Mostrar mensagens com a etiqueta Mitologia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mitologia. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Mitologia Popular do Natal


Bento Coelho da Silveira (1620-1708). Adoração dos Pastores.

A presente colectânea de superstições e tradições populares sobre o Natal, recolhidas de três fontes bibliográficas distintas, cujos autores as recolheram da tradição oral, mostra novamente a riqueza da Mitologia Popular Portuguesa:
- Cerca de um mês antes do Natal, lançam trigo ou cizirão num pequeno recipiente, o qual vai sendo continuamente borrifado com água. São as searinhas do Menino Jesus, utilizadas posteriormente na decoração dos presépios (Elvas). [3]
- A construção ou reparação do lar deve ser efectuada na noite de Natal. [1]
- À meia-noite do dia de Natal deve sair-se para o campo e colher arruda, alecrim, salva e erva-terrestre. A arruda frita-se em azeite para usar nas fricções e das outras plantas faz-se chá para beber quando se está doente. [1]
- A rosa de Jericó desabrocha na noite de Natal, conservando-se aberta até ao dia da Purificação. [1]
- À rosa de Jericó é atribuída a virtude de facilitar o nascimento das crianças. Para tal, a rosa é lançada numa tigela com água e à medida que vai abrindo, o parto é facilitado. A planta é vendida pelos judeus ambulantes, sendo boa para a enxaqueca quando se aspira o aroma que exala ao abrir-se. C$olocada num oratório na noite de Natal, encontra-se aberta pela manhã. (Elvas). [2]
- Na noite de Natal percorrem as ruas, ao som da ronca e em grandes cantorias. (Elvas). [3]
- Quando canta na noite de Natal, o galo diz: “Jesus é Cristo.” (Elvas). [2]
- Na noite de Natal, os rapazes costumam assar muitas pinhas, costumando guardar os cascos das que são mansas, meio-queimadas, para serem incendiadas por altura de trovoadas, a fim destas passarem. (Barcelos). [2]
- Havendo luar na noite de Natal, é sinal de no próximo ano haver muito leite. [2]
- Devem-se comer cinco bagos de uva quando a hóstia é erguida na missa da noite de Natal, a fim de evitar dores de cabeça. [3]
- Uvas comidas seguidamente à meia-noite de Natal, livram de sezões (Évora). [1], [2]
- É bom ficar a mesa posta no fim da ceia de Natal, que é para os Apóstolos virem comer. (Barcelos). [2]
- Ao meio-dia do dia de Santa Bárbara devem deitar-se algumas galinhas para tirarem na noite de Natal. Todo o galo nascido nessa noite, cantará sempre à meia-noite. [1]
- As pessoas nascidas no dia de Natal ou de Ano Bom são muito felizes. [1]
- As pessoas nascidas no dia de Natal vivem muito tempo. [1]
- O cepo da fogueira do Natal e os cotos de velas usadas nessa época, têm grandes virtudes contra as coisas más. [1]
- O vento que sopra à meia-noite do dia de Natal, não muda de direcção até ao dia de São João. [1]
- Para curar uma pessoa de ataques epilépticos, esta deve ser medida com uma cana, a qual na noite de Natal deve ser colocada por detrás do altar do Menino Jesus. [1]
- No presépio, a mula espalhava o feno e a vaca juntava-o. Daí a maldição de Nossa Senhora à mula: —"Não parirás! — prometendo à vaca que a carne dela seria a que sustentaria mais (Elvas). [2], [3]

BIBLIOGRAFIA
[1] - PEDROSO, Consiglieri. “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III e IV. Porto, 1981-1882.
[2] - PIRES, THOMAZ A. A noite de Natal, o Anno Bom e os Santos Reis (2ª edição). António José Torres de Carvalho. Elvas, 1923.
[3] – PIRES, THOMAZ A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 22 de Dezembro de 2010

domingo, 17 de julho de 2011

Mitologia popular da água


Camponesa de Estremoz com cântaro de água. (c. 1940).
Ilustração de Cesar Abbott em bilhete-postal ilustrado.
Edição do Centro de Novidades, Porto.

