Mostrar mensagens com a etiqueta Defesa do Património. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Defesa do Património. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Dia Nacional do Azulejo - 2024


Batalha do Ameixial em 1663 (séc. XVIII). Painel de azulejos de uma das salas do Palácio Tocha,
construído no início do século XVIII para residência do capitão Barnabé Henriques e sua família.
No interior sobressaem azulejos que representam cenas campestres, mitológicas ou de batalhas
da História Regional. No edifício funciona actualmente o Museu Berardo Estremoz, inaugurado em
25 de Julho de 2020 e que está dotado de um extraordinário e grandioso acervo azulejar.


Azulejos e Identidade Cultural Nacional
Ao longo de mais de cinco séculos, o azulejo tem sido usado em Portugal, como elemento associado à arquitectura, não só como revestimento de superfícies, mas também como elemento decorativo.
Pela sua riqueza cromática e pelo seu poder descritivo, o azulejo ilustra bem a mentalidade, o gosto e a História de cada época, sendo muito justamente considerado como uma das criações mais singulares da Cultura Portuguesa e um paradigma da nossa Identidade Cultural Nacional.

Dia Nacional do Azulejo
A 6 de Maio assinala-se o Dia Nacional do Azulejo, criado por proposta do Projecto ”SOS Azulejo”’ datada de 2016 e aprovada por unanimidade pela Assembleia da República, em 24 de Março de 2017.
O Dia Nacional do Azulejo é um evento anual que tem como objectivo reconhecer esta tradição e património nacional, projectando a sua importância, constituindo-se, igualmente, numa ocasião de evocação da sua protecção e preservação.
O Projecto SOS Azulejo criado em 28 de Fevereiro de 2007, é de iniciativa e coordenação do Museu de Polícia Judiciária (MPJ), na dependência do Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais (IPJCC), e nasceu da necessidade imperiosa de combater a grave delapidação do património azulejar português que se verificou recentemente, de modo crescente e alarmante, por furto, vandalismo e incúria.

Património Azulejar de Estremoz
O património azulejar da cidade de Estremoz é riquíssimo e está maioritariamente distribuído pelos seguintes edifícios: Convento dos Congregados do Oratório de São Filipe de Néri, Ermida de Santo Cristo, Convento das Maltesas, Convento de São Francisco, Palácio Tocha, Igreja do Anjo da Guarda, Antigo Hospital da Misericórdia, Convento de Nossa Senhora da Consolação, Passos da Irmandade do Senhor Jesus dos Paços, Armaria de D. João V (Pousada da Rainha Santa Isabel), Igreja de Santa Maria, Capela da Rainha Santa Isabel, Igreja de São Tiago, Estação da CP de Estremoz, Quinta de Nossa Senhora do Carmo, Ermida de Nossa Senhora da Conceição e Ermida de Nossa Senhora dos Mártires.
Para além do revestimento interior destes edifícios, há que destacar ainda o extraordinário e grandioso acervo azulejar do Museu Berardo Estremoz, instalado no Palácio Tocha e inaugurado em 25 de Julho de 2020.

Hernâni Matos


O Milagre das Rosas. Painel de azulejos (126x173,5 cm) de meados do séc. XVIII,
da autoria de Policarpo de Oliveira Bernardes (1695-1778), pintor e azulejista alentejano,
pertencente ao chamado ciclo dos mestres, período em que se produziram as melhores peças
azulejares, do barroco português. Sacristia da Igreja do Convento de S. Francisco, Estremoz. 

Cena de caça (séc. XVIII). Painel de azulejos do Convento dos Congregados de S. Filipe Nery,
actual edifício dos Paços do Concelho de Estremoz. 

Dar de beber a quem tem sede (séc. XVIII). Um dos painéis de azulejos com as
virtudes Cardeais e Teologais, existentes na antiga Igreja da Misericórdia de Estremoz.

Adão e Eva no Paraíso (Séc. XVIII). Painel existente na Capela dos Passos
situada  no alçado exterior direito da Igreja do Convento de São Francisco. 

Milagre da criança salva das águas (c. 1725). Teotónio dos Santos (?). Painel de
azulejos  (2,60 m x 2,40 m). Capela da Rainha Santa Isabel do Castelo de Estremoz.

 Painel de azulejos (séc. XVIII) da Real Fábrica de Cerâmica de Estremoz.
Museu Municipal de Estremoz.

