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domingo, 29 de junho de 2025

Jorge da Conceição e o Porteiro do Céu

 

Fig. 1 - São Pedro (1984). Jorge da Conceição (1963-  ).

A aparição de São Pedro
As horas são como as cerejas. Atrás de uma vem sempre outra. E foi assim que em Outubro passado, já a desoras, ainda me encontrava vigilante no meu posto de pescador à linha, a ver aquilo que conseguia pescar na internet. Já não me lembro da palavra chave que naquela altura utilizei como engodo no motor de busca do OLX. O que é verdade, é que fui surpreendido pelo aparecimento de “peixe graúdo”.
Tratava-se de uma imagem de São Pedro (Fig. 1), de grandes dimensões, identificada como “Boneco de Estremoz” e que na base ostentava a marca manuscrita “Jorge Conceição / Palmela 1984” distribuída por duas linhas, ladeada à esquerda e um pouco mais abaixo pelo carimbo “ESTREMOZ / PORTUGAL” (2 cm x 0,8 cm), distribuído igualmente por duas linhas. Trata-se de uma marcação (Fig. 2), que por desconhecimento meu não foi inventariada nas págs. 81 e 85 do meu livro (1). Se em 2018, à data de edição do livro, podia dizer “Quem dá o que tem, a mais não é obrigado”, na actualidade impõe-se o preenchimento da lacuna, do que aqui dou conta para usufruto do leitor.
A figura, da autoria do prestigiado barrista Jorge da Conceição Palmela, fora criada há quase quarenta anos, na sua primeira fase de produção. De imediato, contactei o vendedor, revelando o meu interesse na sua aquisição e solicitando o envio de coordenadas bancárias, visando o pagamento do item pretendido. O vendedor respondeu-me na manhã seguinte e eu de imediato, efectuei o respectivo pagamento. O inesperado “achado”, dada a sua natureza, ocupa um lugar de destaque e muito especial na minha colecção.

Onde se fala da sorte
Quem soube do sucedido, logo me disse:
- És um homem de sorte!
E eu repliquei sempre:
- Qual sorte, qual carapuça!
Não fosse eu um internauta persistente, com a mente povoada de sonhos e a ânsia de descobrir o que há para ser descoberto e nunca teria tido a sorte que me atribuem. De resto, a nossa tradição oral regista os provérbios: "Cada qual é artífice da sua sorte." e "A sorte ajuda os ousados." Mas houve quem continuasse:
- Isso são provérbios. O que é um facto, é que és um homem de sorte!
Bom. Aqui comecei a ficar com os azeites. Então o meu trabalho de pesquisa persistente não valia nicles? E vá daí, pus-me a pescar por aí, o que diz o pensamento ocidental acerca da sorte e respiguei as seguintes afirmações: “A sorte sorri aos fortes” (2); “A sorte ajuda os audazes” (3); “A diligência é a mãe da boa sorte” (4); “Acredito muito na sorte; verifico que quanto mais trabalho mais a sorte me sorri” (5), “Creio muito na sorte. Quanto mais trabalho, mais sorte pareço ter” (6); “A sorte não existe. Aquilo a que chamais sorte é o cuidado com os pormenores” (7); “A sorte marcha com aqueles que dão o seu melhor” (8); “A seguir ao trabalho duro, o maior determinante é estar no sítio certo à hora certa” (9).
Municiado com estes nobres pensamentos, procurei um a um, os meus opositores, fervorosos adeptos da sorte e disparei-lhos em frases seguidas, mesmo à queima roupa. E perguntei-lhes depois:
- E então? Continuam a acreditar na minha sorte?
Não houve um único que tivesse a coragem de me dizer que sim. Creio que alguns ficaram mesmo convencidos que eu tinha razão. Mas outros, adeptos das crenças cegas, lá no fundo continuaram a pensar que não. Todavia, não arranjaram argumentos para me fazer frente e “fecharam-se em copas”.

Jorge da Conceição visto à lupa
Como refiro no meu livro (1), “Tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano de Jorge da Conceição e desde essa época que o vejo como um perfeccionista que procura dar o melhor de si próprio em tudo aquilo que faz, o que se reflecte não só na concepção como nos acabamentos das figuras que modela.”. No livro dei conta de que Jorge da Conceição é “… filho da barrista Maria Luísa da Conceição (1934-2015), neto dos barristas Mariano da Conceição (1903-1959) e Liberdade da Conceição (1913-1990) e sobrinho de Sabina da Conceição Santos (1921-2005), irmã de Mariano.”. E concluí: ”Filho e neto de peixes sabe nadar, pelo que Jorge da Conceição estava condenado a ser barrista, tomando contacto com o barro desde criança e criando apetência pela manufactura de Bonecos como via fazer à avó e à mãe. Foi assim que aprendeu as técnicas e a arte de modelar o barro, manufacturando Bonecos enquanto estudava, até à idade de 21 anos”, quando frequentava no Instituto Superior Técnico, o Curso de Engenharia Electrónica e de Computadores – Variante de Electrónica e Telecomunicações. A imagem de São Pedro de Jorge da Conceição, datada de 1984, pertence à parte final da sua primeira fase de produção, já que ele decidiu interromper a sua actividade como barrista, para só a retomar em 2013, após uma carreira profissional na área de consultoria que durou 25 anos e o manteve afastado da modelação do barro. Todavia, a chamada do barro, que transporta na massa do sangue, levou-o em 2013 a dedicar-se exclusivamente à barrística.
Jorge da Conceição participou em 1983 e 1984, na I na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz. Foi nesta última que alguém comprou a imagem que hoje é minha. Na altura, eu não lhe comprei nada, pois o dinheiro não era muito e eu andava fascinado, como hoje ainda ando, pelo trabalho de sua avó, Liberdade da Conceição, que tal como sua mãe e ele próprio, me concedeu o privilégio da sua amizade. De sua avó, tenho na minha colecção um bom núcleo de figuras, com especial destaque para imagens de Santo António, São João Baptista e São Pedro, qualquer delas de grandes dimensões.