São inúmeras as superstições relativas à água e ao seu consumo. Delas destacamos algumas:
- No princípio do mundo, a água foi condenada a correr sempre e nessa época também tinha fala. (3)
- Está ainda muito arreigada a crença nos vedores, pessoas que detectam a presença de veios de água no subsolo. (4)
- Tanto a água corrente como a de bica, descansa uma hora em cada noite, que foi a hora que Deus lhe estabeleceu para descansar. (4)
- A água dorme todas as noites e à meia-noite do dia de S. João, está benta. (3)
- Não se deve beber água depois da meia-noite, sem mexer o copo que a contém, porque a água está a dormir e de contrário, fará mal a quem a bebe. (1)
- Existe a crença de que a água, à meia-noite ou na manhã de São João, tem muitas virtudes, por isso as pessoas se lavam nela e levam os gados às pontes e rios. (3)
- Para a água se manter fresca, ata-se uma junta ao gargalo do cântaro, em que se transporta água da fonte (Alandroal). (2)
- Não se deve beber água com uma luz na mão, porque entram espíritos. (1)
- Não se deve beber água com uma luz na mão, porque provoca gota ou porque se bebe o juízo. (3)
- É mau beber água com uma luz na mão, pois que se dão acidentes. (4)
- Para não se morrer de dores de barriga, não se deve beber água em correntes, sem primeiro rezar um padre-nosso e uma ave-maria. (1)
- Quando a água que se bebe está fria, é porque não choverá. (4)
- Quem bebe água em jejum, cura o catarral. (4)
- É mau beber água antes do Sol-posto, de acordo com o adágio:
“Quem bebe água antes do almoço
Chora antes do Sol-posto.” (3)
- Beber nove [1] golos de água é remédio certo para afastar os soluços. (1)
- Aos recém-nascidos deve-se dar a beber a água em que foram lavados, para os tornar mansos. (1)

BIBLIOGRAFIA
(1) - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
(2) - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Etnografia Portuguesa. Vol. V. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1982.
(3) - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Tradições Populares de Portugal. Livraria Portuense de Clavel e C.ª – Editores. Porto, 1882
(4) - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.
Publicado inicialmente a 17 de Julho de 2011

[1] - O número nove representa o triplo do triplo (9=3x3) e para os hebreus é o símbolo da verdade com a característica de que multiplicado por si próprio, se reproduz a si mesmo, segundo a adição mística (9x9=81). Daí que o nove, seja por excelência, o número dos ritos medicinais, uma vez que representa a tripla síntese (corporal, intelectual e espiritual).

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O pão na Mitologia Popular

Padeira na Feira de Santo Amaro (1938).
Alberto de Souza (1880-1961).
Aguarela sobre papel (26 cm x 37 cm).
Museu de Aveiro.