Painel de azulejos policromos de temática mariana (c. 1669).
Ermida de Nossa Senhora da Conceição, templo maneirista
situado nos arredores de Estremoz, edificado no último quartel
do século XVI. 

Painéis de azulejos (meados do século XVIII), saídos de uma grande
oficina lisboeta, cuja temática iconográfica é inteiramente dedicada
a cenas da vida da Virgem e da Infância de Jesus. Ermida de Nossa
Senhora dos Mártires, cuja origem remonta ao reinado de D. Fernando
e terminada pelo Condestável Dom Nuno Álvares Pereira, Senhor
da Vila de Estremoz.

 Estremoz – Mercado de Sábado (1940). Painel azulejar policromático da autoria
de Alves de Sá (1878-1972), fabricado na Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego,
em Lisboa. Estação da CP em Estremoz.

domingo, 28 de abril de 2024

Pastoras ofertantes de pezinhos

 

Fig. 1 - Pastoras ofertantes de pezinhos. Oficinas de Estremoz do último quartel do séc. XIX.


Na barrística popular de Estremoz existe uma figura cuja origem remonta, pelo menos, ao último quartel do séc. XIX e que é conhecida por “Senhora de pezinhos”. Trata-se de uma figura que tem como atributos, prescindir de base (ser assente nos pezinhos e no vestido/saia) e ter ambas as mãos assentes frontalmente nas pernas e abaixo da anca (Fig. 2).

O presente escrito tem por finalidade chamar a atenção para o facto de a “Senhora de pezinhos” não ser o único espécime da nossa barrística cujo assentamento se efectua nos pezinhos e no vestido/saia. Com efeito, existem também figuras de pastoras ofertantes do último quartel do séc. XIX, cujo assentamento é do mesmo tipo (Fig. 1). Trata-se de “Pastoras ofertantes de pezinhos”, que nos exemplares desta figura transportam um borrego ao colo e um cesto com queijos na cabeça. Outros exemplares haverá, segundo creio, que transportem aves ao colo e ovos na cabeça.

Hernâni Matos


Fig. 2 - Senhora de pezinhos. Ana das Peles (1869-1945). 

domingo, 14 de abril de 2024

Atributos, pormenores e estilo


Mulher a passar a ferro. Jorge da Conceição (1963-  ). Colecção do autor.


Prólogo
A barrística de Estremoz é diversificada, pelo que legitimamente se põe a questão de saber quais as características que os exemplares produzidos ao modo de Estremoz, não podem deixar de ter. Vou procurar dar uma resposta a essa questão num caso concreto.

Atributos
Na barrística de Estremoz, cada um dos chamados “Bonecos da Tradição”, goza de determinados atributos. Estes não são mais que as particularidades invariantes que obrigatoriamente um barrista deve ter em conta na confecção de cada uma dessas figuras. Essas particularidades estão associadas a cada uma dessas figuras e ajudam a identificá-las.
No caso da figura conhecida por “Mulher a passar a ferro” (Figs. 1 a 13) esses atributos são quatro: mesa, peça de roupa, ferro de engomar e mão direita da mulher a segurar o ferro;

Pormenores
Para além das particularidades invariantes atrás referidas, existem outras particularidades variáveis (pormenores) cuja inclusão na manufactura de uma figura, depende do livro arbítrio do barrista. No caso da figura conhecida por “Mulher a passar a ferro”, esses pormenores são os seguintes:
- MESA: pode variar o tipo de mesa, bem como a sua cor e a cor do tampo;
- FERRO DE ENGOMAR: pode ser de diferentes tipos;
- PEÇA DE ROUPA A SER ENGOMADA: de tipo e cor variável;
- PEÇAS DE ROUPA EXSTENTES EM CIMA DA MESA: Em número, tipo e cor variável;
- COBERTURA DO TAMPO DE MESA: pode existir ou não;
- MÃO ESQUERDA DA MULHER: pode estar assente sobre a mesa, segurando ou não a peça de roupa, mas pode estar também apoiada no corpo, em posição variável; 
- VESTIDO DA MULHER: de tipo, cor e componentes variáveis;
- OUTRO VESTUÁRIO DA MULHER: pode trajar avental ou ter um xaile nas costas;
- CABELO DA MULHER: o penteado é variável;
- CABEÇA DA MULHER: a cabeça pode estar a descoberto ou ser protegida por um lenço ou ainda estar ornamentada com uma canoa;
- GEOMETRIA DA BASE: rectangular ou trapezoidal, com as pontas vivas, adoçadas ou aparadas em bisel;
- TOPO DA BASE: verde-escuro simples ou pintalgado de zarcão, branco e amarelo. Em alternativa pode ter uma decoração que simula um chão, como por exemplo, de tijoleira;
- ORLA DA BASE: zarcão, castanho ou pintalgado com as cores da base.

