A lição (c. 1876).
Norbert Goeneutte (1854-1894).
Óleo sobre tela (52 x 45 cm).
Colecção particular.
Ao Poeta
Fernando J. B.
Martinho,
meu antigo
Director.
Uma brincadeira
Vou-vos contar uma
história do “Tempo da Outra Senhora”. É uma história singela, de quem em 36 anos
de carreira, passou 34 na Escola Secundária de Estremoz. O meu ingresso começou
por ser uma brincadeira. Num sábado de manhã, no início do ano lectivo, estava
eu sentado na esplanada do Café Alentejano, quando chega a namorada de um amigo
meu, a qual vinha preencher um horário vago. Eu, com algumas cadeiras por terminar
na Universidade, estava ali no Café, a espairecer. Ela, então, meteu-se comigo,
perguntando-me:
- Porque é que em vez de estares a viver à custa dos teus pais, não
procuras também, preencher um horário na Escola?
Nunca tal me passara
pela cabeça, pois nunca pensara em ser Professor. À laia de me ver livre dela,
disse-lhe assim:
- Diz lá ao Director que se tiver algum horário disponível, me telefone
aqui para o Café.
Então não é que o bom do
homem me telefona daí a um quarto de hora, dizendo:
- Senhor doutor, tenho aqui um horário de Matemática, que está
disponível. Se estiver interessado
venha, faz a apresentação às turmas de hoje e ganha já o fim-de-semana.
Fiquei sem pinga de
sangue, mas o que havia eu de fazer? Não podia voltar com a palavra atrás. Foi
assim que me tornei Professor daquela Escola. Foi uma brincadeira imprevista que
preencheu quase metade da minha vida.
Uma mentira
A seguir à brincadeira, vi-me
envolvido numa grandessíssima mentira. É que estávamos no “Tempo da Outra Senhora”,
que é como diz estávamos no tempo do fascismo, com o Marcelo Caetano em
primeiro-ministro, um partido único – a União Nacional e uma polícia política,
a PIDE-DGS, que perseguia, torturava e prendia os opositores ao Regime, ao qual
havia que assegurar fidelidade, para poder ingressar na Carreira. Assim, lá fui
chamado ao gabinete do Chefe da Secretaria, onde tive que jurar e de subscrever
com a minha assinatura, a declaração formal de que tinha activo repúdio pelo
comunismo e todas as ideias subversivas. É claro que eu era mesmo subversivo,
ainda hoje o sou, como toda a gente sabe, pois está-me na massa do sangue. Eu
era então, um jovem do Maio de 68, caldeado na luta académica contra o Regime e
membro do clandestino Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa.
Assim, para ter direito a ser Professor e usufruir daquilo com que se compram
os melões, tive que mentir descaradamente, com quantos dentes tinha, que era
aquilo que fazia a esmagadora maioria.