Esta colectânea de superstições sobre o pão, que culmina a nossa pesquisa em quatro fontes bibliográficas distintas, cujos autores as recolheram da tradição oral, mostra bem a riqueza da Mitologia Popular Portuguesa:
- Não se deve cozer pão ao domingo, senão aparecem manchas de sangue no forno. [3]
- Ao enfornar-se não se deve contar o pão, pois de contrário, o Diabo rouba um. [3].
- Quando a pá do forno se parte, não deve ser consertada, mas sim enterrada ou queimada e substituída por uma nova. Consertando a pá, morre o dono da casa. [3].
- Não pôr o pão na mesa, é mau sinal que se deve evitar. [1]
- É muito mau, pôr o pão na mesa de pernas para o ar, porque chora Nosso Senhor. [2]
- Comer pão quente com manteiga, faz alporcas. [4] [2]
- Para casarem cedo, as raparigas e os rapazes solteiros devem comer o canto do pão. [2]
- Na Quinta-Feira de Ascensão deve-se “ir à espiga”, apanhando uma espiga de trigo, um ramo florido de oliveira, uma papoila e malmequeres brancos e amarelos, fazendo com eles um ramalhete, para que durante todo o ano, não falte em casa, nem pão nem dinheiro. [2]
- No dia de Reis devem-se guardar-se nove bagos de romã; três devem ser deitados no lume, para estar aceso todo o ano; três devem ser deitados no saco do pão, para o ter todo o ano; e três devem ser deitados na bolsa, para ter dinheiro o ano inteiro. [2]
- É pecado deitar pão no lume. [2]
- Nunca se deve cheirar o pão, porque ao morrermos, a terra não come o corpo, mas apenas a ponta do nariz. [2]
- Antes de uma criança atingir os seis meses, não deve ser levar à rua à noite, sem lhe pôr na mão uma côdea de pão de centeio, por causa dos ares maus. [2]
- Não se deve comer pão ou qualquer outra coisa que se encontre perdida, porque foram as bruxas que a deixaram. [2]
- A queda de alguma coisa da boca, é prenúncio de que alguém nos quer falar: um homem se for pão, uma mulher se for carne. [2]
- É pecado deitar o pão ao chão ou pisá-lo. [1]
- Após ter caído no chão e após ser apanhado, o pão deve ser benzido, porque é bento. [4]
- Se uma pessoa que nos queira mal, der um pedaço de pão dentado a um sapo, mirra o sapo e mirramos nós. [2]
- Não se deve deixar pão cortado com os dentes, pois quem nos queira fazer mal, pode apanhar o pão, crivá-lo de alfinetes e dá-lo a comer a um sapo. Este fica padecendo e enquanto não morre, padece a pessoa também, morrendo por fim ambos. [2]
- Dizia-se às crianças que não comer o pão todo, faz chorar a Virgem Nossa-Senhora. [1]
- Ao levantar-se a mesa da refeição, não se deve deixar pão mordido, pois os bichos venenosos podem sugar a saliva deixada no pão, o que faz mirrar a pessoa que o mordeu. [4]
- Para as pessoas do campo, o aparecimento da popa, prognosticava abundância e recomendava economia. Afirmavam que ela quando canta diz: Poupa o pão! Poupa o pão! Quando porém canta muito, isso significa que o ano é pouco abundante. [2]
- Quando um cão uiva, devemos descalçar os sapatos, virá-los de sola para cima e pormos os pés em cima deles, dizendo três vezes: Maria dá pão ao cão. Imediatamente o cão se calará, cessando o agoiro. [2]
- Uma mulher sem leite para amamentar os filhos, se o quiser, dá um pedaço de pão a comer a uma vaca que o tenha, e come o resto do pão que a vaca deixou. O leite da vaca passa então para a mulher e seca no animal. Se pelo contrário uma mulher que tem leite, comer um pedaço de pão e uma vaca lhe apanhar parte dele, o leite da mulher passa para o animal. [2]
- Os pobres, ao receberem esmolas de pão ou de dinheiro, beijavam-na antes de a agradecer. [4]
- Com os bagos de trigo faziam um oráculo do ano. Para isso pegavam em doze grãos, atribuindo a cada um o nome de um mês e colocavam-nos, um a um, na pá do forno, bastante quente. Os que saltavam para fora, indicavam os meses felizes. [1]

BIBLIOGRAFIA
[1] - CHAVES, Luís. Páginas Folclóricas I – A Canção do Trabalho. Separata do vol. XXVI da “Revistas Lusitana”. Imprensa Portuguesa. Porto, 1927.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. VI. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1975.
[4] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

terça-feira, 31 de maio de 2011

O sentido da visão: Superstições, Rezas e Benzeduras

Ilustração de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957) para o livro “Alentejo não tem sombra” de Eduardo Teófilo, Portugália Editora, 1954.

