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sábado, 30 de novembro de 2024

Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa


Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Cartoon de Rui Pimentel,
impresso na folha relativa a este mês de Maio,  num calendário editado pelo CNBDI - Centro
Nacional de Banda Desenhada e Imagem (Amadora).


Não sei quantas almas tenho
Fernando Pessoa (1888-1935)

Não sei quantas almas tenho.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa (1888-1935)


Publicado inicialmente em 7 de Dezembro de 2015

#Poesia Portuguesa - 072

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

NA JANELA DO TEMPO


 Novo livro de Georgina Ferro apresentado

na Sociedade de Artistas Estremocense

Reportagem de Hernâni Matos. Fotografias de Manuel Xarepe


João Ferro na abertura da sessão. Na mesa: Fernando Mão de Ferro, Georgina Ferro
e Hernâni Matos. 

Um aspecto da assistência.

A Sessão de apresentação
Com o Salão de Festas da Sociedade de Artistas Estremocense literalmente cheio, teve lugar a partir das 16 horas e 30 minutos do passado dia 28 de Setembro, a sessão de lançamento e apresentação do livro “NA JANELA DO TEMPO / TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO”, da autoria de Georgina Ferro, editado em Julho passado pelas edições Colibri, com uma tiragem de 500 exemplares.
A sessão foi coordenada por Fátima Crujo e a intervenção de abertura coube a João Ferro, Presidente da Direcção. Na Mesa encontravam-se o editor do livro, Fernando Mão de Ferro, Hernâni Matos e a autora, que falaram por esta ordem.
Coube a Hernâni Matos fazer a apresentação formal da obra, finda a qual solicitou uma calorosa salva de palmas para a autora, que agradeceu emocionada. Seguiu-se a leitura de excertos de estórias do livro pela filha Sónia Ferro e pelos netos Clara Ferro e Tiago Ferro. No final, a autora autografou o livro para o muito público presente.


Hernâni Matos fazendo a apresentação formal da obra.

A filha Sónia Ferro, lendo um excerto do livro.

Os netos Clara e Tiago Ferro, lendo passagens do livro.

A autora Georgina Ferro, autografando o livro.

A autora
A autora, professora aposentada do 1º ciclo, é natural de Manteigas, onde nasceu a 8 de Dezembro de 1948, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição. Daí que, segundo diz, se tenha sentido “sempre abençoada e protegida por todas as mães: a Mãe Natureza, a Mãe Celestial e a Mãe da Terra”. A autora revela-nos que repartiu o tempo de infância ente Manteigas, Aldeia do Bispo (Sabugal) e Covilhã. Frequentou a Instrução Primária até à 3ª classe em Aldeia do Bispo (Sabugal) e a 4ª classe em Manteigas. Ingressou depois no Ensino Liceal no Colégio de Nossa Senhora Auxiliadora, no Monte Estoril. Em 1967 ingressou na Escola do Magistério Primário de Évora e terminado o Curso, começou a leccionar o Ensino Primário no ano de 1969 em Rosário (Alandroal), a que se seguiram Veiros, Selmes (Vidigueira), Aldeia da Serra e Glória, onde leccionou 32 anos, até se aposentar em 2003.
Fixou-se em Estremoz em 1972 e aqui casou e teve 3 filhos: Sónia, Pedro e Inês. Sem nunca ter perdido os laços afectivos à terra natal e aos territórios da sua infância, Georgina é cumulativamente uma estremocense adoptiva, que tem participado activamente na vida social da Comunidade em múltiplos aspectos: educativos, cívicos e culturais.
Conheço seguramente a Georgina desde o início do exercício do Magistério Primário na Freguesia da Glória, da sua ligação à Comunidade, do seu reconhecimento por parte da mesma e do seu amor às coisas campaniças.
Lembro-me de partilhar há muito com a Georgina uma grande admiração pelo “Ti Rolo” da Aldeia de Cima (Glória), que exercia sobre nós um fascínio incomensurável, pela sua oralidade transbordante e pelos artefactos de arte pastoril nascidos das suas mãos mágicas, nos quais projectava toda a imaginária popular, lavrada em chifres e paus sabiamente escolhidos.
Lembro-me do nascimento da sua filha Sónia e tive o privilégio de ser professor de Física de 12º ano do seu filho Pedro. Foi uma experiência encantadora, pois além do Pedro ser um aluno fortemente motivado, eu tive oportunidade de pôr em prática o método de ensino-aprendizagem personalizado, preconizado por muitos pedagogos. É que o Pedro era o único aluno da turma. Nenhum de nós deixou os seus créditos por mãos alheias e a experiência pedagógica foi um êxito.
Lembro-me do envolvimento da Georgina no Projecto Serra de Ossa, desde o início, no tempo da liderança de Gil Malta e de ela ter participado em 1998, conjuntamente com outros professores, entre os quais eu me incluo, nas “Segundas Jornadas da Serra d’Ossa”, levadas a efeito na Escola Secundária da Rainha Santa Isabel. A sua bem-sucedida intervenção oral nessas jornadas, foi o embrião dos seus primeiros livros, publicados ambos em 2005: “Plantas Medicinais da Serra d'Ossa” e “Por um Amanhã Mais Verde, Mezinhas Caseiras com Plantas da Serra d'Ossa”.
Em Setembro de 2012, a Georgina concedeu-me o privilégio de participar na apresentação pública do meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”, o que muito me congratulou.
Em Dezembro de 2013 a Georgina brindou-nos com o lançamento do seu livro de poesia “O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL”, editado pela Colibri, o qual foi apresentado na Casa de Estremoz pela Maria do Céu Pires e pela Francisca de Matos.
Desta feita, coube-me a mim fazer a apresentação formal do seu mais recente livro “NA JANELA DO TEMPO / TRADIÇÃO, CONTRABANDO E EMIGRAÇÂO”, na sequência do convite que me foi endereçado pela autora e que eu gostosamente aceitei.


