Porquê esta exposição?
Esta exposição teve uma génese imprevista, a qual passo a relatar. É sabido que frequento as redes sociais, onde com fins pedagógicos e com espírito de missão, publico diariamente, nunca se sabendo previamente qual é a “ementa do dia”. O ”cardápio” é variado: Bonecos de Estremoz, Olaria de Estremoz, Cerâmica de Redondo, Arte Pastoril Alentejana, Usos e Costume do Alentejo, Literatura de Tradição Oral e tudo aquilo que me enche as medidas e aquece a alma.
Acontece que houve um dia do passado recente, no qual alguém me confrontou, perguntando-me porque é que eu não fazia nenhuma exposição. É claro que a pessoa não me conhecia, porque de contrário saberia que desde os anos 80 do século passado, não tenho feito outra coisa, convidado ou por iniciativa própria. Estaria, decerto, a pensar em tempos mais recentes. Foi então que lhe disse que mais recentemente, em 2004 e 2012, por convite do então Director do Museu Municipal de Estremoz, Hugo Guerreiro, a minha colecção de Arte Pastoril esteve exposta na Sala de Exposições Temporárias (2004) e na Galeria Municipal Dom Dinis (2012).
De qualquer modo, sempre lhe disse que se fosse convidado, estaria disponível para corresponder. Certo dia, cruzei-me à entrada do Museu Municipal com a actual Directora, Isabel Borda d´Água, a quem dei conta da minha disponibilidade em expor Bonecos de Estremoz, Arte Pastoril e Arte Neo-realista, se houvesse interesse por parte do Museu. Houve e esta foi a génese da exposição.
Qual a razão da designação dada à exposição?
O título da exposição surgiu-me num ápice à flor do pensamento. Não poderia ser doutro modo. Isto por que as obras neo-realistas são, elas próprias, registos da realidade de uma época nos seus múltiplos aspectos: social, económico e político. Por outro lado, ao reunir um acervo pessoal dessas obras, tornei-me, eu próprio, um guardador de memórias.
Não se importa de explicar aos leitores em que consiste o neo-realismo?
Trata-se dum movimento filosófico, literário e artístico. O neo-realismo português manifesta-se pela primeira vez em meados dos anos 30 através de polémicas literárias surgidas nos jornais “O Diabo” e “Sol Nascente”, bem como na revista “Vértice”, que defendiam uma arte virada para os verdadeiros problemas da sociedade, entrando em ruptura com o que era preconizado pela revista “Presença”, a qual defendia uma literatura expurgada de ideologia e não comprometida socialmente e que ao contrário do neo-realismo dava mais importância à “forma” que ao “conteúdo”.
Tais polémicas são fruto do contexto político-social da década de 30: a oposição entre comunismo e fascismo, o fim da Guerra Civil Espanhola e o deflagrar da II Guerra Mundial. Surge assim uma nova geração de escritores motivados para a intervenção cívica e cultural, em consonância com os propósitos progressistas da esquerda política europeia.
Constitui-se então uma frente cultural de escritores e artistas plásticos, descontentes com a política cultural do regime totalitário e fascista de Salazar, a qual se assume como “Movimento Neo-realista Português”. Este afirma-se como representante e porta-voz dos anseios das classes trabalhadoras, retratando a realidade social e económica do país e empenhando-se na transformação das condições sociais do mesmo. Nesse sentido, foca-se no homem comum, procurando saber como vivem operários e camponeses. Aborda e aprofunda temas como as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Escrutina as injustiças e analisa o modelo social vigente. Pugna pela elevação moral dos oprimidos e deposita esperança no futuro do Homem. É claro que a defesa de todos estes valores se processa nas condições mais duras de repressão, que incluem no mínimo a censura e a apreensão de obras de arte e publicações e no limite, a prisão, a tortura e a interdição do desempenho de cargos públicos.
Identifica-se com o neo-realismo? Em caso afirmativo, porquê?
O neo-realismo retrata uma época que abrange a minha infância e a minha juventude: No decurso desta última tive plena consciência das injustiças sociais e da repressão que se exercia sobre quem se rebelava. Foi o período em que se começou a consolidar a minha consciência cívica e também política, não só em casa, como na escola e na sociedade, por interacção com amigos mais velhos, alguns dos quais já tinham estado “dentro” e outros que não o tendo estado, a vida não lhes “corria às mil maravilhas”. Daí que me identifique com o neo-realismo, enquanto arte de resistência e bandeira de luta antifascista. Pois claro!
Em que consiste a exposição?
Trata-se de uma mostra de 40 trabalhos de artistas plásticos neo-realistas, os quais integram o meu acervo pessoal de artes plásticas.
Quais são os artistas plásticos representados?