Felicitações de Jorge da Conceição
Quando soube da minha “pescaria”, Jorge da Conceição felicitou-me vivamente pela aquisição da imagem, já que são escassas as peças dessa época na posse de coleccionadores. Disse-me ainda que na II Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz, para além de algum “peixe miúdo” à disposição do público, tinha ainda para vender as imagens de Santo António, São João Baptista, São Pedro e São Marçal, das quais vendeu apenas as duas últimas, integrando as duas primeiras a sua colecção. Com o regresso do seu São Pedro à terra mãe, é caso para reconhecer de uma forma proverbial que “O bom filho a casa torna”.

BiMestre Jorge da Conceição
Em 2019 teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, um Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz. A formação da componente técnica do Curso foi liderada por Jorge da Conceição, que contou com o apoio inestimável de Isabel Água e de Luís Parente. Ali se formou um grupo de barristas, os quais se encontram presentemente a produzir. São eles: Ana Catarina Grilo, Inocência Lopes, Joana Santos, José Carlos Rodrigues, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Manuel J. Broa, Sara Sapateiro, Sofia Luna e Vera Magalhães. Todos eles o reconhecem como uma referência de topo da nossa barrística e praticamente todos o tratam carinhosamente por Mestre, já que foi com ele que aprenderam.
As criações de Jorge da Conceição ostentam marcas identitárias singulares e por isso notáveis. Em primeiro lugar, o rigor e a perfeição na modelação, com integral respeito pelas proporções, pela morfologia, pelas texturas, bem como a representação do movimento. Em segundo lugar, um cromatismo harmonioso que resulta de uma sábia combinação de cores. Tudo isso contribui para que os trabalhos de Jorge da Conceição sejam reveladores da sua incomensurável mestria. Trata-se de facetas do seu trabalho, que ultrapassam o âmbito restrito dos seus formandos e catapultam o barrista a uma nova dimensão de Mestre. Daí eu ter assumido a iniciativa terminológica de o considerar um biMestre. De resto, tenho de lhe agradecer o prazer que me dá em usufruir do deleite de espírito causado pela visualização dos seus trabalhos. Daí que lhe confesse: Jorge,

De si é sempre admirável,
toda e qualquer criação.
Tudo o que faz é notável,
Mestre Jorge Conceição.

Oração a São Pedro
Senhor São Pedro, Pescador, Apóstolo, 1.º Bispo de Roma, 1.º Papa e Mártir, já que sois Porteiro do Céu, atrasai a abertura das portas da abóbada celeste, para que eu me possa libertar da culpa de há cerca de 40 anos não ter comprado Bonecos de Mestre Jorge da Conceição. Dai-me mais uns anos bons, para que eu possa preencher as muitas lacunas que ainda tenho na minha colecção. Amém.

(1) – MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Edições Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, Outono de 2018.
(2) - Terêncio (185 a.C.-159 a. C.), poeta romano
(3) - Virgílio (70 a.C-19 d.C.), poeta romano
(4) - Miguel de Cervantes (1547-1616), romancista espanhol.
(5) . Thomas Jefferson (1743-1826), estadista norte-americano.
(6) - Ralph Waldo Emerson (1803-1882), escritor norte-americano.
(7) - Winston Churchill (1874-1965), estadista inglês.
(8) - Horace Jackson Brown Jr. (1940-2021), romancista americano.
(9) - Michael Bloomberg (1942- ), magnata norte-americano.

Publicado em 20-04-2022


Fig. 2 - Marcação no interior da peanha da imagem de São Pedro. 

Fig. 3 - Jorge da Conceição em 1985.

sábado, 21 de junho de 2025

O elogio das palavras – III


RUA DE NISA (1932).  Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970).
Aguarela sobre papel (41 x 50 cm).