PREÂMBULO
No desenvolvimento do tema “O sentido da visão”, efectuámos até à presente data edição dos posts:
Chegou agora a altura de editar o post:
- O Sentido da visão: Superstições, Rezas e Benzeduras
Comecemos pelos:
OLHOS E SUAS DOENÇAS
Existem inúmeras superstições populares ligadas aos olhos:
- Quando um lobo avista alguém, antes de ser por ela visto, a pessoa perde a fala. [4]
- Passar pelos olhos um ovo quente, acabado de pôr, tem a virtude de aclarar a vista. [4]
- Olhar-se a um espelho, tendo a cara inflamada, agrava a inflamação. [5]
- Ao encontrar-se um ninho de andorinha, devem cegar-se os filhos, pois a andorinha vai buscar uma pedrinha que tem a virtude de lhes restituir a vista e que por isso deixa ficar no ninho. Subtrai-se então a pedra do ninho e não há doença de olhos que resista à sua influência benéfica. [4]
- Nascem treçolhos nos olhos de qualquer pessoa a quem uma mulher grávida peça uma coisa e não lha dê. [4]
- Para talhar o terçolho, acende-se uma fogueira numa casa que tenha duas portas. Quem tem o terçolho, entra a correr por uma porta e salta três vezes a pés juntos por cima da fogueira, gritando: “Aqui-del-rei! Fogo em casa do terçogo!” Depois sai pela outra porta, gritando o mesmo. [5]
- Um afogado começa a deitar sangue pelos olhos e pelo nariz, quando se lhe chega ao pé, um parente próximo ou remoto. [4]
- Quando um finado fica de olhos abertos, é sinal que está chamando por alguém da família. [4]
- Ver-se de noite sem luz, é ver o Diabo. [4]
- Não se deve ter uma luz acesa, numa casa sem ninguém, porque está a alumiar o Diabo. [5]
As doenças de olhos eram tratadas pelo povo com mezinhas caseiras, que não iam além da simples lavagem com água de rosas ou água de malvas. As doenças mais correntes eram:
- BOLIDAS - Manchas esbranquiçadas que apareciam na íris.
- CABRITA – Mancha de sangue no branco do olho.
- FARPÃO - Borbulha inflamatória na córnea.
- REXA – Úlcera traumática da córnea, adquirida normalmente na ceifa ou no varejo da azeitona.
- TERÇOLHO - Pequeno tumor no bordo das pálpebras.
Para a remoção de corpos estranhos dos olhos, recorria-se às chamadas pedras alguereras, ou d'alguêro, vendidas em feiras e mercados e que ao serem introduzidas nos olhos originavam produção abundante de lágrimas,as quais expulsavam qualquer corpo estranho à vista.
Para além das mezinhas, as doenças de olhos eram tratadas com benzeduras. Uma reza usada na benzedura dos olhos, diz assim:


“Em lavor de Santa Luzia
Esta vista venho benzer:
De prego, de farpa e farpão.
De cabra (?), de cabrito (?), de rôxidâo,
De vermelhidão e d'enflamação,
De bicha e de bichão!...
Ê te corto e te torno a cortar,
Rabo, cabeça e raízes do coração
P'ra que te seques e te mirres
Em lavor de Santa Luzia,
Padre-Nosso... Avém-Maria.” [6]


Mas há outras rezas empregues na benzedura de olhos, como esta:


“A mão de Deus e a da Virja Maria vá adiente da minha
P'ra qu'apagu'estas rechas, estes farpões,
Estes carnazões, estes cravos, estes pregos,
Estas bolidas, êste mal d'olhos...
Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
Padre-Nosso… Avém-Maria.” [6]