A obra
Fisicamente é um livro brochado, de 22,8 x 16 cm e 236 páginas, dado à estampa pelas prestigiadas Edições Colibri de Fernando Mão de Ferro. Tem capa a cores de Raquel Ferreira, gizada a partir de fotografia de Abel Cunha. Na primeira badana figura uma pequena biografia e a fotografia da autora e na segunda badana, um excerto de uma das estórias do livro. Este tem prefácio de José Carlos Lage, o qual confessa que é “Fácil e ao mesmo tempo difícil” falar das poesias e das crónicas de Georgina. Por sua vez, em posfácio impresso na contracapa, Francisca de Matos afirma e muito bem, que “Esta obra é, sobretudo, uma grande lição de vida, um legado que não deve, não pode ser esquecido”.
O livro é um livro de estórias ou não fosse Georgina, para além de notável poetisa, uma extraordinária contadora de estórias. Não estórias quaisquer, nem tão pouco inventadas ou arquitectadas, mas estórias reais ocorridas no tempo da sua infância, repartida entre Manteigas, Aldeia do Bispo (Sabugal) e Covilhã.
São estórias com personagens reais, de carne e osso, como o Ti Júlio, a Ti Mariana, a Senhora Isabel Augusta, o Ti Zé Ramos, a Menina Zéfinha, o tio António Pantalona, o tio Zé Manso e não sei quantos mais, numa infinidade numerável que não consegui quantificar. São eles que constituem aquilo que com orgulho, Georgina chama “A Minha Gente”.
São estórias contadas e redigidas numa escrita fluida e ágil, eficaz na pintura descritiva das paisagens rurais e do interior das casas aldeãs. Escrita que é também uma partilha intimista das emoções e sentimentos dos personagens, incluindo Georgina, também ela própria, personagem por direito próprio e inalienável. Tudo sempre minuciosamente filigranado ao pormenor, numa linguagem rica, valorizada pelo uso de vocábulos regionais, cujo sentido, se necessário pode ser decifrado num glossário que antecede o índice final.
São estórias do tempo em que nas aldeias se tocavam as Trindades.
As hortas eram regadas com água tirada das noras e das picotas. Comia-se daquilo que a terra dava e em situações de carência havia partilha e entreajuda ente vizinhos e familiares. Todavia, a falta de dinheiro para bens de mercearia e para comprar entre outras coisas, petróleo para alumiar, levavam alguns, mais aflitos e mais afoitos, a entrar no contrabando através da raia de Espanha ou a dar o salto para França.
Apesar de tudo ou talvez por isso, rezava-se a Deus, à Mãe de Jesus, ao Anjo da Guarda e a Santo Antão para proteger o gado.
A menina Zefinha andava de taleigo à cabeça, a ti Mariana remendava as ceroulas do Ti Júlio e a ti Neves do Ti Júlio punha-lhe ventosas e papas de linhaça, a ver se ele arribava.
A roupa era cosida, remendada e transformada, passando dos mais crescidos para os mais pequenos. O pão era amassado de tarde para ficar a dormir à noite e os mais velhos davam a bênção aos mais novos antes destes adormecerem.
Isto e muito mais, são registos de memórias de tempos idos dos personagens do livro. Tempos e vivências difíceis e duras, mas também de afectos, partilhas e tradições numa Comunidade onde Georgina nasceu e cresceu, com a qual se identifica e que pela mesma é reconhecida e idolatrada.
Georgina é, pois, uma guardadora de memórias, muitas delas guardadas no presente livro e que por serem reconhecidas pela Comunidade que a viu nascer e crescer, integram a memória colectiva local e contribuem com a sua quota parte para a memória colectiva regional e para a memória colectiva nacional.
É a memória colectiva que nos ajuda a construir e manter a nossa identidade cultural e histórica, preservando tradições, valores e experiências comuns.
É a memória colectiva que nos permite aprender com os erros e sucessos do passado, o que é essencial para o desenvolvimento e a evolução da sociedade.
A memória colectiva desempenha um papel crucial no exercício da cidadania e da democracia, pois é através da memória colectiva que as lutas e conquistas dos nossos antepassados são lembradas e honradas, incentivando a luta por um futuro melhor e mais justo.
Daí a importância de que se reveste o livro, cuja leitura vivamente recomendo.

