quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Je suis Charlie




O ataque terrorista perpetrado hoje pelas 11 horas, contra a redacção da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e dirigido a jornalistas e cartoonistas do semanário, originou doze mortos e onze feridos. Tratou-se de um ignóbil atentado contra o direito de opinião, o debate público e a liberdade de imprensa, que são pilares da democracia.
Só uma atitude é possível: o repúdio pelo ataque, uma homenagem às vítimas e a luta incondicional pela liberdade de imprensa. Digamos, pois todos:

- JE SUIS CHARLIE! 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

16 – Os apitos da Maria Inácia



Amazona.
Maria Inácia Fonseca (1957- ). 
Colecção particular.


Maria Inácia Fonseca, a mais velha das Irmãs Flores, começou a trabalhar com Sabina Santos em 1972, quando tinha apenas 15 anos. Na oficina de Sabina, situada na rua Brito Capelo, trabalhava já Fátima Estróia, pelo que dividiam entre si o trabalho: Fátima preparava os componentes de cada boneco que Sabina armava e Maria Inácia pintava depois de cozidos na Olaria Alfacinha. Ali não se faziam apitos, os quais eram criados e decorados na Olaria por Diocleciano da Conceição (Duque Alfacinha).
Em 1975, Diocleciano deixa de fazer os apitos, pelo que Sabina encarrega Maria Inácia de os confeccionar à noite em casa. Produzia dez em cada serão, os quais depois de cozidos eram também por si pintados. Constituíam um trabalho extra pago à peça.
As figuras representadas nos apitos, em número de quinze, são de dois tipos: Figuras a cavalo (Peralta a cavalo, Sargento a cavalo e Amazona) e figuras a pé (Peralta, Sargento, Senhora, Galo, Galo no disco, Galo na árvore, Galo no pinheiro, Galo no arco, Cesto com ovos, Galinha no choco, Galo no poleiro e Pomba). Em qualquer delas, o todo foi criado a partir das partes, recorrendo a três geometrias distintas: a bola, o rolo e a placa.
As figuras a cavalo têm base rectangular e o apito está localizado na cauda do cavalo. Um rolo de barro foi aí colado com barbutina e depois furado com um arame grosso da base exterior do rolo para o interior, até cerca de metade do comprimento. Na parte superior do rolo foi depois efectuado outro furo, até encontrar o primeiro.
As figuras a pé têm uma base em forma de menisco convexo, onde está inserido o tubo de sopro. Numa primeira fase, Maria Inácia monta e fura este tubo, tal como o faz para as figuras a cavalo. Numa segunda fase introduz uma técnica diferente: o menisco convexo passa a ser mais alto e dele por estiramento numa determinada direcção, resulta o indispensável tubo, que é furado da maneira anterior.
As marcas de autor de Maria Inácia são de três tipos:
Tipo 1 - Carimbo OLARIA ALFACINHA/ESTREMOZ/PORTUGAL, com a marca distribuída por 3 linhas e ocupando uma superfície de 1 cm x 2,8 cm. Usado entre 1976 e 1980.
Tipo 2 - Marca manuscrita MARIA/INÁCIA/ESTREMOZ, com caracteres maiúsculos e em itálico, distribuída por três linhas. Usada entre 1980 e 1988.
Tipo 3 - Marca  manuscrita Maria/Inácia /Estremoz, com iniciais maiúsculas e distribuída por três linhas, com um traço separador entre ´”Inácia” e “Estremoz”. Usada entre 1980 e 1988.

 
  Tipo 1.
 
Tipo 2
  Tipo 3

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Entre o brincar e o mentir



A lição (c. 1876).
Norbert Goeneutte (1854-1894).
Óleo sobre tela (52 x 45 cm).
Colecção particular.

Ao Poeta
Fernando J. B. Martinho,
meu antigo Director.  


Uma brincadeira
Vou-vos contar uma história do “Tempo da Outra Senhora”. É uma história singela, de quem em 36 anos de carreira, passou 34 na Escola Secundária de Estremoz. O meu ingresso começou por ser uma brincadeira. Num sábado de manhã, no início do ano lectivo, estava eu sentado na esplanada do Café Alentejano, quando chega a namorada de um amigo meu, a qual vinha preencher um horário vago. Eu, com algumas cadeiras por terminar na Universidade, estava ali no Café, a espairecer. Ela, então, meteu-se comigo, perguntando-me:
- Porque é que em vez de estares a viver à custa dos teus pais, não procuras também, preencher um horário na Escola?
Nunca tal me passara pela cabeça, pois nunca pensara em ser Professor. À laia de me ver livre dela, disse-lhe assim:
- Diz lá ao Director que se tiver algum horário disponível, me telefone aqui para o Café.
Então não é que o bom do homem me telefona daí a um quarto de hora, dizendo:
- Senhor doutor, tenho aqui um horário de Matemática, que está disponível. Se estiver interessado venha, faz a apresentação às turmas de hoje e ganha já o fim-de-semana.
Fiquei sem pinga de sangue, mas o que havia eu de fazer? Não podia voltar com a palavra atrás. Foi assim que me tornei Professor daquela Escola. Foi uma brincadeira imprevista que preencheu quase metade da minha vida.