Estilo
O estilo é o modo como cada barrista se exprime, revelando a sua individualidade através de marcas identitárias que lhe são próprias e que se repetem ao longo da sua produção.

Epílogo
A pluralidade de resultados distintos possíveis de obter na confecção de uma figura, mesmo dos chamados “Bonecos da tradição”, é reveladora da riqueza da barrística de Estremoz.

Publicado inicialmente em 6 de Outubro de 2020
Oficinas de Estremoz do séc. XIX. Colecção do autor.

Ana das Peles (1859-1945). Colecção Jorge da Conceição.

Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção Jorge da Conceição.

Sabina da Conceição (1921-2005). Colecção do autor.

Liberdade da Conceição (1913-1999). Colecção Jorge da Conceição.

José Moreira (1926-1991). Colecção do autor.


Maria Luísa da Conceição (1934-2015). Colecção Jorge da Conceição.

Jorge da Conceição (1963-  ). Colecção do autor.

Carlos Alves (1958-  ). Colecção do autor.

Ricardo Fonseca (1986-  ). Colecção do autor.

José Carlos Rodrigues (1970-   ). Colecção do autor.

Luís Parente (?  -   ). Colecção do autor.

Jorge Carrapiço (1968  -   ). Colecção do autor


#hernanimatos #bonecosdeestremoz #figurado de estremoz

domingo, 7 de abril de 2024

Lembrança da Olaria


Moringue com decoração fitomórfica. Manufactura da Olaria Alfacinha, Estremoz.
 Colecção do autor.
   