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As palavras acompanham-nos continuamente, mesmo em sonhos.
Há sempre o risco de esquecer algumas palavras, pelo que nos podem faltar palavras.
É permitido revisitar palavras nossas e mesmo inventar palavras. O que não se deve fazer, é reproduzir palavras dos outros, como se fossem nossas. Tão pouco se devem deturpar palavras.
Por vezes há que poupar palavras, por uma questão de tempo ou de espaço. Não se deve é balbuciar palavras, porque é indício de insegurança.
É através de palavras que defendemos pontos de vista e damos ênfase àquilo em que acreditamos e àquilo de que gostamos. Também é através das palavras, que damos conta daquilo que rejeitamos e não nos agrada.
As palavras são armas com as quais nos defendemos de agressões verbais ou não. Mas são também armas de ataque com as quais praticamos também agressões verbais.
A utilização das palavras, nem sempre é ética, já que através delas é possível dissimular, confundir e mentir. O mesmo se passa em relação à possibilidade de através das palavras, se atemorizar, aterrorizar, intimidar e dominar.
Há palavras que encerram em si, o purismo da língua. Coexistem com outras que são regionalismos ou integram a gíria popular e o calão. Há ainda palavras que constituem neologismos, estrangeirismos ou internetês.
As palavras são pilares que sustentam a língua, como factor de identidade nacional.
As palavras são porto de abrigo. Nelas nos refugiamos, na fuga de tempestades e na procura de bonanças.
As palavras constituem uma tábua de salvação. A elas nos agarramos, quando tudo parece estar perdido.
As palavras sobrevivem à morte de quem as pronuncia. Se não todas, pelo menos algumas, através do seu registo, tanto escrito como falado.
As palavras têm alquimia. Com elas conseguimos transmutar o nosso estado de espírito e o estado de espírito de quem nos ouve.
A nobreza das palavras é desigual. Algumas têm nobreza como um touro Miura. E para aqui não é chamada a nobreza de sangue azul, que pouco mais é que coisa nenhuma. A nobreza não é monárquica. É uma atitude republicana.
As palavras têm carácter e têm que ser usadas com carácter. Uma das maiores tragédias sociais, é a falta de carácter de alguns que as usam, servindo-se de cargos para os quais erradamente foram designados.
As palavras exigem plena fidelidade à sua essência e à mensagem que lhes está subjacente. Traí-las é trair o texto, o que pode configurar uma atitude de rendição.
As palavras têm que ser frontais. Caso contrário, quem as profere, não tem as partes no sítio.
Há palavras para o tudo e palavras para o nada.
Há palavras para acabar com as palavras:
– PIM! O TEXTO CHEGOU AO FIM!
Jornal E nº 188 – 30-11-2017
Publicado inicialmente em 2 de Junho de 2018

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O elogio das palavras - II


VOLTA DO MERCADO (1925) -  Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970).
Aguarela sobre papel (30x50 cm).

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Há palavras sólidas, como as há líquidas e até voláteis.
As palavras têm estrutura. Podem ser cristalinas ou amorfas.
As palavras são materiais com que moldamos, forjamos ou carpintejamos textos.
As palavras têm transparência ou não, já que também há palavras opacas.
As palavras têm brilho. Podem ser brilhantes ou baças.
É necessário saber escolher as palavras.
As palavras permitem gerar códigos e cifras.
As palavras permitem-nos comunicar com os outros. Através delas podemos transmitir emoções e sentimentos, bem como descrever situações, eventos e fenómenos.
As palavras não têm todas a mesma dificuldade. Há palavras mais fáceis e palavras mais difíceis.
Há palavras que são incontornáveis.
Há palavras sondas, com as quais formulamos perguntas, para saber o que os outros pensam.
As palavras pertencem a uma de dez classes gramaticais, reconhecidas pela maioria dos gramáticos: substantivo, adjectivo, advérbio, verbo, conjunção, interjeição, preposição, artigo, numeral e pronome.
As palavras têm género. Podem ser masculinas ou femininas. Não há palavras gays, nem lésbicas.
Há palavras que designam agrupamentos, enquanto que outras se referem apenas a um componente único.
A ortografia das palavras têm variado ao longo das épocas e as mudanças nunca são pacíficas, como acontece no presente, com o país partido em dois: os detractores e os defensores do novo acordo ortográfico.
As palavras podem ser características de uma época, ainda que haja palavras intemporais.
Em certos locais e em certas épocas, algumas palavras foram consideradas impróprias, constituindo tabu e sendo mesmo proibidas.
Há palavras características de cada profissão, mas há igualmente as que lhe são transversais.
Há palavras que são mais usadas num dado período da vida que noutros.
Há palavras características de cada regime. Umas são monárquicas, outras são republicanas.
A religiosidade das palavras é variável. Há palavras laicas e há palavras religiosas que alguns podem considerar mesmo santas ou sagradas. E há ainda a palavra de Deus, que repetidamente é invocada no culto.
As palavras têm mãos que ao entrelaçarem-se com outras, conferem consistência ao texto.
As palavras têm pés para encontrar e percorrer o seu próprio caminho.
As palavras são peças que fazem funcionar o texto.
As palavras são bicicletas que pedalamos e que nos permitem fazer caminho, à procura de um texto.
As palavras fazem-nos suar, porque nem sempre é fácil parir palavras que traduzam exactamente o que nos vai na alma.
As palavras são arados. Com eles lavramos a terra-mãe do pensamento.
As palavras são as mensageiras do pensamento.
As palavras são arautos, tanto de boas como de más notícias.
As palavras são escadas que ligam os patamares do texto.
As palavras servem de ponte, umas às outras.
As palavras são cerejas, que puxam umas pelas outras.