Hernâni Matos

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

ESTREMOZ - O neo-realismo a passar por aqui


Fig. 1 - Capa de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957)
para a 1ª edição (1952) de GANDAIA, romance
neo-realista de Romeu Correia.


Aqui se fala da oferta em 1955 do romance neo-realista
GANDAIA de Romeu Correia
 pela poetisa estremocense Maria Guiomar Ávila (1919-1992),
 à sua amiga e conterrânea,
a poetisa Maria de Santa Isabel (1910-1992). 



Preâmbulo
É conhecido o meu interesse pela arte e pela literatura neo-realistas como expressões de resistência e luta contra o fascismo.
Em Abril do corrente ano criei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, uma secção de POESIA NEO-REALISTA, onde até ao presente momento, divulguei 127 poemas de 24 poetas neo-realistas.
No nº 333, do jornal E, de 26 de Abril de 2024, comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, sob a epígrafe “POESIA E ARTE NEO-REALISTA / A luta contra o regime”, divulguei um conjunto de 6 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas e 13 poemas neo-realistas, qualquer deles a meu ver, notáveis e paradigmáticos.
Recentemente tive oportunidade de partilhar com o público, 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, pertencentes ao meu acervo pessoal. Os mesmos integraram a exposição “NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / COLECÇÃO HERNÂNI MATOS”, que de 15 de Junho a 15 de Setembro esteve patente ao público na Sala de Exposições Temporárias do Museu Municipal de Estremoz Prof. Joaquim Vermelho. A mostra integrou-se num conjunto de iniciativas, de índole diversificada e plural, sob a epígrafe "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”, em boa hora promovidas pelo Município de Estremoz.
Paralelamente, como bibliófilo, tenho enriquecido o meu acervo de obras literárias de autores neo-realistas com aquisições no Mercado das Velharias em Estremoz. Ali vão parar livros que já integraram outras bibliotecas e que agora vão fazer outros pessoas felizes. Lá diz a lei de Lavoisier. “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Recentemente adquiri um lote apreciável de obras neo-realistas, entre as quais se situam dois livros que estão na origem do presente texto e no final vão perceber porquê.