Uma mentira
A seguir à brincadeira, vi-me envolvido numa grandessíssima mentira. É que estávamos no “Tempo da Outra Senhora”, que é como diz estávamos no tempo do fascismo, com o Marcelo Caetano em primeiro-ministro, um partido único – a União Nacional e uma polícia política, a PIDE-DGS, que perseguia, torturava e prendia os opositores ao Regime, ao qual havia que assegurar fidelidade, para poder ingressar na Carreira. Assim, lá fui chamado ao gabinete do Chefe da Secretaria, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal de que tinha activo repúdio pelo comunismo e todas as ideias subversivas. É claro que eu era mesmo subversivo, ainda hoje o sou, como toda a gente sabe, pois está-me na massa do sangue. Eu era então, um jovem do Maio de 68, caldeado na luta académica contra o Regime e membro do clandestino Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa. Assim, para ter direito a ser Professor e usufruir daquilo com que se compram os melões, tive que mentir descaradamente, com quantos dentes tinha, que era aquilo que fazia a esmagadora maioria.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Descoberta arqueológica em Estremoz


(1º terço do séc. XIV). Fotografia de Luís Guimarães. 

Padrão medieval de côvado identificado em Estremoz 
A primitiva Casa da Câmara de Estremoz tem segundo Túlio Espanca, uma antiguidade que remonta ao 1º terço do séc. XIV. Nela, o segundo colunelo à direita da porta de entrada, tal como os outros de base quadrada e capitel zoo-antropomórfico, apresenta uma singularidade que o distingue dos restantes. Nele está gravado um sulco vertical, parcialmente coberto com argamassa, como mostra fotografia recente de Luís Guimarães e fotografia do “SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico”, obtida em 1968 no decurso de obras de restauro.
A medição do comprimento do sulco revela que o seu valor é de 66 cm. Estamos assim em presença de um padrão medieval de comprimento conhecido por “côvado” e que correspondia a 66 cm.
O reconhecimento da existência naquele monumento da medida-padrão medieval de côvado, reveste-se da máxima importância, uma vez que não consta do Inventário das Medidas Medievais Portuguesas, divulgado por Mário Jorge Barroca no artigo “MEDIDAS-PADRÃO MEDIVAIS PORTUGUESAS”, publicado na Revista da Faculdade de Letras, em 2006. Daí que o presente escrito vise contribuir para a inventariação, preservação e valorização daquele padrão. 
Medidas medievais de comprimento 
O sistema de medidas de comprimento usado em Portugal na Idade Média para medir e transaccionar tecidos baseava-se no “palmo”, que equivalia a 22 cm. O palmo tinha dois múltiplos principais: o “côvado” (66 cm) e a “vara” (110 cm), correspondentes respectivamente a três e a cinco palmos. Cada uma destas medidas tinha um submúltiplo com metade do seu comprimento: o “meio côvado” (33 cm) e a “meia vara” (55 cm). Existia ainda uma outra medida, não baseada no palmo: a “braça” (184 cm) e que tinha também um submúltiplo: a “meia braça” (92 cm).
A uniformidade dos valores das medidas registadas no inventário das Medidas Medievais Portuguesas, levaram Mário Jorge Barroca a concluir que ela se terá generalizado a todo território nacional, provavelmente desde os meados do séc. XIII, o que facilitaria o combate à fraude. Todavia, alguns mercadores usavam medidas mais curtas que o devido. Daí a necessidade da existência de medidas-padrão para aferir a autenticidade das medidas usadas pelos mercadores. Em Évora, nos finais do séc. XIV era obrigatória a aferição mensal das medidas, conforme refere Oliveira Marques no livro “A Sociedade Medieval Portuguesa” (1960). De resto, Mário Jorge Barroca no artigo anteriormente citado, dá conhecimento de que as Ordenações Afonsinas registam a obrigatoriedade das medidas terem marcas a certificar a sua validade, fixando também multas a aplicar a quem usasse medidas sem marcas de aferição ou comprimento insuficiente. A aferição das medidas usadas pelos mercadores seria feita pelo seu confronto com as medidas-padrão gravadas na pedra, devendo aquelas encaixar nestas, sem folgas no sentido do comprimento. A marcação das medidas aferidas deveria ser realizada por alguém habilitado para o fazer, assegurando a autenticidade das marcas e a sua aceitação pelas partes envolvidas numa transacção comercial: mercadores e compradores. 
Localização do padrão 
A localização da medida-padrão de côvado na primitiva Casa da Câmara de Estremoz não é ocasional, uma vez que visando salientar a sua legalidade, as medidas padrão eram gravadas em locais importantes ligados à Coroa ou à Igreja, tais como portas de castelos ou muralhas e paredes de igrejas. Por outro lado, as medidas-padrão eram colocadas nos locais onde se desenvolvia o comércio, pelo que a feira medieval de Estremoz teria lugar no Largo do Castelo, local onde se situa a primitiva Casa da Câmara de Estremoz. 
A feira medieval de Estremoz 
Como nos diz Virgínia Rau no livro “Feiras Medievais Portuguesas/Subsídios para o seu estudo” (1943), a Feira franqueada de Estremoz foi criada em 1463 por D. Afonso V, que em 25 de Janeiro desse ano, deferiu um pedido de homens bons e concelho de Estremoz, no sentido de lhes ser concedido lugar e autoridade para realizarem uma feira real anual. O rei, reconhecendo o muito serviço da vila, que sempre fora da Coroa ordenou que a feira tivesse lugar de 20 a 30 de Junho, ficando o concelho dispensado da colheita de sisa velha, que era um tributo incidente sobre as transacções e que constituía rendimento do rei. 
À atenção do Município de Estremoz 
A existência em Estremoz de uma medida-padrão medieval é uma mais valia em termos arqueológicos, históricos, metrológicos e turísticos. Daí que se sugira ao Município de Estremoz que proceda à remoção da argamassa que ainda a oculta parcialmente, que a sinalize e divulgue na imprensa nacional, notificando também a Academia Portuguesa de História e o Instituto Português da Qualidade, da existência da mesma.