Durante a benzedura, a benzedeira segura numa mão um objecto cortante (faca, navalha ou canivete) e na outra, um bocado de pau de loendro no qual corta, quando as palavras do ensalmo o declaram, ao mesmo tempo que aproxima dos olhos do paciente, o objecto cortante e o pedaço de loendro.
A benzedura é efectuada durante cinco, sete ou nove dias, findos os quais, a doença deve estar debelada. Faz-se então, o seguinte ofertamento: — “Ofereço estas santas benzeduras à Senhora Santa Luzia que livrou este olho do arpão, cravo e récha. Em nome de Deus Padre, de Deus Filho, de Deus 'Sprito Santo e de Santa Luzia. Padre Nosso e Avém-Maria”. [6]
Vejamos ainda mais uma reza utilizada na benzedura dos olhos:


“Eu te benzo... (nome da pessoa)
rexa, cabrita, farpão.
Santa Luzia por aqui passou,
com o seu manto borrifou;
assim tu te aches como ela se achou.
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]


Reza-se nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam um Padre Nosso e uma Ave Maria, oferecidos a Santa Luzia.
Existe uma reza expecífica, usada na benzedura do farpão. Uma das suas muitas variantes diz o seguinte:


Diz a benzedeira:
- “Jesus, santo nome de Jesus,
onde está o santo nome de Jesus,
não está mal nenhum“
Continua a benzedeira:
“ Eu te corto.”
Responde o doente:
“- Farpão. “
Continua a benzedeira:
“- Eu t’o corto da cabeça,
eu t’o corto dos braços,
eu t’o corto das pernas,
para que não possas reinar.
Aqui te hás-de secar,
aqui te hás-de mirrar,
daqui não hás-de passar.
Hei-de te mandar deitar
para lá das águas do mar,
onde não ouças galinhas nem galos cantar,
nem filhos bradar.
Em louvor de Deus e de Maria,
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]


Enquanto são pronunciadas aquelas palavras, a benzedeira passa por cima do farpão um anel de ouro ou um dente de alho. A benzedura é feita nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam um Padre Nosso e uma Ave Maria, oferecidos a Santa Luzia e à sagrada Morte e Paixão de Cristo.


OLHOS DE SANTA LUZIA
Como se sabe o povo é superticioso e por tradição popular era dado ao uso de amuletos. Um deles, conhecido por “Olhos de Santa Luzia”, em prata, era usado num fio ao pescoço, para prevenir as doenças de olhos, assim como ofertados à Santa, em cumprimento de promessa por graça recebida. De resto, os devotos rezavam uma “Oração a Santa Luzia”:


Ó Santa Luzia
Que saras dos olhos
Livrai-nos d’escolhos
De nout’ e de dia.


Ó Santa Luzia
Bendita sejais,
Por seres bendita,
No Céu descansais.” [6]


MAU-OLHADO
O mau-olhado é uma faculdade atribuída a certos indivíduos de trazerem desgraça àqueles para quem olham. O povo ainda hoje crê que o chamado mau-olhado pode ser comunicado a outrem, por quem tem o poder de o fazer, por querer ou mesmo sem querer. Crê ainda que o mau-olhado tanto se pode manifestar em pessoas como em animais, sob a forma de doenças como o quebranto ou então estar na origem de desastres, perdas materiais ou outros malefícios.
São correntes superstições populares relativas ao mau-olhado:
- Por causa do mau-olhado, é bom trincar um alho em jejum. [4]
- Para livrar das bruxas ou do mau-olhado, é bom pôr uma ferradura na porta. [5]
Para talhar o mau-olhado, a benzedeira tem de verificar primeiro se a doença do paciente tem ou não origem em mau-olhado. Para tal, deita um fio de azeite num pires, molha nele três dedos e deixa cair três pingos na água contida numa bacia. Se as pingas se juntarem, é mau-olhado que o paciente tem. Se não se juntarem não é. Em seguida, torna a molhar os dedos no azeite e faz sobre as pingas que estão na água o sinal da cruz, ao mesmo tempo que pronuncia as palavras rituais da reza:


“Fulano (Nome da pessoa) Deus te fez,
Deus te criou,
Deus te tire o mal
Que no teu corpo entrou.” [2]