GANDAIA – Romance de Romeu Correia
Comprei recentemente o livro GANDAIA [1] (Fig. 1), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1952), editado por Guimarães & Cia. Editora, Lisboa, com capa de Manuel Ribeiro de Pavia.

Sinopse de GANDAIA
“Nesta obra Romeu realça de uma forma muito viva a vida difícil dos tanoeiros, que decidem em boa hora criar uma cooperativa, que acabaria por ser boicotada pelos donos dos armazéns de vinho da Margem Sul...
O neo-realismo continua muito presente neste livro, com Romeu a falar do povo e de todos os seus problemas, mas também da sua ligação ao associativismo, essa marca almadense, neste caso particular, à Incrível Almadense.” [2]

Dedicatória e assinatura de posse
Logo na primeira página tem uma dedicatória, manuscrita a tinta azul: “Para a Maria Palmira, com um grande abraço de amizade da Maria Guiomar Ávila / 16-IV-955” (Fig. 2).
A terceira página ostenta a assinatura de posse: “Maria Palmira” (Fig. 3)

Fig. 2 - Dedicatória de Maria Guiomar a Maria Palmira.

Fig. 3 - Assinatura de posse de Maria Palmira.

Fig. 4 - Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses
 e Vasconcellos Alcaide (1910-1992).

Fig. 5 - Maria Guiomar Ávila (1919-1992).

Quem foi Maria Palmira? Trata-se de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos Alcaide (1910-1992) (Fig. 4), poetisa estremocense que com o pseudónimo literário de Maria de Santa Isabel, publicou: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior (1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997).
O seu avô paterno, Alberto Osório de Castro (1868-1946), foi magistrado, político, escritor e poeta. Passou largos anos em Goa, Moçâmedes, Timor e Luanda. Foi ministro da Justiça do Governo de Sidónio Pais e amigo fraterno do magistrado, professor e poeta Camilo Pessanha, (1867-1936).
A sua tia-avó, Ana de Castro Osório (1872-1935), grande paixão do poeta Camilo Pessanha (1867-1926), foi escritora, jornalista, pedagoga, feminista, maçónica e militante republicana.
Quem foi Maria Guimar Ávila? Trata-se de Maria Guiomar Ávila (1919-1992) (Fig. 5), professora e poetisa, natural de Estremoz, que publicou postumamente o livro de poesia “À janela da Vida” (1998).

OS TANOEIROS – Romance de Romeu Correia
Comprei também recentemente o livro OS TANOEIROS (Fig. 6), romance de Romeu Correia, brochado, 1ª edição (1976), editado por Parceria A. M. Pereira, Lisboa, com capa de H. Mourato. A obra OS TANOEIROS, constitui uma versão refundida de GANDAIA, publicada 24 anos depois, com o título que tinha sido proibido pela Censura.

Fig. 6 - Capa de H. Mourato para a 1ª edição (1976) de
OS TANOEIROS, romance neo-realista de Romeu Correia.

Sinopse de OS TANOEIROS
No Prefácio diz Romeu Correia: “Os Tanoeiros é um romance que trata da decadência desta indústria, quando o vasilhame de madeira começa a sofrer concorrência de novos materiais. Os navios-tanques, os camiões cisternas, os depósitos de cimento, os recipientes de ferro, vão apressar o dobre de finados dos tanoeiros, desses artífices que, durante séculos, prepararam as aduelas de madeira macia, domando-as amorosamente ao fogo, para logo as cintar com arcos de aço. A história, que tem o seu início nos já longínquos anos trinta, termina vinte anos depois, em plena metade do nosso século, tão decisivo quão cruel no seu inexorável progresso técnico.
Aflorando os mil problemas do agregado familiar do homem-tanoeiro, as suas esperanças, lutas e canseiras numa hora de agonia para tão remota e respeitada profissão, este livro ressoará, assim, talvez, dramaticamente, como um requiem por esse velho ofício.”

