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terça-feira, 7 de maio de 2024

Poesia portuguesa - 192




Ó vagarosa noite
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)


Ó vagarosa noite a vir de manso
profunda e densa pela cidade toda.
A estas horas onde em outros lados
floresce amoroso o sol por sobre terras?
Ó alegria de me ser em tudo.
ó humildes irmãos do grande mundo
deitados sobre o sonho como quem
aguarda o belo tempo de haver tudo!

Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Poesia portuguesa - 191



 


Testamento
Luís Veiga Leitão (1915-1987)


Abre os olhos – o sol é teu.
Mergulha as mãos – a água é tua.
Deixo-te o sol, o mar, o céu
que pousa no beiral da nossa rua.
E os trigais do dia que desponta
e as flores da terra que me cobre.
Toda a riqueza milenar, sem conta,
de mais um poeta pobre.

Deixo-te as palavras que não gritaram
estranguladas pelo nó do medo;
e as outras, fuziladas, que tombaram
nos pátios do degredo.
E os sonhos por abrir; hoje, no sono
dos séculos que chamaram eterno.
Toda a Primavera, todo o Outono,
das minhas árvores de Inverno.
E a luta que fundiu meu coração
num canto que sangrou nesta certeza:
Depois de mim virás, ó meu irmão!,
mais claro e limpo de tristeza.


Luís Veiga Leitão (1915-1987)


Poesia Portuguesa - 190

 




Áspera é a terra em que vivemos

Egito Gonçalves (1920-2001)


Áspera é a terra em que vivemos:
Avara nas entregas da alegria,
Pródiga em tristezas. Ásperos
Também os símbolos misérrimos
Que deltam o escasso oxigénio.

Onde a mulher, o beijo da vitória,
o fogo de artifício, a aclamação?

Áspero é o amor de armas na mão,
a falta de lençóis, a flat de cimento…
Áspera a noite rude e a miragem
em que sempre se crispam os nossos dentes.

De que tamancos nascerá a vida?
E onde o soro, o sal, o seu tempero?

Á pera a costura onde se esconde
o piolho propulsor. Na forja ainda
o martelo que epitafe o seu destino,
o peso que o arraste ao seu inferno.

Que fado nos persegue? Que guitarra
acompanha esta dor?


Egito Gonçalves (1920-2001)

Poesia Portuguesa - 189





Canção
Manuel da Fonseca (1911-1993)


Num ano de grande fome,
minha família acabou-se.

Eu tinha uma boa enxada
donde tirava o sustento,
ia-me de monte em monte
chegava à porta e dizia:
- lavrador,
eu cavo-lhe a sua herdade!
E no meio das courelas, a minha enxada luzia.
Viesse o sol que viesse
e a chuva que caísse
e o vento, que vem do norte
e corta como uma foice,
que assobiasse e cortasse:
- a minha enxada luzia!

E a minha filha crescia,
estava uma moça vistosa.
Tanto que os homens saíam
para a porta das tabernas
dizendo ao vê-la passar:
- lá vai a Rosa Charneca.
E minha mulher cantava
estendendo a roupa, a corar,
sobre esteveiras, ao sol.

Quando veio a grande fome
tudo isto se acabou.

Minha mulher foi prà monda
lá para o Alto Alentejo.
E a minha filha abalou
com uma mulher que ri
e anda de feira em feira
armando aquela barraca
onde se bebe e se ama.

E numa manhã de Inverno,
não pude mais e parti
- pelas estradas do acaso
com a manta de maltês!...


Manuel da Fonseca (1911-1993)

Poesia Portuiguesa - 188




Não, não queremos cantar
José Gomes Ferreira (1900-1985)

                           (Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
                           Recuso-me a ter mais de vinte anos.
)

 

Não, não queremos cantar 
as canções azuis 
dos pássaros moribundos. 

Preferimos andar aos gritos 
para que os homens nos entendam 
na escuridão das raízes. 

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes 
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição. 
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas 
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros. 
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto 
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto. 
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária 
a falarem de amor 
ao pé duma máquina de tempestade 
a soluçar cidades de fome 
na cólera dos ruídos... 

