.

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  2. desculpem-me, mas não consegui perceber.
    houve uma derrocada já previsível, portanto um crime por incúria, por nada se ter feito para evitar,
    ou foram lá operários que começaram a destruição, ou início da derrocada (o que vai dar ao mesmo)?

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  3. Excelente reavivar de memórias. Crimes de lesa-património a que se assistia sem se poder lutar.
    Ainda hoje se efectuam muitos crimes desta natureza porque os que "mandam" ou não conhecem as tradições de cada terra ( o sistema facilita a eleição de edis de origem simplesmente política) ou porque a sua ignorância cultural mais não lhes permite.

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  4. Muito parecida com a Igreja Matriz de Campo Maior.
    Ficava bem melhor que o tribunal que lá fizeram.

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  5. Falta contar a história da «negociata» entre as autoridades administrativas centrais e locais e as autoridades religiosas que resultaram na demolição da Igreja de Santo André, na contrução do Palácio de Justiça e na (re?)construção da Igreja dos Congregados! Uma leitura atenta dos arquivos destas autoridades permite clarificar o «negócio» que se gerou!

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  6. São pormenores que que desconheço e eu só falo daquilo que conheço. Se consultou os arquivos que refere, porque não divulga aqui ou no sítio que julgar mais conveniente, os pormenores dessa "negociata"?

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  7. Excelente avivar de lembrança referente a nefando propósito acontecido em Etremoz no séc. XX. A Igreja de S. André. A vetusta Igreja que tinha corpo ali bem no coração da Cidade, templo religioso muito cativo dos estremocenses;após a queda da sua abóboda central em 1940, ficou abandonada de culto, ostracizada de vontades em reerguê-la por parte do clero e do regime. Dizes muito bem: " hoje não seria possível este atentado patrimonial".Lembras-te?! Era ali a maior parte das vezes que tinhamos catequeze; o Padre Serafim a pôr filmes hilariantes; a D. Maria Helena Brás Simões a pedir menos barulho.Depois, após as Comunhões vinha aquela matula toda de esfomeados, quase a estoirar do decoro do jejum, e iam-se os papo-secos do Bravo com a marmelada da casa da menina Chaveiro, tudo ao geito do copázio de café com leite que parecia que não se gastava. Daquele desmembrar assistia eu, já adolescente, à porta do Café do Aurolino Santos. Recordando tu, hoje, esse contar e fotos que avivam a nossa memória.

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  8. A política muda, os políticos mudam e vão passando (embora façam toda a porcaria possível), mas há uma coisa que ninguém consegue fazer: Apagar a história!

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    1. É verdade, o que diz Dário.
      Os meus cumprimentos e obrigado pelo seu comentário.

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  9. Infelizmente,uma perda irreparável, não só para o povo português,como também para toda a Humanidade!Muito lamentável o que aconteceu!

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    1. Paula:
      Obrigado pelo seu comentário
      Foi, de facto, um crime hediondo.
      Os meus cumprimentos.

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  10. Encontrei agora este post no mural do Facebook. Muito interessante. Já não me recordava. A igreja onde fui baptizada e que foi substituída pelo Palácio da Justiça. A propósito, o Manuel Gato que enviou as fotos, será o mesmo Gato que andou comigo na primária, no Senhor Badalo e que apanhava reguadas valentes? Belo trabalho publicado.

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    1. Maria Margarida Simões:
      Obrigado pelo seu comentário.
      Creio que o Manuel Gato não seja seja o mesmo. O autor das fotografias era um dos sócios da firma "Quadrado e Gato" no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. O Manuel Maria Pereira Gato, o filho, que foi funcionário da Caixa Geral de Depósitos e que é algo mais novo que eu que tenho 67 anos, esse é que poderá ter sido.
      Os meus cumprimentos.

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  11. Gratidão pelos documentários!

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