A Memória do Passado
A actividade de um coleccionador não se desenrola na maioria das vezes num mar de rosas. O coleccionador navega por entre escolhos, os quais terá de ser capaz de ultrapassar, a fim de poder levar a bom porto, a missão que a si próprio atribuiu. É o que se passa comigo, enquanto coleccionador de louça de barro vermelho de Estremoz. É que a olaria local extinguiu-se há algum tempo. Foi o fecho da crónica de uma morte prevista. Todavia, ela permanece bem viva no registo quântico da minha memória.
Vale-me ser um respigador nato e usufruir da capacidade de fazer um rápido reconhecimento da infinidade de objectos que aos sábados povoam o Mercado das Velharias, em Estremoz. Valem-me ainda os vendedores que sabendo dos meus gostos, me arranjam peças sem o compromisso de eu ter de ficar com elas. Valem-me também os “olheiros” amigos, que me dão conhecimento onde é que determinada peça que me possa interessar, se encontra à venda. Por vezes, a meu pedido e como meus mandatários, compram aquilo que me interessa. E tudo isto parece muito e de facto é, mas não é tudo.
A Lei de Lavoisier
Hoje existe um vasta profusão de vendas “on line”, nas quais se podem comprar objectos, não só a vendedores profissionais, mas também a quem, por um motivo ou por outro, os pôs à venda. Algumas vezes, por necessidade de fazer dinheiro, outras para reciclar coisas que já não lhes interessam e que ao transformarem em dinheiro, lhes permitem adquirir bens ou serviços nos quais de momento estão interessados. É uma aplicação prática da Lei de Lavoisier: “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo ser transforma“. Trata-se de um enunciado que trocado por miúdos e em português corrente, pode ser expresso assim: “O que não te interessa a ti, pode-me interessar a mim e vice-versa. Por isso, toma lá e dá cá”. Daí que os eco-militantes que negam a existência de um plano B, proclamem “Desperdício zero, já!”.
A viagem
Não estranhem pois que um exemplar da Olaria de Estremoz, residente em Beja, tenha mudado de ares e vindo até Estremoz, onde se instalou na minha casa, com direito a todas as mordomias. Bastou-lhe viajar através do serviço dos Correios, depois de eu ter ressarcido o anterior proprietário no acto de se ver livre do espécime. Tratou-se de uma viagem que não foi isenta de riscos, pois por vezes ocorrem descuidos por parte dos transportadores. Daí a necessidade de uma embalagem meticulosa e paciente, realizada com o jeito de carinhosos cuidados maternais. Foi o que aconteceu desta vez, pelo que ao abrir a embalagem normalizei a respiração, os batimentos cardíacos e a tensão arterial. O recipiente de barro estava bem de saúde e recomendava-se como vão ver.
O moringue
O viajante foi um moringue, recipiente para água com uma asa na parte superior e um gargalo em cada extremidade desta. O gargalo da extremidade mais larga destina-se a introduzir água e o da extremidade afunilada destina-se à saída da mesma. Para a beber, vira-se esta última extremidade para a boca e dá-se ao recipiente a inclinação adequada, de modo a que o esguicho que dela brota vá cair na boca do bebedor. A direcção de alinhamento dos gargalos é perpendicular à direcção de implantação da asa.
O moringue é em barro vermelho, fabrico de Estremoz, firmado pela marca incisa linear “OLARIA ALFACINHA ESTREMOZ” na superfície exterior, junto à base.
A decoração com motivos fitomórficos em alto-relevo, configura ramos de sobreiro, povoados de folhas serradas e de glandes. Trata-se de elementos decorativos, obtidos por moldagem, a que se segue uma colagem na superfície, recorrendo a barbutina.
A superfície do moringue onde assenta a decoração em relevo é lisa e nela se destacam, igualmente espaçadas, quatro faixas polidas, entre a base e o topo do bojo. Os gargalos são igualmente lisos e ostentam faixas polidas.
A asa configura um galho de sobreiro bifurcado nas duas extremidades. As bifurcações assentam no topo convexo do moringue, onde também se inserem os gargalos.
No bojo, a legenda “LEMBRANÇA / DE / ESTREMOZ “, distribuída por três filas paralelas com texto centralizado.
Significados da legenda
Trata-se de uma legenda que encerra em si múltiplos significados:  
- Em primeiro lugar que o moringue é um artefacto de barro, manufacturado em Estremoz.
- Em segundo lugar que tanto pode ter sido comprado por um forasteiro como por um autóctone para uso próprio ou para oferecer a alguém, com a mensagem expressa que é uma lembrança de Estremoz e de nenhum outro local.
- Em terceiro lugar e para além de lembrança de Estremoz é, sobretudo, uma lembrança da Olaria de Estremoz.
- Em quarto lugar, atesta a magia das mãos do oleiro que lhe deu forma, repetindo gestos ancestrais, herdados de Mestre ou de familiares ascendentes.
- Em quinto lugar, a Memória das mãos pacientes e hábeis das “polideiras” que ao decorarem a superfície, reforçaram toda a beleza que na morfologia, na volumetria e nas proporções, o moringue já ostentava em si.
- Em sexto lugar, a mensagem de que a Olaria de Estremoz é “sui generis” e por isso mesmo inconfundível.
- Em sétimo lugar, a afirmação orgulhosa de uma identidade cultural popular, local e regional, que encerra em si e é deveras notória.
- Em oitavo lugar, a lembrança de que Estremoz já foi terra de olarias, que por fatalidade ou talvez não, se extinguiram.
- Em nono lugar, a mensagem de que parafraseando o poeta João Apolinário, cantado por Luís Cília, “É preciso, imperioso e urgente” recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz, como modo de produção artesanal que integra o nosso património cultural imaterial.
- Em décimo lugar, a chamada de atenção àqueles que detendo as rédeas do poder local, andam embriagados pela inclusão da manufactura dos Bonecos de Estremoz na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Tornaram-se autistas em relação à Olaria de Estremoz e não revelam quaisquer sinais de estar interessados na sua recuperação. Onde é que já se viu isto? Só nesta terra. E depois ainda proclamam que “Estremoz tem mais encanto!”.
Acordai!
Nada mais adequado que evocar aqui um excerto do poema “Acordai” de José Gomes Ferreira, que musicado por Fernando Lopes Graça, constituiu, porventura, uma das mais apelativas “Canções Heróicas”, que serve para despertar consciências: “Acordai, / homens que dormis / a embalar a dor / dos silêncios vis!”.
Fala o Passado
A referência mais antiga aos barros e à Olaria de Estremoz remonta ao foral de D. Afonso III, datado de 1258, seguindo-se o foral de D. Manuel I, de 1512. Daqui para diante as referências histórico - literárias aos barros de Estremoz são múltiplas: António Caetano de Sousa (1543), Giovanni Battista Venturini (1571), Francisco de Morais (1572), Inventário de D. Joana (irmã de Filipe II), correspondência de Filipe II, Padre Carvalho (1708), Francisco da Fonseca Henriques (1726), João Baptista de Castro (1745), Duarte Nunes de Leão (1785), D. Francisco Manuel de Melo, Alexandre Brongniart (1854), Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1925).
Os barros de Estremoz têm sido cantados por poetas como: António Sardinha, Celestino David, Maria de Santa Isabel, Guilhermina Avelar, Maria Antónia Martinez, Joaquim Vermelho, António Simões, Mateus Maçaneiro e Georgina Ferro. Mas não só os poetas eruditos têm tomado a Olaria como tema de composições. Também ao longo dos anos, os nossos poetas populares têm feito quadras e décimas que integram o valioso Cancioneiro Popular Alentejano. Não resistimos a divulgar aqui duas dessas quadras, recolhidas no início do século passado por António Tomaz Pires, de Elvas, nos seus Cantos Populares Portugueses. São quadras com um conteúdo algo jocoso. Eis uma: “Minha mãe não quer que eu case / Com homem que seja oleiro; / Mas eu faço nisso gosto, / Pois tudo é ganhar dinheiro.”. Eis a outra: “Se tens pele grossa, / Põe-lhe pós de arroz. / Que eu vou ser oleiro / Para Estremoz”.
A herança do Passado
De acordo com a Mitologia Grega, Atlas foi um dos Titãs condenado por Zeus a sustentar os céus eternamente, após o assalto gorado ao Olimpo com a finalidade de alcançar o poder supremo do Mundo. Pela nossa parte, herdámos do Passado tradições que não se podem perder, porque integram o conjunto das marcas da nossa identidade cultural popular, local e regional. Por isso, tal como Atlas, transportamos sobre os ombros uma pesada responsabilidade: a de recuperar, preservar e salvaguardar a Olaria de Estremoz. É claro que pelo cargo que ocupam, a responsabilidade de uns é maior que a de outros.