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho 
do que o nosso destino 
de nascer em todas as bocas... 

...Nós, os poetas viris 
que trazemos nos olhos 
as lágrimas dos outros.


José Gomes Ferreira (1900-1985)

Hernâni Matos

domingo, 5 de maio de 2024

Poesia Portuguesa - 187




Domingo
Manuel da Fonseca (1911-1993)

 

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
“Bom tempo para amanhã”...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
‑ porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.


Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...
Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modo
se estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
‑ ao sol
como num ritual consagrado a um deus! ‑
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...


Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!


E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
‑ rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
‑ Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
‑ ... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... ‑
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!


Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
… … … … … … … … … … … … … … … … …
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!


Manuel da Fonseca (1911-1993)

Hernâni Matos

Poesia Portuguesa - 186



Já viram o comboio
Fernando Namora (1919-1989)

Os que vão às ceifas já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Já viram o comboio...!
Eles não contam a fome nas ceifas,
não dizem do sol esbraseando-lhes a carne
pelas campinas nuas e lânguidas.
Eles não contam as saudades da mulher, as saudades dos filhos,
as saudades do morno lar.
já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Contam a pintura desse mundo.

Fernando Namora (1919-1989)

Poesia Portuguesa - 185




Libertação
Papiniano Carlos (1918-2012)

A liberdade ficava para lá
do arame farpado
e do meu corpo fétido, podre,
roído de chagas, cheio de pus,
com olhos cegos de tanta escuridão!

A sentinelas cinzentas espiavam.

Mas que me importavam as sentinelas?

Mal me cabia na boca roxa
a língua cortada, grossa, sarrosa,
quando por ela anunciei
que era LIVRE,
e o meu grito espantoso
pôs um arrepio na nuca
de todos os tiranos.

Pasmaram as sentinelas
e o meu cadáver tombou na terra.

Papiniano Carlos (1918-2012)

Poesia Portuguesa - 184

 




As mulheres admiráveis da cidade
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Colho as nêsperas de outono e dou-vos as nêsperas de outono
mulheres admiráveis da cidade.
As avenidas são primaveris
e vós sabeis que a vida é apenas isto,
este tempo de viver entre as flores,
os pássaros, as horas e as palavras dos companheiros, lábios amorosos
descendo amaciantes sobre a pele dos vossos corpos frescos.
Colho por isso as nêsperas de outono açucaradas
entre guindastes, transito e cimento
e as disponho em vossas férteis mãos
de gestos admiráveis sobre os homens.


Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Poesia Portuguesa - 183

 




De onde vem a cidade?
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Quando passeio á noite pela cidade recolhida em íntimo silencio,
olho admirado as ruas e as árvores
e interrogo enigmático sobre os olhos cerrados dos homens citadinos
o serem eles o sentido disto tudo.
E penso nas formosas flores públicas plantadas para todos,
penso na janela clara aberta sobre o mar,
nas avenidas livres fechando junto ao céu....
então maciamente vou,
espantado de estar na vida a ser um homem
e a cumprir o tempo de ser grande,
descerrar as pálpebras descidas dos humanos irmãos emparedadas
e mostrar-lhes porque existem avenidas,
de onde vêm as casas e as fábricas
e porquê quando rente á madrugada
um pássaro cantando entre o cimento e as flores
na tenra primavera da cidade
pode encher de frescura e de sentido e vida.


Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Poesia Portuguesa - 182



 
Onde nem tudo o que luz é oiro
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Somos talvez até um país rico,
e tivemos Camões, e tivemos pessoa e o infante,
mas a beleza está nos escombros,
e atola-se na areia e morre sem nos ver.
porque se eu abro a minha mão à noite
e nela só vejo as linhas do destino,
de que me vale a história do meu povo?
Sim, é possível que a profética rosa do oriente
ainda venha pelo rio da primavera
ancorar na solidão imensa deste cais.

Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Poesia portuguesa - 181




Segredo

Luís Veiga Leitão (1915-1987)


Lá, na última das celas
nódoa negra de açoites,
não há dias, não há noites
porque as as noites têm estrelas.

Lá, só na sombra que dói.
Sombra e brancura de um osso
que o preso remói, remói
no fundo do seu poço.