Dedicatória
A primeira página do livro ostenta uma dedicatória do autor (Fig. 7), manuscrita a tinta preta: “Para a Sr.ª D. Maria Fernanda Andrade, com muita estima do Romeu Correia 14/7/1980”.

Fig. 7 - Dedicatória autógrafa de Romeu Correia a
D. Maria Fernanda Andrade.

Epílogo
Conheci pessoalmente as duas poetisas. Maria Guiomar Ávila morava no nº 18 da rua 5 de Outubro, em Estremoz, no edifício onde após o 25 de Abril funcionou a primeira sede do PPD. Maria Palmira morava na Casa da Horta Primeira na Rua da Levada em Estremoz e era casada com Roberto Augusto Carmelo Alcaide (1903-1979), proprietário dum armazém de tabacos no Largo General Graça, autodidacta, pintor, caricaturista, maquetista, cenógrafo e dramaturgo. Roberto era irmão do tenor lírico Tomaz de Aquino Carmelo Alcaide (1901-1967), ambos meus parentes afastados do ramo dos “Carmelo”.
Não me surpreende que Maria Guiomar Ávila tenha oferecido a Maria Palmira, o livro GANDAIA de Romeu Correia. Pese embora o facto de elas serem distintas senhoras da sociedade local de então, com um posicionamento ideológico bastante diferenciado do de Romeu Correia, eram senhoras cultas, receptivas às novidades literárias da época, muito em especial Maria Palmira de cuja biblioteca pessoal possuo exemplares que o confirmam. Para além disso, o mérito de Romeu Correia como escritor, já tinha sido reconhecido por críticos literários da época, como João Gaspar Simões (1949), António Quadros (1050) e Julião Quintinha (1952).
Creio que agora o leitor está em condições de perceber a razão do título escolhido para o presente texto “ESTREMOZ – O neo-realismo a passar por aqui”.

[1] “Gandaia” é um termo pertencente à gíria popular, cujo significado é: “Acto de remexer o lixo à procura do que nele se pode aproveitar”.
[2] Sinopse recolhida em https://tradestories.pt/carlos-lopes/livro/gandaia .

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Mineiro - Eduardo Valente da Fonseca

 



Mineiro
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)


Mineiro da pele de fogo.
português do meu país,
onde nós vemos flores,
tu vês raiz.

Mineiro desse outro lado
onde a flor não desabrocha,
és bicho, gente ou gerânio
florescendo nas rochas?

Mineiro da pele de fogo,
português do meu país,
vejo-te aqui na cidade
no ferro, no ouro e cobre,
nas estações e cozinhas
e no colo das mulheres.

Andas presente nas pontes,
em dedos, salões de luxo,
nas orelhas das crianças,
em casas comerciais,
e na frescura das tranças
enfeitadas a metais.

Descubro-te assim presente
na força continental
dos guindastes e navios
e no rumor industrial
dos próprios rios.

Mineiro do meu país,
português da pele de fogo,
alarga os braços e diz,
mostrando os dedos à luz
deste sul de Portugal,
que mais que o peixe e o sal
é o minério a raíz
e a razão fundamental
deste fumo industrial
do teu país.

Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)


#Poesia Portuguesa - 220

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Canto ó povo - Eduardo Valente da Fonseca

 



Canto ó povo
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)


Canto ó povo a tua força,
o teu gesto varonil,
canto a força e a juventude
das flores no mês de Abril.

Canto os teus sonhos e a neve,
mais os mortos nos caminhos,
canto a fome superada,
a broa e a fruta roubada,
os pardais, a palha e o linho.

Canto os teus amores ó povo,
a madrugada e o vento
canto o teu sexo e a lã
as maçãs e o vinho novo,
canto os muros floridos,
os silvedos e as amoras,
canto as casas e as estradas,
as coisas movimentadas
aonde tu povo afloras.

Canto os rios, as serranias,
as minas, a erva doce,
canto o feno, canto o gado,
os melros, as cotovias,
canto o ventre fecundado
sob o céu ou o telhado
na pausa breve dos dias.

Canto e sonho ó povo onde
eu estou por ser também
do povo que não esconde
o donde veio e de quem.