Estremoz, 18 de Outubro de 2019
(Jornal E nº 231, de 31-10-2019)

O oleiro Jerónimo Augusto da Conceição, membro do clã Alfacinha, a modelar uma
bilha. Fotografia de Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.

Amélia, mulher de Jerónimo, a efectuar a decoração fitomórfica dum jarro.
Fotografia de Artur Pastor, dos anos 40 do séc. XX.

domingo, 24 de março de 2024

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Apresentação do livro PATRIMÓNIO AZULEJAR DE ESTREMOZ, de Elisabete Pimentel

 



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 27 de Julho de 2021.

O Museu Berardo Estremoz irá receber, dia 9 de março de 2024, pelas 16:00 horas, o lançamento do livro "Património Azulejar de Estremoz: Capela da Rainha Santa Isabel, Capela de Nossa Senhora dos Mártires e Igreja de Nossa Senhora da Consolação", de Elisabete Pimentel, com grafismo de Rui Pimentel, publicada pelas Edições Húmus e patrocinada pelo Município de Estremoz.

A obra pretende dar a conhecer o património azulejar de alguns dos monumentos religiosos mais relevantes de Estremoz, descrevendo-os artisticamente e aprofundando o conhecimento já existente sobre os mesmos. O trabalho surge no âmbito de uma filosofia de valorização do património cultural de Estremoz, onde o conhecimento, a difusão da informação e a fruição são os grandes pilares.

Elisabete Pimentel tem formação em Letras, História, e também em Artes, Pintura e Cerâmica, área que exerceu ativamente com a criação de peças escultóricas, criação de painéis decorativos de azulejos, mas também fazendo cópias de azulejos do século XVIII. Radicada na cidade de Estremoz faz parte do Grupo Cidade – Cidadãos pela Defesa do Património de Estremoz e entendeu que era importante estudar o rico património azulejar de Estremoz, enquadrá-lo historicamente o que resultou na publicação do estudo e divulgação da “Capela da Rainha Santa Isabel, Capela de Nossa Senhora dos Mártires e Igreja de Nossa Senhora da Consolação”, considerando ser este o primeiro volume do estudo a que se propôs.