Eis uma das muitas rezas usadas na benzedura do mau-olhado:


Começa a benzedeira:
- “Jesus, santo nome de Jesus,
onde está o santo nome de Jesus,
não está mal nenhum“
Diz depois a benzedeira:
“- Eu te benzo, criatura, do mau-olhado.
Se for na cabeça, em nome da Senhora da Cabeça,
se for nos olhos, em nome de Santa Luzia,
se for na cara, em nome de Santa Clara,
se for nos braços, em louvor de S. Marcos,
se for nas costas, em louvor da Senhora das Verónicas,
e se for no corpo, em louvou do meu Senhor Jesus Cristo
que tem o poder todo.
Santa Ana pariu a Virgem
e a Virgem pariu o meu Senhor Jesus Cristo
assim como isto é verdade
assim seja este olhado daqui tirado 
e para as ondas do mar deitado,
Onde não ouça galo nem galinha cantar
Em louvor de Deus e de Maria,
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]


Esta benzedura é feita nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira que segura um rosário na mão e o paciente, rezam uma Salve Rainha oferecidas a Nossa Senhora.


QUEBRANTO
Para o povo, o quebranto é causado pelo mau-olhado e tem sintomas próprios: bocejos, mal-estar, dores no corpo, náuseas, arrepios, debilidade, definhamento.
São vulgares as superstições populares relativas ao quebranto:
- Para livrar de quebranto, é bom pregar uma ferradura nas portas das casas, pela parte de fora. [4]
- As crianças pequenas podem ser protegidas do quebranto, pondo-lhes ao pescoço um cordão de seda preta onde estejam enfiados um signo saimão, três vinténs em prata furados, uma argola, um dente de lobo, uma meia-lua e uma figa. [4]
- Para se tratar uma criança de quebranto, juntam-se quatro pedaços de chita, quatro de algodão, quatro de sapatos velhos, quatro de pato-do-mar, quatro ramos de aroeira, quatro de rosmaninho, quatro de alecrim, deita-se tudo no lume e passa-se a criança doente pelo fumo. [5]
Para saber se um paciente tem ou não quebranto, a benzedeira começa por proferir cinco vezes seguidas, as palavras cerimoniais da seguinte reza:


“Fulano (Nome da pessoa),
Deus te remiu, Deus te criou,
Deus te livre de quem para ti mal olhou!
Deus te livre deste cobranto:
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! [7]


Seguidamente, a benzedeira verte cinco pingas de azeite num prato com água pura. Se é quebranto, as pingas espalham-se. Se não é, juntam-se. E sendo quebranto, existe a crença de que a pessoa começa desde logo a melhorar.
Apresentamos de seguida uma reza usada na benzedura do quebranto, de sol e de lua. Diz a benzedeira:


“ Fulano (nome das pessoa) dois olhos te olharam mal,
Três te hão-de olhar bem,
Em nome de Deus Pai, do Filho
E do Espírito Santo, Amem
Quando Nossa Senhora pelo Mundo andou,
Com Santa Margarida se encontrou,
E lhe perguntou:
— Onde vais. Margarida?
— Eu à Vossa busca ia.
Tenho um filho doente
De sol e de lua e de fito morria.
Com que o curarei eu, Senhora?
— Com a cinza do lar
O Mundo será salvo.
A lua por aqui passou
E a cor de Fulano levou,
E a dela deixou.
Ela há-de tornar a passar,
A cor de Fulano há-de deixar,
E a dela há-de levar
Para as ondas do mar
Onde não oiça
Nem galos nem galinhas cantar,
Nem mãe por seu filho bradar.” [2]