Canto a tua forca agreste,
profunda e continuada,
canto o vento que te veste
de flores na madrugada.

Canto os caminhos de ferro,
os automóveis, o pão,
canto a tua heroicidade
de te ergueres para aquém do chão.

Canto o pano, o trigo e a erva,
o sal, a tristeza e o mar,
canto o ferro, o amor e as mãos
das mães sem nada que dar.

Canto os tens olhos ó povo,
ressentidos e humilhados
das ofensas inocentes
dos que ignoram que tu
és a razão capital
da fazenda que vestimos,
das belas coisas que ouvimos,
e desta luta em que estamos
para o nosso bem e mal.

Canto e quero que tu cantes
comigo e na tua voz,
e que a cantar tu espantes
o medo que habita em nós.


Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)


#Poesia Portuguesa - 219

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Os dias de verão - Sophia de Mello Breyner Andresen





Os dias de verão

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)


Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo


Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

Hernâni Matos

#Poesia Portuguesa - 218

Nostálgica - Álvaro Feijó

 



Nostálgica
Álvaro Feijó (1916-1941)

Debruço-me no cais por sobre o rio,
vendo os navios partir,
vendo os navios voltar.
Vejo algum no horizonte e sigo a esteira
até ele ancorar,
e vou seguindo a esteira
dos que partem, até deixar
de os ver.
No cais há sempre gente!
Muita gente como eu que das viagens
só vê princípio e fim.

Álvaro Feijó (1916-1941)


#Poesia Portuguesa - 217

domingo, 16 de junho de 2024

Convite - Antunes da Silva

 


Convite
Antunes da Silva (1921-1997)


Vinde Ver A Primavera,
Vós Que Sois Da Minha Terra.
Na Raiz De Cada Chão
Nasce Um Canto Contra A Guerra.

Vinde Ver O Sol Fecundo
E Abraçar A Ventania.
Nas Vozes De Cada Fome
Há Gritos De Rebeldia
Vinde, Vinde!

Antunes da Silva (1921-1997)

Hernâni Matos


#Poesia Portuguesa - 216

sábado, 15 de junho de 2024

Diário de bordo - Álvaro Feijó




Diário de bordo
Álvaro Feijó (1916-1941)

Letra a letra,
hora a hora,
linha a linha,
marquei no Diário de Bordo
as fases da viagem.

Dias e dias no embalar das vagas,
sem que um bafo de brisa poluísse
o abandono tentador das velas;
expedições forçadas, abordagens;
fome e sede de carne, nos jejuns
de cem dias de Mar;
velhos contos de bordo, em noites podres,
sem lua e sem estrelas;
o escorbuto na alma, apodrecida
à espera dos combates;
os rateios da presa recolhida
e, ao fim,
a Ilha dos Amores de qualquer porto
onde as mulheres se vendem.
E tudo foi, profundamente, inútil.

Livro de Bordo de Corsário, deixa
que o tempo apague a tua prosa inútil
e escreve a história imensa
daquela frota em que tu vais partir
– como pobre navio auxiliar –
à demanda e à conquista
do Novo Continente
!

Álvaro Feijó (1916-1941)


#Poesia Portuguesa - 215

domingo, 2 de junho de 2024

Livre - Carlos Oliveira




Livre
Carlos de Oliveira (1921-1981)

Não há machado que corte
A raiz ao pensamento:

Não há morte para o vento,
Não há morte.

Se ao morrer o coração
Morresse a luz que lhe é querida,

Sem razão seria a vida,
Sem razão.

Nada apaga a luz que vive
Num amor, num pensamento,

Porque é livre como o vento
Porque é livre.