Entrada livre! Venha assistir e participar!

 Hernâni Matos

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Cristo na coluna


Cristo na coluna. José Moreira (1926-1991). Colecção particular.


A imagem devocional da figura, da autoria do barrista estremocense José Moreira (1926-1991), representa um episódio da Paixão de Cristo conhecido por flagelação de Jesus, também designado por Cristo na coluna. Trata-se de um episódio recorrente na arte cristã, sobretudo em ciclos da Paixão ou como parte dos ciclos da Vida de Cristo. O evento da flagelação[i] é mencionado em três dos quatro evangelhos canónicos: João 19:1, Marcos 14:65 e Mateus 27:26. A flagelação constituía um prelúdio comum à condenação pela crucificação sob o direito romano.
Jesus, de barba e cabelo compridos, com os pés assentes num chão pedregoso e as mãos atadas por uma corda, encontra-se amarrado a uma coluna[ii] e com o corpo vergado para a frente.
Enverga apenas uma protecção genital e ostenta por todo o corpo as marcas vermelhas da flagelação, fruto dos golpes infligidos pelos soldados romanos.
A exiguidade do vestuário de Jesus durante a flagelação e o martírio na coluna, traduz a humilhação a que os romanos o pretenderam submeter. Por sua vez, as marcas de flagelação simbolizam a humildade, o sofrimento e o sacrifício de Jesus em nome da humanidade.

BIBLIOGRAFIA
VATICAN NEWS. Os Santuários da Flagelação e da Condenação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:
https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-04/santuarios-flagelacao-condenacao-jesus.html . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIPÉDIA. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIWAND. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:  https://www.wikiwand.com/pt/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].

 Hernâni Matos



[i] A flagelação era uma forma de suplício infringido pelos romanos, visando castigar crimes, obter confissões ou preparar execuções capitais. Para esse efeito, recorriam ao “flagelo”, chicote constituído por tiras de cabedal ou corda com pedaços de ferro nas pontas, com o qual açoitavam as vítimas.

[ii] No contexto do simbolismo e arte cristãos, a coluna é um dos “instrumentos maiores” da Paixão de Cristo. Outros são: a cruz, a coroa de espinhos, o chicote, a esponja, a lança, os pregos e o véu de Verónica. Para além destes, existem ainda outros que são considerados “instrumentos menores”. Uns e outro são vistos como armas que Jesus utilizou para derrotar Satã e são tratados como símbolos heráldicos.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Uma jóia da História Postal de Estremoz


 
Fig. 1

Fig. 2


Prólogo
Há documentos cuja interpretação permite ao investigador catalogá-los na classe das “jóias”. Uma tal inclusão pode ser devida ao teor do seu conteúdo escrito, bem como ao contexto em que este foi produzido, assim como ao grafismo do próprio documento. Pode até acontecer que estas três situações coexistam, o que potencia o valor e o interesse do documento. Vamos ver que é o que se passa com um bilhete-postal ilustrado, pertencente ao meu arquivo de História Postal de Estremoz.

Descrição do bilhete-postal ilustrado
Trata- se de um inteiro postal, mais propriamente um bilhete-postal de Boas Festas do tipo “Tudo Pela Nação,” com selo impresso da taxa de $30 (30 centavos), destinado ao Serviço Nacional, obliterado com a marca do dia da estação dos CTT, do tipo de 1928, do dia 24 de Dezembro de 1942.  O bilhete-postal tem como motivo os Bonecos de Estremoz. A ilustração é de Laura Costa (activa 1920-1950), e o bilhete-postal foi emitido pelos CTT em 1942.
Na parte superior do rosto do bilhete-postal (Fig. 2), a ilustração é constituída por um tradicional “Berço do Menino Jesus” da barrística popular estremocense, o qual se encontra ladeado por dois ramos de azevinho.
No verso do bilhete-postal (Fig. 1) a ilustração representa uma cena no areal da praia da Nazaré e envolve um casal com os seus trajes tradicionais, acompanhados de duas crianças. Aparentam estar a montar no areal a “Adoração dos Reis Magos”, Presépio de 6 figuras, constituído pela Sagrada Família e pelos 3 Reis Magos.
O bilhete-postal ilustrado foi expedido em 24 de Dezembro de 1942 (véspera do Dia de Natal) por Sá Lemos, dirigido ao Dr. Marques Crespo, em Estremoz.