Padrão medieval de côvado visível num colunelo da primitiva Casa da Câmara de Estremoz. 

domingo, 21 de dezembro de 2014

15 – Cada coisa no seu lugar!


Marca da barrista Isabel Carona (?-?).
Base duma imagem de São José ajoelhado.
Colecção Particular.

Aclénia Pereira (1927-2012) foi uma bonequeira discípula de Mariano da Conceição (1903-1959), cujas aulas frequentou a partir de 1940 na Escola Industrial António Augusto Gonçalves, em Estremoz. No acervo do Museu Rural desta cidade, existem bonecos seus confeccionados em barro vermelho. Todos têm estampada na base a marca identitária da barrista: “Tanagra”, manuscrita dentro de um rectângulo de 1 cm x 3 cm. Quase todos têm igualmente aí gravada a marca do local de produção: “ESTREMOZ/PORTUGAL”, em maiúsculas e em duas linhas, dentro de um rectângulo de 1 cm x 2,7 cm. Ao casar-se em 1960, a barrista transferiu-se para Santarém, onde passou a utilizar barro branco, por não dispor de barro vermelho. Todavia, fê-lo no respeito estrito pela manufactura sui-generis do figurado de Estremoz, a qual combina três geometrias distintas: a bola, o rolo e a placa. Continuou igualmente a pintar e a envernizar os bonecos já cozidos e a apor neles as suas marcas distintivas.
Isabel Carona (?-?) foi a primeira discípula de Sabina da Conceição Santos (1921-2005), quando esta procurou preencher a lacuna criada pela morte prematura de seu irmão Mariano, em 1959. Isabel começou por pintar bonecos e depois aprendeu também a fazê-los. Por questões de natureza pessoal, Sabina Santos veio a dispensar os serviços da afilhada, a qual se fixaria no Montijo, onde veio a produzir figurado de Estremoz, com o barro a que tinha acesso e que apresentava uma tonalidade castanho claro. Como não dispunha de forno, os seus bonecos foram pintados e envernizados depois de secos, não chegando a ser cozidos. Ostentam na base a marca estampada “ISABEL/ARTESANATO/ESTREMOZ/MONTIJO/PORTUGAL” em maiúsculas e em itálico, num conjunto de 5 linhas ocupando uma área de 2,5 cm x 2,5 cm, com um traço a separar as duas primeiras linhas das restantes.
Ainda que produzidas fora de Estremoz, as imagens daquelas artesãs foram manufacturadas com a técnica tradicional dos bonecos de Estremoz. São pois, bonecos de Estremoz. O mesmo não se pode dizer de figurado produzido nesta cidade ou fora dela, por modelação, sem recorrer à técnica da bola, do rolo e da placa. Poderão ser muito bonitos. Poderão ser tudo. Bonecos de Estremoz é que não são. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Massa crítica


O GRUPO DO LEÃO (1885). Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Óleo sobre tela (200 x 380 cm). Museu do Chiado, Lisboa.