Jornal E nº 187 – 16-11-2017
Publicado inicialmente a 31 de Maio de 2018

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O elogio das palavras - I


ESTUDO PARA O "VIRA" (1904). Alfredo Roque Gameiro (1864-1935). Aguarela sobre
papel (39 x 26,5 cm). Museu de Aguarela Roque Gameiro (Minde).

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As palavras são multifacetadas como as pedras preciosas. Podem ser encaradas sob vários ângulos. Podem significar uma coisa ou outra, ou mesmo quase coisa nenhuma.
As palavras têm o seu próprio visual. Há palavras elegantes e outras que não o são tanto. Há mesmo palavras deselegantes.
As palavras têm a sua própria sonoridade. Há palavras ruidosas, como as há graves ou melodiosas. Há palavras que fazem eco e outras que esbarram contra muros de silêncio.
As palavras têm cheiro. Há palavras que fedem a distância, tal como as há aromáticas, constituídas por agradáveis e subtis fragrâncias.
As palavras têm sabor. Há palavras doces, tal como as há azedas, amargas ou ácidas.
As palavras são tácteis. Há palavras macias e mesmo aveludadas, mas também há palavras ásperas, como as há peganhentas e mesmo viscosas.
Há palavras terrestres, como as há aéreas, subterrâneas e aquáticas.
As palavras são caminheiras que se deslocam entre as margens do papel.
As palavras são mariposas que cruzam os ares, entre bocas e ouvidos.
As palavras em movimento geram correntes, ondas e turbilhões.
As palavras geram movimentos de apoio e de solidariedade, mas também de repulsa.
As palavras permitem saltar obstáculos e mesmo mover montanhas.
As palavras têm a sua própria velocidade. Há palavras lentas, tal como as há velozes.
As palavras têm o seu tempo próprio, não devem ser ditas antes, nem depois dele.
As palavras têm uma aceleração própria. Há palavras cadenciadas, como as há acelerantes ou atrasadoras.
As palavras têm forma, umas são angulosas e outras são redondas, já que não tem ponta por onde se lhes pegue.
As palavras têm simetria ou não. Há palavras simétricas e palavras assimétricas.
As palavras têm cor. Umas são mais coloridas, outras mais cinzentas e mesmo negras. Há mesmo palavras para todas as cores do espectro do arco-íris.
As palavras têm tamanho. Umas são curtas como a polegada, outras são compridas como a légua da Póvoa.
As palavras têm volume. Umas são como senhoras anafadas, outras como modelos anorécticos.
As palavras têm peso. Umas são pesos leves e outras, pesos pesados, tal como no boxe.
As palavras não têm todas igual densidade. Há palavras maciças, como há palavras balofas e mesmo ocas. As mais compactas submergem no texto, enquanto que as de compactidade reduzida, flutuam à flor do texto.
As palavras têm força. Há palavras fortes e palavras fracas.
As palavras têm potência. Umas são potentes, outras nem tanto e outras são mesmo impotentes.
A eficácia das palavras é variável. Umas são eficazes, outras não.
As palavras não têm todas a mesma duração. Há palavras imortais, como as há duradouras e breves. Há mesmo palavras que já ultrapassaram o prazo de validade.
As palavras não têm todas a mesma temperatura. Há palavras escaldantes, mas também as há cálidas, mornas, frias e gélidas.
Jornal E nº 182 – 27-07-2017
Publicado inicialmente em 27 de Julho de 2017

quinta-feira, 8 de maio de 2025

A rua onde eu moro, que impressão me faz

 

Pedras há muitas


Há 52 anos que moro na rua de Santo André em Estremoz e há mais de 70 que habito na área circundante da vetusta Igreja de Santo André, demolida criminosamente nos anos 60 do século passado, vítima da sanha empreendedora do autodenominado Estado Novo, o qual não olhou a meios para ali construir o actual Palácio da Justiça.
Tenho plena consciência de que a “minha” rua não é o centro do Universo pelo facto de eu lá morar, nem tampouco o centro da cidade, apesar de se situar na sua zona central, contígua ao Rossio Marquês de Pombal, considerado a sala de visitas da urbe. Contudo, a minha sensibilidade leva-me a ter a percepção da realidade de tal microcosmo. Daí que o imperativo da minha consciência cívica me leve a partilhar com o leitor, em tom coloquial, algumas preocupações que por um motivo ou por outro, grassam o meu espírito.

