Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Senão houver objecções, a minha conversa convosco constará de três partes:
1 - Onde te vieste meter, Hernâni?
2 - Deixem-me lá agora falar do livro!
3 - E quanto a mim, que penso eu?
Vou então começar, pois embora a jornada não seja longa nem fastidiosa, daqui a bocado são horas de ir lanchar e ninguém esta autorizado a lanchar por mim.
Onde te vieste meter, Hernâni?
Se bem me lembro, conheço seguramente a Georgina desde o Tempo da Outra Senhora. Do exercício do Magistério Primário na Freguesia da Glória, da sua ligação à Comunidade, do seu reconhecimento por parte da mesma e do seu amor às coisas campaniças.
Lembro-me de partilhar há muito com a Georgina uma grande admiração pelo “Ti Rolo” da Aldeia de Cima, que exercia sobre nós um fascínio incomensurável, pela sua oralidade transbordante e pelos artefactos de arte pastoril nascidos das suas mãos mágicas, nos quais projectava toda a imaginária popular, lavrada em chifres e paus sabiamente escolhidos.
Lembro-me do nascimento da sua filha Sónia e tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano do seu filho Pedro. Foi uma experiência encantadora, pois além do Pedro ser um aluno fortemente motivado, eu tive oportunidade de pôr em prática o método de ensino-aprendizagem personalizado, preconizado por muitos pedagogos. É que o Pedro era o único aluno da turma. Nenhum de nós deixou os seus créditos por mãos alheias e a experiência pedagógica foi um êxito.
Lembro-me do envolvimento da Georgina no Projecto Serra de Ossa, desde o início, no tempo da liderança de Gil Malta e de ela ter participado em 1998, conjuntamente com outros professores, entre as quais este vosso amigo, nas “Segundas Jornadas da Serra d’Ossa”, levadas a efeito na Escola Secundária da Rainha Santa Isabel. A sua bem-sucedida intervenção oral nessas jornadas, foi o embrião dos seus primeiros livros, publicados ambos em 2005:
- Plantas medicinais da Serra d'Ossa
- Por um Amanhã Mais Verde, Mezinhas caseiras com Plantas da Serra d'Ossa
Em Setembro de 2012, a Georgina concedeu-me o privilégio de participar na apresentação pública do meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”, o que muito me congratulou.
Em Dezembro de 2013 a Georgina brindou-nos com o lançamento do seu livro de poesia “O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL”, editado pela Colibri, o qual foi apresentado na Casa de Estremoz pela Maria do Céu Pires e pela Francisca de Matos.
Passados estes anos todos, estas nossas amigas resolveram não reincidir e passaram-me o testemunho, pelo que à falta de melhor, aqui estou eu, de peito descoberto, a apresentar o livro que está na ordem do dia, o livro da autoria da nossa amiga Georgina, que em boa hora aqui nos trouxe.
Tudo estaria bem se a Francisca de Matos, ignorando que sou um pés de chumbo, não me tivesse proposto entrar nesta dança, aqui mesmo neste belo salão da Sociedade Artistas Estremocense, onde actualmente até se dão aulas de dança. Vamos lá a ver se não me espalho ou não brindo alguém com uma pisadela mestra.
Deixem-me lá agora falar do livro!
Está aqui à vossa vista. Fisicamente é um livro brochado, de 22,8 x 16 cm e 236 páginas. O seu título é
NA JANELA DO TEMPO – TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO – BEIRA INTERIOR e a autora, claro está, é a nossa amiga Georgina. O livro foi dado à estampa 78 prestigiadas Edições Colibri de Fernando Mão de Ferro e tem capa a cores de Raquel Ferreira,78 gizada a partir de fotografia de Abel Cunha. Na primeira badana figura a biografia e a fotografia da autora e na segunda badana, um excerto de uma das estórias do livro. Este tem prefácio de José Carlos Lage, o qual confessa que é “
Fácil e ao mesmo tempo difícil” falar das poesias e das crónicas de Georgina. Por sua vez, em posfácio impresso na contra-capa, Francisca de Matos afirma e muito bem, que
“Esta obra é, sobretudo, uma grande lição de vida, um legado que não deve, não pode ser esquecido”.
E quanto a mim, que penso eu?
O livro é um livro de estórias ou não fosse Georgina, para além de notável poetisa, uma extraordinária contadora de estórias. Não estórias quaisquer, nem tão pouco inventadas ou arquitectadas, mas estórias reais ocorridas no tempo da sua infância, repartida entre Manteigas, Aldeia do Bispo - Sabugal e Covilhã.
São estórias com personagens reais, de carne e osso, como o Ti Júlio, a Ti Mariana, a Senhora Isabel Augusta, o Ti Zé Ramos, a Menina Zéfinha, o tio António Pantalona, o tio Zé Manso e não sei quantos mais, numa infinidade numerável que não consegui quantificar. São eles que constituem aquilo que com orgulho, Georgina chama “A Minha Gente”.
São estórias contadas e redigidas numa escrita fluida e ágil, eficaz na pintura descritiva das paisagens rurais e do interior das casas aldeãs. Escrita que é também uma partilha intimista das emoções e sentimentos dos personagens, incluindo Georgina, também ela própria, personagem por direito próprio e inalienável. Tudo sempre minuciosamente filigranado ao pormenor, numa linguagem rica, valorizada pelo uso de vocábulos regionais, cujo sentido, se necessário pode ser decifrado num glossário que antecede o índice final.
São estórias do tempo em que nas aldeias se tocavam as trindades.
As hortas eram regadas com água tirada das noras e das picotas. Comia-se daquilo que a terra dava e em situações de carência, havia partilha e entreajuda ente vizinhos e familiares. Todavia, a falta de dinheiro para bens de mercearia e para comprar entre outras coisas, petróleo para alumiar, levavam alguns, mais aflitos e mais afoitos, a entrar no contrabando através da raia de Espanha ou a dar o salto para França.
Apesar de tudo ou talvez por isso, rezava-se a Deus, à Mãe de Jesus, ao Anjo da Guarda e a Santo Antão para proteger o gado.
A menina Zefinha andava de taleigo à cabeça, a ti Mariana remendava as ceroulas do Ti Júlio e a ti Neves do Ti Júlio punha-lhe ventosas e papas de linhaça, a ver se ele arribava.
A roupa era cosida, remendada e transformada, passando dos mais crescidos para os mais pequenos. O pão ara amassado de tarde para ficar a dormir à noite e os mais velhos davam a bênção aos mais novos antes destes adormecerem.
Isto e muito mais são registos de memórias de tempos idos dos personagens do livro. Tempos e vivências difíceis e duras, mas também de afectos, partilhas e tradições numa comunidade onde Georgina nasceu e cresceu, com a qual se identifica e que pela mesma é reconhecida e idolatrada.
Georgina é, pois, uma guardadora de memórias, muitas delas guardadas no presente livro e que por serem reconhecidas pela comunidade que a viu nascer e crescer, integram a memória colectiva local e contribuem com a sua quota parte para a memória colectiva regional e para a memória colectiva nacional.
É a memória colectiva que nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.