No final, benzedeira e paciente rezam um Pai Nosso e uma Ave Maria que oferecem a Nossa Senhora e à Sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
EPÍLOGO
A medicina popular, misto de empirismo e crenças arcaicas, indepedentemente dos seus resultados práticos, é merecedora de todo o nosso respeito, não só pela riqueza da sua literatura oral, como pelo papel que desempenhou na formação das identidades culturais regionais.
E com este post damos por terminada a abordagem efectuada ao sentido da visão, através dos múltiplos domínios da nossa literatura oral. Fazemos votos para que esta nossa incursão tenha sido do agrado dos leitores.
BIBLIOGRAFIA
[1] – ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
[2] – DELGADO, Manuel Joaquim. A Etnografia e o Folclore do Baixo Alentejo. Separata da Revista “Ocidente”. Lisboa, 1956.
[3] – OLIVEIRA, Ataíde de. “Therapeutica Mystica-Bendeduras”, A Tradição: revista mensal d’Ethnografia Portuguesa. Série I, Anno I, nº9. Serpa, Setembro de 1899,
[4] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[5] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. IV Porto, 1882.
[6] – ROQUE, Joaquim. Rezas e Benzeduras Populares. Minerva Comercial. Beja, 1946.
[7] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. X. Imprensa Nacional-Casa da moeda. Lisboa, 1988.
Hernâni Matos
http://www.blogger.com/profile/04935361929210155808


sábado, 17 de julho de 2010

O vinho na mitologia greco-latina

DIONISO E SÁTIRO - pintura sobre vaso grego, atribuída a Makron, cerca de 490 - 480 a.C. Antikenmuseen, Berlin.

Dioniso ou Baco, filho de Zeus e da princesa Semele, era o deus grego das festas, do vinho, da fecundidade, do lazer e do prazer, símbolo do desencadeamento ilimitado dos desejos e da libertação de qualquer inibição. É representado geralmente como um jovem imberbe, risonho e de ar festivo, de longa cabeleira, pegando um cacho de uvas ou uma taça numa das mãos e empunhando na outra um tirso (bastão envolvido em hera e ramos de videira e encimado por uma pinha). Tem sido sugerido o carácter fálico do tirso, no qual a pinha seria o símbolo do sémen.
Dioniso é por vezes figurado com o corpo coberto por um manto de pele de leão ou de leopardo, com uma coroa de pâmpanos na cabeça e conduzindo um carro puxado por leões. Pode igualmente ser apresentado sentado num tonel, segurando numa das mais uma taça donde absorve a embriaguez que o faz cambalear.
Dioniso é normalmente representado na companhia de outros bebedores:
- Sileno – Tutor de Dioniso, companheiro fiel e o mais velho, sábio e beberrão dos seus seguidores, que embriagado tinha o poder da profecia. Representado quase sempre bêbado, amparado por sátiros ou carregado por um burro.
- Sátiros - divindades menores da natureza com aspecto humano, cabelos eriçados, com grande cauda e orelhas bicudas de bode, pequenos cornos na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de proporções sobre-humanas, frequentemente mostrados em estado de erecção. Viviam nos campos e nos bosques, onde tinham relações sexuais frequentes com as Ninfas e as Ménades, que a eles se juntavam no cortejo de Dioniso, além de copularem com mulheres e rapazes humanos, cabras e ovelhas. A embriaguês era a fonte inesgotável da sua perpétua jovialidade e lubricidade.
- Ménades (ou Bacantes) - mulheres apaixonadas por Dioniso e entregues com fervor ao seu culto. Levadas à loucura pelo deus do vinho, que provocava nelas um estado de êxtase absoluto, entregavam-se a desmedida violência, derramamento de sangue, sexo, embriaguez e auto-flagelação. Representadas nuas ou vestidas com véus ligeiros, coroadas de hera e segurando um tirso ou um cântaro, por vezes tocavam flauta de dois tubos ou tamboril e entregavam-se a uma dança livre e lasciva (orgia ou menadismo), em total concordância com as forças mais primitivas da natureza. Vagueavam por montanhas e campinas e entregavam-se aos sátiros que também integravam o cortejo de Dioniso.
- Ninfas – jovens mulheres que povoavamm o campo, os bosques e as águas. São os espíritos dos campos e da natureza em geral, de que personificam a fecundidade e a graça. Apesar de serem consideradas divindades secundárias, a elas se dirigiam orações e por elas se nutria temor. Eram frequentemente alvo da luxúria dos sátiros.
O culto a Dioniso não tinha santuário fixo, sendo praticado onde quer que existissem adoradores do deus, na sua maioria mulheres (Ménades ou Bacantes). Os festivais realizados em homenagem do deus, eram basicamente festas da Primavera e do vinho. As danças frenéticas a que se entregavam as mulheres, davam-lhes uma sensação de liberdade e força, sendo-lhes atribuídos actos impressionantes como desenraizar árvores. As mulheres caçavam também animais que consumiam crus, acreditando que com este acto adquirissem a vitalidade e a imortalidade do deus. Os Gregos consideraram este culto nocivo e muitos governantes das cidades-estado procuraram proscrevê-lo.
Em 370 a.C., o culto a Dioniso (Baco) penetrou em Roma e tinha sacerdotisas conhecidas por bacantes. As festas, de natureza ritual, em homenagem ao deus Baco, conhecidas por bacanais eram nocturnas, secretas e frequentadas exclusivamente por mulheres durante três dias no ano. Posteriormente, os homens foram admitidos e as comemorações passaram a ocorrer cinco vezes por mês. A promiscuidade conjugada ao furor báquico no qual todos se entregavam a excessos de vinho e de sexo, estiveram na origem do saldo destas festas se saldarem por envenenamentos, testamentos falsos, desaparecimento de homens e mulheres, etc. Ao invadirem as ruas de Roma, dançando, soltando gritos estridentes e atraindo adeptos do sexo oposto em número crescente, os bacanais tornaram-se factor de desordem e de escândalo, o que levou à publicação de um decreto por parte do Senado, em 186 a.C., proibindo as bacanais em toda a Itália. Contudo, mesmo com a proibição, o culto não desapareceu naquele tempo.