Pedras há muitas
No início do passado mês de Fevereiro rebentaram as águas à terra-mãe, mesmo à entrada da rua de Santo André, junto ao local onde resido. Depois da rápida e bem-sucedida intervenção dos competentes serviços, o problema estava resolvido já no dia 4. Como memória desse dia, decorridos que são 3 meses, perduram as pedras da calçada, encostadas à parede lateral do Palácio da Justiça, como se de contraforte se tratasse. É sabido que a Justiça em Portugal está a precisar de uma reforma profunda. Porém, daí até pôr contrafortes nos Palácios da Justiça que por aí há, vai uma grande distância. É caso para dizer:
- Pedras há muitas, calceteiros é que não!

A sede do felino

A sede do felino
Há dias, em tarde soalheira, fui dar com um gatinho abandonado a beber água de uma cova da calçada, que a chuva da véspera ali vertera. Trata-se de uma das muitas concavidades presentes no local, cuja existência remonta ao tempo dos anteriores senhores. São depressões que teimam em manter uma convivência indesejada com os transeuntes e os veículos que por ali transitam. A imagem enternecedora do gatinho sequioso perdura ainda na minha retina. De tal modo que sou levado a perguntar:
- Que acontecerá ao gatinho se taparem as covas?

 O cemitério de beatas

O cemitério de beatas
A calçada negra, irregular e escalavrada, encontra-se em determinada zona, pejada e conspurcada por uma multiplicidade de beatas nela semeadas, preenchendo os interstícios das pedras. Em tempos de pandemia foram para ali atiradas, pisadas e esmagadas por fumadores, no decurso das infindáveis filas junto à padaria e ao multibanco. Por ali permanecem, vítimas da sua e nossa pouca sorte de termos um tal cemitério em plena via pública. Nem o céu as salvou. Pelo contrário, as águas celestiais vertidas por São Pedro sempre que assim o entendeu, encarregaram-se do resto, consolidando no solo as beatas jazentes. Qualquer delas, em ar de desafio, parece dizer-nos:
- Daqui não saio, daqui ninguém me tira!
No tempo em que havia varredores, elas já não estariam ali. Mas hoje, quando as vassouras são passeadas pela calçada, só é recolhido o lixo maior. Por isso, as beatas ali permanecem como libelo acusatório da falta de civismo dos fumadores, bem como indício e denúncia muda da falta de higiene urbana no local.
Todavia, o despontar das ervas nos passeios, associado a um cíclico renascer da natureza, constituem um lenitivo para as nossas mágoas e um hino de esperança em melhores dias que hão de vir.

Todos ao molho e fé em Deus

Todos ao molho e fé em Deus
No tempo da coligação da mãozinha com as setas (1986-1990) foi criado um parque de estacionamento em cima do passeio, junto aos contentores, o qual sem sobressaltos tem sido utilizado ao longo do tempo. A mãozinha livrou-se das setas (1990-1993), mas o parque de estacionamento continuou, prosseguindo no tempo da foicinha (1994-2005), a que se seguiu novamente o regresso da mãozinha (2005-2009). Depois, foi a vez do polegar levantado, à maneira de César (2009-2021). Retirado este de cena, lá veio novamente a mãozinha (2021-2025) e o parque continuou a ser usado. Por outras palavras, as pessoas têm usufruído do parque de estacionamento ao longo de quase 40 anos.
Acontece que por muitos afazeres ou por estarem distraídos, os senhores nos quais descarregamos periodicamente o papelinho, se esqueceram todos de legalizar o estacionamento, colocando no local a sinalização vertical prevista na lei. Tal omissão foi corrigida recentemente com a aposição no local de sinalização vertical, que restringe o estacionamento a 3 lugares, visando facilitar o acesso aos contentores do lixo e o trânsito pedonal para a Rua 5 de Outubro. Tratou-se de uma medida acertada, uma vez que o estacionamento no local foi sempre do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”, como é timbre do Zé português.
Apesar de tudo, o problema não ficou resolvido, uma vez que a instalação da sinalização vertical não foi acompanhada da marcação horizontal a amarelo no pavimento, identificando a localização dos 3 lugares de estacionamento. Na sequência dessa omissão, continua “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Por outras palavras, o estacionamento no local continua a ser do tipo “Todos ao molho e fé em Deus”. Daí que cada um vá estacionando o carro onde lhe dá mais jeito. Até ver.
Publicado no jornal E nº 356 de 8 de Maio de 2025

terça-feira, 15 de abril de 2025

Benfica - Arouca

 

Bacia de barro vermelho vidrado, de Redondo. Decoração esgrafitada e pintada
com base na tradicional tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo creme.

O emproamento verbal de quem se regozija com o empate Benfica-Arouca, leva-me a concluir que “A mau falar, boa resposta dar”, acrescido de “Quem muito fala, pouco acerta” e como nada está decidido, remato proclamando: “Bom é saber calar até ser tempo de falar”.

- VIVA O BENFICA!