Carlos de Oliveira (1921-1981)


#Poesia Portuguesa - 214

sábado, 1 de junho de 2024

Também eu trago a saudade - António Reis

 



Também eu trago a saudade
António Reis (1927-1991)


Também eu trago a saudade
nos sentidos

se dissesse que não
era mentira

Também eu perdi um cão
casas
rios

Mas hoje
tenho mulher
amigos
e uma saudade mais real
é que me inspira

António Reis (1927-1991)

Hernâni Matos

#Poesia Portuguesa - 213

As Papoilas - José Gomes Ferreira

 



As Papoilas
José Gomes Ferreira (1900-1985)

Ó papoilas dos trigais,
Em ondas de cor…
Em ondas de cor…
Sangrentas como os punhais
Do nosso suor…
Do nosso suor…

Dá vontade de arrancá-las,
Pô-las nas lapelas…
Pô-las nas lapelas…
E, depois,
E, depois, dependurá-las
Na luz das estrelas
Na luz das estrelas.

Ó papoilas como chagas
Em ondas de flor…
Em ondas de flor…
No sangue das vossas vagas
Anda a nossa dor
Anda a nossa dor.

Outras papoilas um dia,
Pela terra fora
Pela terra fora
Darão ao mundo a alegria
Duma nova aurora
Duma nova aurora.

José Gomes Ferreira (1900-1985)

Hernâni Matos

#Poesia Portuguesa - 212

Palhaço - Álvaro Feijó




Palhaço
Álvaro Feijó (1916-1941)

Como os garotos entrei no circo
por sob a tela! Ninguém… Ninguém!
Saltei na arena, berrei na arena…
ninguém!

Vesti o fato vermelho e oiro
dalgum palhaço,
lancei nas ondas do ar o tesoiro
Do que eu quero fazer e que não faço.

Na escuridão senti um riso
quando atirei minha alma nua,
tal e qual é na escuridão

Riso de quem? Ninguém me via?
E a gargalhada ria,
como se fora eu próprio a rir.

Abri a alma, mostrei-a inteira!
O que podia… E o resto, a esmo!
E o riso, ria.
Riso de quem?

E fui palhaço de mim mesmo!


Álvaro Feijó (1916-1941)


#Poesia Portuguesa - 211

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Ronda - João José Cochofel

 




Ronda
João José Cochofel (1919-1982)

Enche os pulmões e canta
a glória de existir,
canta o passado e o presente
e a tua fé no porvir.

Atira ao ar como um foguete
o canto da tua voz.
Música, festa, cacete:
a Terra é de todos nós!

Solta o teu canto, ergue-o
e lança o desafio:
Mundo que liberto queres
de fome, solidão e frio.

Atira ao ar como um foguete
o canto da tua voz.
Música, festa, cacete:
a Terra é de todos nós!

João José Cochofel (1919-1982)


#Poesia Portuguesa - 210

Eu tive um pássaro de prata - Álvaro Feijó




Eu tive um pássaro de prata
Álvaro Feijó (1916-1941)

Eu tive um pássaro de prata…
Seguia rotas sem fim
– sem dar conta das horas, das distâncias –
para longe de mim.
Um dia veio a tempestade…
O pássaro quebrou as suas asas de prata
e capotou!
Sofri!
Eu sei lá se sofri,
vendo no chão toda a engrenagem
que a moldara
e a fuselagem
deselegante, como uma lesma, indiferente, ao sol.
E nem assim
deixou de erguer-se ao céu o pássaro de prata
tentando novas rotas,
voando sempre, e só, para dentro de mim…

Álvaro Feijó (1916-1941)


#Poesia Portuguesa - 209

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Canção de Maio - Joaquim Namorado

 




Canção de Maio
Joaquim Namorado (1914-1986)


Em chegando o mês de Maio
vão nascer rosas vermelhas
em todos os roseirais.
Quem me dera já em Maio
que não chega nunca mais.

Tenho uma rosa vermelha,
Trago-a no meu coração,
lá é sempre Primavera,
não há Inverno nem Verão.

Quem me dera já no fim
deste inverno tão comprido
que corre tão devagar.
Rosas vermelhas, carmim,
serão para me enfeitar.

Tenho uma rosa vermelha,
Trago-a no meu coração,
lá é sempre Primavera,
não há Inverno nem Verão.

Se quiseres saber de mim
vai apanhar uma rosa
e põe-na no teu chapéu.
Ficarei sabendo assim
que o teu pensar é o meu.