Lá, quando o vierem buscar
amanhã, depois ou logo,
terá na alma mais um fogo,
mais uma chama no olhar.


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Poesia portuguesa - 180




Carta
Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.

– Meu amor estou bem –

Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha cama
para que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.

– Meu amor estou bem –

Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.

– Meu amor estou bem –

Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:

– Meu amor estou bem –


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Poesia Portuguesa - 179



Incomunicabilidade
Luís Veiga Leitão (1915-1987)


Caneta, lápis, papel
e lâmina de ponta de lua
um autômato do bolso me tirava...
Depois a minha mão ficou nua
da vestimenta que usava.

Mas deram-me uma tinta preta
(nuvem negra dum fogo posto)
e meteram-me no tinteiro...
Na tinta, afogo as mãos, o rosto,
o meu corpo inteiro:

A força, o canto, a voz que encerra,
ninguém, ninguém pode afogar
– como as raízes da terra
e o fundo do mar.


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Hernâni Matos 

Poesia Portuguesa - 178

 


Prisioneiro
Luís Veiga Leitão (1915-1987)

O prisioneiro é como navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferragens de noites a fio
e redes de ferro.
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome.
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome.


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Hernâni Matos   

sábado, 4 de maio de 2024

Poesia portuguesa - 177



 

Não
Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Não queremos o sangue das crianças
na boca das batalhas posto
— fauce podre de lamas desertas
Mas correndo vivo sob o rosto
numa alegria de flores abertas

Não queremos o sangue dos jovens
cobrindo o frio das Baionetas
— morto lume verde sobre a neve
Mas correndo a arder nas noites pretas
para que as manhãs cantem breve...


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Hernâni Matos   

Poesia Portuguesa - 176



Corredor
Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Cem metros à sombra — temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.


Luís Veiga Leitão (1915-1987)

              

Poesia Portuguesa - 175

 




Acompanhamento Lírico

Luís Veiga Leitão (1915-1987)


Desceu a nuvem. E de vale em vale
a manhã ficou pálida suspensa
Árvores lama fronte de quem pensa
vestem de branco um branco glacial
Como flecha de lume no vitral
também minha alma que brilhou intensa
novamente afogou sua presença
no fundo de uma túnica irreal
E levo-a
pelo mar fora pelo mar da névoa
sob o silêncio húmido profundo
em cujas mãos de lágrimas deponho
o mutilado corpo do teu sonho
corpo sem asas de voar no mundo

Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Hernâni Matos

Poesia Portuguesa - 174



 

Resistência
Luís Veiga Leitão (1915-1987)

Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.

Luís Veiga Leitão (1915-1987)


sexta-feira, 3 de maio de 2024

Poesia Portuguesa -173

 




Ciclo do álcool
Francisco José Tenreiro (1921-1963)


1
Quando seu Silva Costa
Chegou na ilha
Trouxe uma garrafa de aguardente
Para o primeiro comércio.

A terra era tão vasta
Havia tanto calor
Que a água
Parecia não ter potência
Para acalmar a sede da sua garganta.

Seu Silva Costa
Bebeu metade...

E sua garganta ganhou palavra
Para o primeiro comércio.

2
A lua batendo nos palmares
Tem carícias de sonho
Nos olhos de Sam Márinha.
Silêncio!
O mar batendo nas rochas
È o eco da ilha.
Silêncio!
Lá no longe
Soluçam as cubatas
Batidas dum luar sem sonho.
Silêncio!
No canto da rua
Os brancos estão fazendo negócio
A golpes de champagne!

3
Mãe Negra contou:
"eu disse:
filhinho
beba isso coisa não...
Filhinho riu tanto tanto!..."

Nhá Rita calou-se.
Só os olhos e as rugas
Estremeceram um sorriso longínquo.

- E depois Mãe-Negra?

"Oh!
Filhinho
Entrou no vinhateiro
Vinhateiro entrou nele..."

Os olhos de nhá Rita
Estão avermelhando de tristeza.

"Hum!
Filhinho
Ficou esquecendo sua mãe!"

Francisco José Tenreiro (1921-1963)