A matriz do meu pensamento, expressa e veiculada através do texto supra, é invariante e inalterável. Não reage a diatribes verbais reactivas, independentemente da sua origem e motivação. Fazê-lo seria contemporizar com o clima tóxico alimentado pelo fanatismo que grassa nas hostes clubistas.
A meu ver, o exemplo a apresentar à juventude, que é o futuro, é a da elevação e da verdade desportiva, a qual deve ser transversal, abrangendo dirigentes, jogadores e adeptos. O contrário é suicídio dos intervenientes e a morte do desporto. Para tal não podem contar com o meu contributo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Rua de Santo André em Estremoz vai ter cara lavada

 


Estremoz, 1 de Abril de 2025

Foi tornado público que o Município de Estremoz deliberou recentemente regularizar a intransitável calçada da Rua de Santo André, bem como combater o estacionamento selvagem ali patente.

Trata-se de um gesto de elevada compreensão pelas dificuldades sentidas pelo trânsito pedonal naquela artéria citadina.

Trata-se igualmente de um gesto magnânimo relativamente aos peões que por ali se vêem forçados a transitar, não só moradores como também clientes dos estabelecimentos comerciais instalados naquela via urbana.

Pessoalmente, congratulo-me com o alcance social das providências tomadas pelo Município.

Bem hajam!

Hernâni Matos

(Morador há 52 anos na Rua de Santo André,
onde até ao presente era frequente ouvi-lo vociferar:
- ONDE É QUE JÁ SE VIU UMA RUA ASSIM!)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Sinos: Velhos Tempos e Tempo Novo


Igreja de Santo André com as suas duas torres sineiras (Foto de C. J. Walowski - 1891).
Situada na Rua 5 de Outubro, em Estremoz, no local onde hoje está o Palácio da Justiça.
Muito rica e imponente no seu estilo barroco, foi sede de Paróquia. A sua construção
iniciada em 1705, levou 20 anos, tendo sido inaugurada em 26 de Novembro de 1725.
Foi demolida em 1960, por ordem do regime de Salazar, o que foi sem sombra de dúvida,
o maior crime alguma vez perpetrado contra o património construído em Estremoz. 

Velhos Tempos
O som dos sinos é um dos sons mais antigos que povoam as memórias da minha infância. Quando frequentava a Escola Primária, tanto o início das aulas como da missa dominical eram anunciadas por toques de sinos.
Ao longo dos séculos os sinos têm sido utilizados como alfaias religiosas que assinalam os actos litúrgicos, dão as horas e funcionam como meio de comunicação, tocando a rebate a fogo e anunciando desastres como naufrágios, bem como reuniões de conselhos de anciãos ou de câmaras, assim como reunindo o povo para trabalhos agrícolas ou batidas a lobos.
Os sinos distinguem-se uns dos outros pelo modo como se exprimem: variando a altura, a intensidade e o timbre, assim como a duração, o ritmo e o compasso do som.
As técnicas de percussão sineira incluem: picar, repicar, badalar, bater, rebater, tanger, destanger, bambolear, bandear e dobrar. Através delas podem ser gerados códigos acústicos entendíveis pela comunidade: canto em ocasiões de festa e choro em momentos de dor.

Literatura Oral
O sino encontra-se abundantemente registado na nossa literatura de tradição oral. Assim, a nível de ADAGIÁRIO, diz-se: “Menino e sino só com pancada”, “O sino chama para a missa mas não vai a ela”, “Os sinos tangem-se pelos mortos e não pelos vivos”, “Quem toca o sino não acompanha a procissão”, “Sino forte, vento húmido”, “Sino pequeno berra muito”. No campo da GÍRIA POPULAR são conhecidas expressões como: Andar num sino (Andar contente), Sino (Copo de vinho), Sino da Sé (Copo de litro para vinho, usado nas tabernas do Porto), Sino de correr (Toque que marcava a hora de fechar as tabernas e recolherem a casa, judeus e mouros), Sino grande (Pena máxima aplicada ao réu). No âmbito das LENGALENGAS são conhecidas diversas, entre as quais esta: “Amanhã é Domingo / Toca o sino / O sino é de ouro / Mata-se o touro / O touro é bravo / Ataca o fidalgo / O fidalgo é valente / Defende a gente / A gente é fraquinha / Mata a galinha / Para a nossa barriguinha”. Quanto a ADIVINHAS, existem várias cuja solução óbvia é o sino. Eis uma: "Alto está, / alto mora, / todos o veem, / ninguém o adora./ O que é? ".

Literatura Portuguesa
Em prosa, a referência literária mais antiga relativa a sinos remonta a Portugaliae Monumenta Historica (870). Posteriormente surge em António Tenreiro – Itinerário (1560), Frei Pantaleão de Aveiro – Itinerário da Terra Santa (1593), Frei Gaspar de São Bernardino – Itinerário da Índia por Terra (1611), Fernão Mendes Pinto – Peregrinação (1614) e mais tarde ainda em Eça de Queirós - O Primo Basílio (1878), Camilo Castelo Branco - A Maria da Fonte (1885) e Ramalho Ortigão – As Farpas – I (1887). Na poesia, entre os inúmeros poetas que falam de sinos, destacamos: Luís de Camões - Os Lusíadas (1572), António Nobre – Os sinos (1892), António Correia de Oliveira – O sino (1899), Fernando Pessoa - Ó sino da minha aldeia (1913), Florbela Espanca - Noite trágica (1923) e António Lopes Ribeiro – Procissão (1956).