O conceito de “massa crítica”, originário da física nuclear, é extensível a múltiplos domínios como sociologia, política, dinâmica de grupos, publicidade, marketing, etc. Em qualquer destas áreas, “massa crítica” é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que um determinado fenómeno possa ocorrer e adquirir uma dinâmica própria que lhe permita autosustentar-se e crescer.
Uma questão que se põe imediatamente é a de saber se a comunidade estremocense tem ou não, massa crítica que lhe permita induzir dinâmicas sociais, indispensáveis ao desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Uma análise do problema poderá levar à conclusão de que Estremoz não tem massa crítica. Contudo, a situação não é irreversível como passo a demonstrar.
Estremoz tem entre os seus filhos, naturais ou adoptivos, bastantes individualidades com currículo respeitável, com percursos de vida notáveis, com provas dadas e obra feita que merece o reconhecimento da comunidade. Todavia, atomizados na sua individualidade não constituem massa crítica. Estão dispersos por variadas coutadas doutrinárias, ideológicas e partidárias, muitas vezes estanques, avessas a pensar para além do dogma que as sustenta, o que inevitavelmente as acabará por aniquilar. Estão ainda disseminados por capelas e tertúlias, que reproduzem alguns dos vícios anteriores. Estão igualmente espalhados por grupos de acção escolar ou confinados a torres de marfim ou celas individuais de pensamento pró-monástico.
Naquelas circunstâncias nunca constituirão massa crítica, já que como nos ensina o gestaltismo, o todo é mais que um mero somatório das suas partes, pois tem características próprias. Estas só poderão ser alcançadas se todos e cada um tiverem a humildade de reconhecer que atomizados não conseguem chegar a parte nenhuma, limitando-se a cumprir um caminho de penitência. Todavia é impensável e ilegítimo que cada um dos múltiplos grupos cogite em arregimentar os restantes, visando o seu auto-reforço. O que é possível e legítimo é cada um desses grupos ou individualidades proceder a uma profunda reflexão que lhe permita separar em termos de objectivos e de linhas de acção, o que é essencial do que é acessório. Feito isto, é então possível procurar equacionar quais os caminhos que podem ser percorridos conjuntamente. Então, Estremoz terá massa crítica, indutora de dinâmicas sociais conducentes ao desenvolvimento nas suas distintas vertentes. Então poderá ocorrer uma mudança de paradigma, que como Fénix renascida das cinzas, nos devolva o orgulho de sermos estremocenses.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Bonecos de Estremoz estudados ao pormenor


Transcrevo com regozijo e com a devida vénia, 
a Notícia do Município de Estremoz, nº 1872,
de 9 de Dezembro de 2014.
  
O Laboratório Hércules da Universidade de Évora, uma das instituições mais prestigiadas na área do Restauro e Conservação a nível nacional, com a colaboração do Centro Ciência Viva de Estremoz, irá iniciar o estudo material e técnico do Figurado em Barro de Estremoz (vulgo Bonecos de Estremoz), em particular alguns dos antigos exemplares da Coleção Júlio Maria dos Reis Pereira.
O estudo, que também vai contar com o apoio técnico do Museu Municipal de Estremoz, vai abranger o período histórico do séc. XVIII-XIX, e contará com a realização de alguns exames em situ e de análises laboratoriais. O mesmo tem como objetivos esclarecer as dúvidas que atualmente existem em termos de composição química e estrutural do suporte (barro), assim como identificar quais os pigmentos e o ligante utilizados na execução das tintas, e ainda a identificação do material utilizado como camada de proteção.
Os exames a realizar serão, entre outros, a Radiografia, a Espectrometria de Fluorescência de raios X (FRX), análise estratigráfica, entre outras.
Este é mais um marco importantíssimo na história do Boneco e no âmbito do Plano de Salvaguarda do Figurado em Barro de Estremoz, porque não se pode salvaguardar, preservar e conservar sem conhecermos em profundidade a matéria e a técnica que lhe está subjacente, assegurando uma boa fundamentação técnica para a proposta à UNESCO de inserção do Figurado na Lista Representativa de Património Cultural Imaterial da Humanidade.