DIONISOS E SÁTIRO – pintura sobre vaso grego, atribuída a Makron, cerca de 490-480 a.C. Museu de Belas Artes de Boston.

JUVENTUDE DE BACO - pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905), executada em 1884.

BACO - óleo sobre tela de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571 - 1610), executada em 1593-1594. Galeria dos Ofícios, em Florença.


TRIUNFO DE BACO E ARIADNA - fresco de Annibale Carracci (1560-1609), executado entre 1597 e 1600 na abóbada do Palácio Farnesio, Roma.


BACO SENTADO NUM TONEL - Óleo sobre tela de Peter Paul Rubens (1577-1640). Galeria dos Ofícios, em Florença.

O BÊBADO SILENO - óleo sobre madeira de Peter Paul Rubens (1577-1640), executado cerca de 1616-17. Alte Pinakothek, Munique.

SÁTIRO – pintura sobre vaso grego, atribuída a Epiktetos, cerca de 510 - 500 a.C. Museu de Belas Artes de Boston.

DOIS SÁTIROS – óleo sobre madeira de Peter Paul Rubens (1577-1640), executada em 1618-1629. Alte Pinakothek, Munique.

MÉNADE -  fragmento de uma taça da autoria de Macron, cerca de 480 a.C., Atenas - Departamento de Antiguidades Gregas, Etruscas e Romanas do Museu do Louvre.

BACANTE - óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905), executado em 1894. Colecção particular.

NINFAS, óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905), executado em 1878. The Haggin Museum, Stockton, California.


NINFAS E SÁTIRO, óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905), executado em 1873. Sterling and Francine Clark Art Institute, Williamstown, Massachusetts.
DIANA E AS SUAS NINFAS SURPREENDIDAS PELOS FAUNOS - óleo sobre tela de Peter Paul Rubens (1577-1640), executada em 1638-40. Museu do Prado, Madrid.