Tempo Novo
A Constituição da República Portuguesa consigna como direitos fundamentais, o direito à diferença e a igualdade de género. Daí que sob o ponto de vista social, não faça qualquer sentido existirem dois toques distintos, conforme o finado é homem ou mulher. Trata-se de uma questão que a Igreja deve rever, já que ela própria nos leva a crer que aos olhos de Deus todos são iguais. Quanto ao comum dos mortais não interessa saber se morreu homem ou mulher, mas apenas quem foi que partiu e isso os sinos não dizem. 

Publicado inicialmente em 27 de Janeiro de 2016

terça-feira, 4 de março de 2025

Os xexés


Xexé (1921). Ilustração de Leal da Câmara (1876-1948). Capa da revista “ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA”, nº 781 de 5 de Fevereiro de 1921

Uma figura característica do Carnaval doutros tempos, pelo menos até ao primeiro quartel do século XX, era o “xexé”, caricatura do Portugal miguelista, caído em desgraça. O personagem foi retratado entre outros por José Malhoa (1895), Rafael Bordalo Pinheiro (1903), Augusto Bobone (antes de 1910) e Leal da Câmara (1921). O xéxé trajava uma casaca de seda colorida, calção e meia branca, sapatos de fivela, cabeleira de estopa, punhos de renda e um enorme chapéu bicorne, à moda de finais do séc. XVIII - séc XIX. Usava muitas vezes lunetas, andava armado com um grande facalhão de madeira e um cacete adornado com um chavelho. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é um substantivo masculino que designa “Personagem carnavalesco típico, caracterizado como um velho ridículo e senil”. Para este dicionário, o termo terá sido utilizado pela primeira vez no “Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa”, de Caldas Aulete. Como refere a “Gíria Portugueza” [1], “Chéché” é um termo popular que designa “Mascarado repelente e ridículo, em Lisboa, que importuna os transeuntes pedindo “dez reisinhos p’r’o velho””. De acordo com o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” [2], “Xexé” é também um substantivo e adjectivo com os dois géneros, aplicável a “quem está desprovido de lucidez em decorrência de idade avançada”, sendo sinónimo de ”senil”, “caduco” e “gagá”. É ainda aplicável “àqueles que possuem comportamento ridículo ou estúpido”. Julgo que é neste último sentido, que o termo seja aplicável aos responsáveis políticos ao mais alto grau que:
- Se queixam-se que as suas reformas chorudas não chegam para as despesas pessoais;
- Chamam “piegas” àqueles que civicamente protestam pela dureza das condições de vida que lhes estão a ser impostas;
- Mandam os licenciados, mestres e doutores emigrarem, por cá não arranjarem emprego; 
- Mandam os militares sair das fileiras, quando estes protestam civicamente;
- Reformados da política, nos sugam dinheiro diariamente com as suas benesses vitalícias.
Perante um panorama sombrio deste quilate, apenas uma atitude é possível: o direito à indignação, acompanhado da legítima conclusão de que somos governados por “xéxés”. É caso para bradar bem alto:
- ACABEMOS COM ESTE CARNAVAL!

Publicado inicialmente a 15 de Dezembro de 2012

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] – HOUAISS, António et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.

Xexé (1895). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela (27,4 x 47,4 cm).
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa.

Xexé (1898), desfilando na Praça D. Pedro IV, em Lisboa. Fotógrafo não identificado.
Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da Câmara
Municipal de Lisboa.

Xexé (1903). Ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). Capa da revista “A PARÓDIA”,
nº5 de 18 de Fevereiro de 1903.

Xexé (anterior a 1910), desfilando na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Augusto Bobone
(1852-1910). Negativo de gelatina e prata em vidro (9 x 12 cm). Arquivo Fotográfico da
Câmara Municipal de Lisboa.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A Pintura


Verão" ou "A Ceifa". Dordio Gomes (1890-1976). Aguarela sobre papel.

A Pintura enche-me as medidas. Quem sabe se os meus textos não serão pinceladas caligráficas, na procura vã de encontrar a forma dum seio de mulher que desvie as minhas mãos da escrita? Com elas, registo o voo rasante dos pardais sobre a eira e a sonoridade dos ralos à hora da sesta. Assim saboreio o oloroso gaspacho que me refresca e alimenta o ventre, bem como o vinho espesso que mastigo para não me lembrar do que não quero. Assim me vejo e me revejo, naquilo que de mais natural e ancestral há em mim.

Publicado inicialmente em 24 de Setembro de 2013

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Massa crítica


O GRUPO DO LEÃO (1885). Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Óleo sobre tela (200 x 380 cm). Museu do Chiado, Lisboa.