Tenho uma rosa vermelha,
Trago-a no meu coração,
lá é sempre Primavera,
não há Inverno nem Verão.

Rosas de Maio, quem mas dera
ver todo o ano a florir
em todos os roseirais,
Fossem sempre primavera,
não findassem nunca mais.

Tenho uma rosa vermelha,
Trago-a no meu coração,
lá é sempre Primavera,
não há Inverno nem Verão.


Joaquim Namorado (1914-1986)

Hernâni Matos


#Poesia Portuguesa - 208

terça-feira, 28 de maio de 2024

Canto de Paz - Carlos de Oliveira




Canto de Paz
Carlos de Oliveira (1921-1981)

Homens deixai abrir a alma ao que vier,
Deixai entrar a paz do tempo que ela quer.

De par em par aberta com sol até ao fundo,
Gastai a alma toda na harmonia do mundo.

Homens deixai abrir a alma ao que vier,
Deixai entrar a paz do tempo que ela quer.

Homens que vagueais pela berma da vida,
Tereis enfim sinais da glória prometida.

Homens deixai abrir a alma ao que vier,
Deixai entrar a paz do tempo que ela quer.

Na voz do Dia Novo a dar bom dia aos astros,
Quando a tristeza for só pó dos vossos rastros,

Homens deixai abrir a alma ao que vier,
Deixai entrar a paz do tempo que ela quer.

Carlos de Oliveira (1921-1981)


#Poesia Portuguesa - 207

Romaria - João José Cochofel

 




Romaria
João José Cochofel (1919-1982)


Enche os pulmões e canta
a glória de existir,
canta o passado e o presente
e a tua fé no porvir.

Atira ao ar como um foguete
o canto da tua voz.
Música, festa, cacete:
a Terra é de todos nós!

Solta o teu canto, ergue-o
e lança o desafio:
Mundo que liberto queres
de fome, solidão e frio.

Atira ao ar como um foguete
o canto da tua voz.
Música, festa, cacete:
a Terra é de todos nós!


João José Cochofel (1919-1982)


#Poesia Portuguesa - 206

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Combate - Joaquim Namorado




 
Combate
Joaquim Namorado (1914-1986)

Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos.
Vimos do cabo do mundo
Com este passo seguro
De quem sabe aonde vai.

Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos!

Guerras perdidas e ganhas
Marcaram o nosso corpo,
Mas nunca em nós foi vencida
Esta certeza sabida
De saber aonde vamos.

Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos!

Os mortos não os deixamos
Para trás, abandonados,
Fizemos deles bandeiras,
Guias e mestres, soldados
Do combate que travamos.

Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos!

Nada poderá deter-nos,
Pró assalto das muralhas
Nossos corpos são escadas,
Para as batalhas da rua
Nossos peitos barricadas.

Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos!

Nada poderá vencer-nos,
Vimos do cabo do mundo
Vimos do fundo da vida:
Que somos o próprio mundo
E somos a própria vida.

Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos!

Joaquim Namorado (1914-1986)


#Poesia Portuguesa - 205

Canção do Camponês - Arquimedes da Silva Santos

 




Canção do Camponês
Arquimedes da Silva Santos (1921-2019)

Adeus trigo, ai, adeus trigo,
Depois de ceifado, adeus:
Amanho-te e não mastigo,
Ai, nem eu, nem eu nem os meus.

O escravo da campina
Ouve o motor do tractor
Com ele mudas a sina –
Da terra és conquistador!.

Searas cor de sol posto,
Meu mar alto de aflição
Enche-o com suor do rosto,
Ai, em troca falta-me o pão.

O escravo da campina
Ouve o motor do tractor
Com ele mudas a sina –
Da terra és conquistador!.

Ai campos, como os meus olhos.

Ai campos, como os meus olhos,
Rasos de água tanta vez:
Foram-se espigas nos molhos,
Ai, vem fome para o camponês.

O escravo da campina,
Ouve o motor do tractor
Com ele mudas a sina –
Da terra és conquistador!

Arquimedes da Silva Santos (1921-2019)

Hernâni Matos

#Poesia Portuguesa - 204