Sá Lemos, o expedidor do bilhete-postal
José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, discípulo de Mestre António Teixeira Lopes (1866-1942), começou a trabalhar como professor e simultaneamente Director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, em 21 de Abril de 1932, data da sua tomada de posse, com base no Decreto de 15 de Março de 1932 publicado no Diário do Governo nº 82 – 2ª série de 8 de Março de 1932.
Pela sua acção fez ressurgir os Bonecos de Estremoz, cuja produção tinha cessado com a morte de Gertrudes Rosa Marques (1840-1921) em 1921. Tal ressurgimento foi conseguido recorrendo primeiro à velha barrista Ana das Peles (1869-1945), que foi o instrumento primordial dessa recuperação e depois ao Mestre oleiro Mariano da Conceição (1903-1959) - O “Alfacinha”, o qual foi o instrumento de continuidade dessa recuperação.
No período que esteve em Estremoz e que se prolongou até 30 de Setembro de 1945, foi vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz entre 1938 e 1945, durante dois mandatos do então Presidente da Câmara, Engº Manuel Bicker de Castro Lobo Pimentel. São de sua autoria a maqueta em barro e em tamanho natural do Monumento aos Mortos da Grande Guerra e da Fonte do Sátiro, ambos em Estremoz.

Marques Crespo, o receptor do bilhete-postal
José Lourenço Marques Guerreiro Crespo (1871-1955), médico, maçon, membro do Partido Republicano Português e Presidente da Câmara Municipal de Estremoz (1923-1926). Foi fundador e director do semanário regionalista “Brados do Alentejo” (1931-1951), fundador da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa de Estremoz, membro da comissão fundadora do Teatro Bernardim Ribeiro e Presidente Honorário do Orfeão Tomás Alcaide. Publicou entre outras obras, a monografia “Estremoz e o seu termo regional” (1950).

Estremoz doutros tempos
O facto de o bilhete-postal ter sido expedido apenas na véspera de Natal, também merece alguma reflexão. Decerto que o remetente sabia que no dia de Natal não havia distribuição domiciliária de correspondência, pelo que a missiva só seria recebida já depois do Natal. O que é que o terá levado a expedir o bilhete-postal postal só na véspera de Natal? Não sei. Todavia, posso admitir como plausíveis duas circunstâncias: – A chegada tardia à estação dos CTT de Estremoz, deste tipo de bilhete-postal de Boas Festas: o nº 42 (preparação do Presépio) de uma série de 12, numerados de 35 a 46, todos com ilustração de Laura Costa e ostentando o mesmo tipo de selo impresso; - O conhecimento tardio por parte do remetente da existência do bilhete-postal nº 42 (preparação do Presépio).
O endereço do destinatário resume-se ao nome deste e não inclui o nome do arruamento nem o número de porta. Para este facto contribuíram, decerto, factores como: - O destinatário ser uma personalidade com destaque na sociedade local e por isso muito conhecido; - O número de arruamentos ser muito inferior ao que é na actualidade; - O brio profissional dos carteiros que os levava a empenhar-se na missão de “levar a carta a Garcia”.

Epílogo
Sá Lemos considerara recuperada a produção de Bonecos de Estremoz em artigo publicado no jornal Brados do Alentejo, em 10 de Novembro de 1935. Ainda nesse mesmo ano, os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do Mundo Português. Nesta exposição estiveram também expostos os Bonecos de Estremoz de Mestre Mariano da Conceição, os quais no pavilhão expositor eram pintados por sua mulher Liberdade da Conceição (1913-1990), face à impossibilidade de Mestre Mariano estar presente por ser funcionário público.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram notoriedade pública e projecção internacional com a Exposição do Mundo Português em 1940, de tal modo que os CTT os utiliza como motivo dos bilhetes-postais de Boas Festas de 1942. Deve ter sido uma suprema felicidade para Sá Lemos, que através do bilhete-postal endereça "um abraço de Boas Festas" ao seu amigo Marques Crespo, o qual através da missiva pôde constatar que os Bonecos de Estremoz andavam a ser divulgados pelos CTT através de mensagens natalícias.
Não há dúvida que a mensagem, bem como o seu contexto e o grafismo, legitimam completamente o título escolhido para o presente texto.

Hernâni Matos