O conceito de “massa crítica”, originário da física nuclear, é extensível a múltiplos domínios como sociologia, política, dinâmica de grupos, publicidade, marketing, etc. Em qualquer destas áreas, “massa crítica” é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que um determinado fenómeno possa ocorrer e adquirir uma dinâmica própria que lhe permita autosustentar-se e crescer.
Uma questão que se põe imediatamente é a de saber se a comunidade estremocense tem ou não, massa crítica que lhe permita induzir dinâmicas sociais, indispensáveis ao desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Uma análise do problema poderá levar à conclusão de que Estremoz não tem massa crítica. Contudo, a situação não é irreversível como passo a demonstrar.
Estremoz tem entre os seus filhos, naturais ou adoptivos, bastantes individualidades com currículo respeitável, com percursos de vida notáveis, com provas dadas e obra feita que merece o reconhecimento da comunidade. Todavia, atomizados na sua individualidade não constituem massa crítica. Estão dispersos por variadas coutadas doutrinárias, ideológicas e partidárias, muitas vezes estanques, avessas a pensar para além do dogma que as sustenta, o que inevitavelmente as acabará por aniquilar. Estão ainda disseminados por capelas e tertúlias, que reproduzem alguns dos vícios anteriores. Estão igualmente espalhados por grupos de acção escolar ou confinados a torres de marfim ou celas individuais de pensamento pró-monástico.
Naquelas circunstâncias nunca constituirão massa crítica, já que como nos ensina o gestaltismo, o todo é mais que um mero somatório das suas partes, pois tem características próprias. Estas só poderão ser alcançadas se todos e cada um tiverem a humildade de reconhecer que atomizados não conseguem chegar a parte nenhuma, limitando-se a cumprir um caminho de penitência. Todavia é impensável e ilegítimo que cada um dos múltiplos grupos cogite em arregimentar os restantes, visando o seu auto-reforço. O que é possível e legítimo é cada um desses grupos ou individualidades proceder a uma profunda reflexão que lhe permita separar em termos de objectivos e de linhas de acção, o que é essencial do que é acessório. Feito isto, é então possível procurar equacionar quais os caminhos que podem ser percorridos conjuntamente. Então, Estremoz terá massa crítica, indutora de dinâmicas sociais conducentes ao desenvolvimento nas suas distintas vertentes. Então poderá ocorrer uma mudança de paradigma, que como Fénix renascida das cinzas, nos devolva o orgulho de sermos estremocenses.

Publicado inicialmente em 18 de Dezembro de 2014

sábado, 22 de fevereiro de 2025

As duas culturas


 Imagem recolhida no blogue "Esqueci a Ana"

                                                                        À Catarina, minha filha:

Nos meus tempos de rapaz, já depois dos 18 anos, um Homem com H grande e que se chamava Charles Percy Snow (1905-1980), viu publicada em Portugal em 1965 e graças à acção clarividente de Snu Abecassis (1940-1980), a bem amada de Francisco Sá Carneiro (1934-1980), o livro "As Duas Culturas".
Embora não folheie e releia aquela obra há muito tempo, com ela ocorreu uma mudança de paradigma. Percebi que o problema da cisão da Cultura em dois campos aparentemente opostos (A Ciência e as Humanidades) é um falso problema que alguns procuram acicatar. A posição do Homem no Universo é unívoca e singular. Ele é o objecto e o actor principal de ambas. A ele cabe fazer uma síntese dialéctica e pô-las ao seu serviço.
Na nossa pátria lusitana, como percursor dessa ideia peregrina, que constitui afinal um ovo de Colombo, temos o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), quando pela voz de Álvaro de Campos (1) proclama que:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Também o matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948) na sua conferência “A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo“ (edições Mocidade Livre – 1933), conclui que “a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo”. Para ele também só há uma Cultura. Daí falar em “Cultura Integral do Indivíduo”
Igualmente o professor Rómulo de Carvalho (1906-1997), poeticamente conhecido por António Gedeão, soube integrar na sua magistral poesia e duma forma natural, aquilo que faz parte do arsenal científico da nossa formação. De igual modo eu, físico de formação, andei por caminhos poéticos convergentes, apesar de distintos. Aí pelos 20 anos fui desintegracionista, sob a influência do poema “A Astronave” de Armando Ventura Ferreira (Arcádia-1963) e manuscrevia poemas com tinta cor de barro – a cor do meu Alentejo e dos campos de Estremoz, os quais oferecia nas ruas de Lisboa aos transeuntes que os queriam aceitar. Integrava então um grupo heterogéneo, o qual se dispersou no tempo e que foi emergindo posteriormente, alguns com certa notoriedade. É dessa época de não-rima e com pontuação à Saramago, o excerto:

endotermizaste em mim uma amizade no tempo
cristaliza agora analiticamente um amor no espaço
e nunca mais nos bombardearemos com palavras virgens
ávidonautas, sexonautas, astronautas seremos
astronautas partiremos na minha nave
para anunciarmos aos povos do infinito-dimensional
que como experimentados sexólogos terrestres
descobrimos por fim o metafísico deus dos rabis

Publicado inicialmente a a 1 de Outubro de 2013

 (1) - s.d. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 110.