Trata-se de um conjunto diversificado de pintores, desenhadores e gravadores, entre os quais se situam alguns dos mais representativos e direi mesmo icónicos criadores da 3ª geração modernista. Com a particularidade de, num certo período da sua vida e obra, terem integrado as fileiras do movimento neo-realista português. São eles: Jorge de Almeida Monteiro, Alice Jorge, Júlio Pomar, Querubim Lapa, Rogério Ribeiro, Lima de Freitas, Júlio Resende, Manuel Ribeiro de Pavia, Cipriano Dourado, Aníbal Falcato Alves e Espiga Pinto. Para além deles, há a registar ainda a presença incomum de uma obra de António Cunhal, irmão mais velho de Álvaro Cunhal e por mim considerado um percursor do movimento.
Que variedades de artes plásticas estarão patentes ao público?
Os trabalhos expostos são de diferentes tipologias: desenho a grafite, desenho a tinta-da-China, guache, aguarela, técnica mista, serigrafia, linoleogravura, xilogravura, litografia, água forte e água tinta e colagem. De salientar, por um lado, a ausência de tipologias como a escultura, a cerâmica e a pintura a óleo ou acrílico, já que o valor de mercado das mesmas não é compatível com a minha capacidade financeira. De destacar igualmente, por outro lado, a predominância das várias tipologias de gravura artística, mais consentâneas com o meu poder de aquisição. Não foi por acaso que os neo-realistas viram na gravura artística, um meio privilegiado de tentativa de democratização da prática artística e de aproximação da arte do povo. Finalmente, apraz-me registar a presença na exposição de cinco trabalhos (2 xilogravuras e 3 colagens) da autoria do meu saudoso amigo Aníbal Falcato Alves.
O que é que o levou a reunir este conjunto de trabalhos de artistas plásticos neo-realistas?
Tanto quanto me lembro, sempre gostei de arte e a minha predisposição para o coleccionismo remonta aos 10 anos de idade. Todavia, há várias circunstâncias que estão na origem do presente acervo.
Em primeiro lugar, foi determinante a influência de Aníbal Falcato Alves, de quem me tornei amigo logo na minha juventude e que nos anos 60 do século XX me deu a conhecer a existência de uma arte de resistência e me falou doutros artistas com quem privava: Rogério Ribeiro, Manuel Ribeiro de Pavia e Cipriano Dourado. Foi ele também que me falou pela primeira vez da existência e importância da GRAVURA-Sociedade Portuguesa de Gravadores, bem como da relevância das Exposições Gerais de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes. De resto, foi nos anos 80-90 que reuni os trabalhos de Aníbal Falcato Alves que integram o meu acervo.
Em segundo lugar, foi igualmente decisivo ter conhecido Espiga Pinto na minha juventude, pois eu frequentava o Externato Liceal de São Joaquim e o pintor, seis anos mais velho do que eu, era professor de Desenho na Escola Industrial e Comercial, o que aconteceu no período 1960-1965. Foi a época em que deixou marcas da sua intervenção no Café Águias de Ouro, com trabalhos de forte registo etnográfico, que me fascinaram desde logo. Era presença habitual na Livraria e Papelaria Aníbal, a qual eu também frequentava. Todavia, só em 2018 comecei a adquirir trabalhos seus.
Em terceiro lugar, terei conhecido Rogério Ribeiro em 1977, data duma gravura com uma dedicatória do pintor. Mais tarde, em 1981, entrevistei-o para o jornal Brados do Alentejo e aí se falou de neo-realismo. Porém, só tive oportunidade de adquirir trabalhos seus, a partir igualmente de 2018.
Do exposto é fácil de concluir que me senti motivado a coleccionar, não só por me identificar com o tema “neo-realismo”, como também por uma questão afectiva e de admiração da obra daqueles artistas plásticos.
Entretanto, fui conhecendo a obra de outros pintores, desenhadores e gravadores, de tal modo que, sempre que me foi possível, fui acrescentando outros nomes ao meu acervo: Júlio Resende, Manuel Ribeiro de Pavia, Alice Jorge, Júlio Pomar, Querubim Lapa, Lima de Freitas e Jorge de Almeida Monteiro.
A divulgação da exposição tem por base o grafismo de uma mulher a apanhar a azeitona. Quer-nos explicar por quê?
Em primeiro lugar porque optei por associar o grafismo da exposição ao Alentejo, não só porque a mostra decorre nesta região, mas também e sobretudo porque os camponeses alentejanos foram dos principais protagonistas da arte e da literatura neo-realistas.
Em segundo lugar porque a actividade representada era uma prática corrente no Alentejo. A litografia representa uma mulher do povo, de cabeça coberta por um lenço, com avental de trabalho e descalça, o que indicia a sua condição de pobreza. Encontra-se junto a uma oliveira, dobrada sobre si própria e apanha azeitona caída da árvore. No tempo do fascismo havia quem por necessidade tivesse que “andar ao rabisco”, isto é, ir à apanha da azeitona caída no chão, uma vez que tivesse terminado a safra. Era uma actividade de subsistência e último recurso, praticada por quem vivia miseravelmente.
Em terceiro lugar escolhi uma litografia de Cipriano Dourado, pois na sua obra, independentemente da adversidade do contexto, sobressai sempre o encanto da feminilidade, resultado da delicadeza do seu traço.
Quer-nos falar do catálogo da exposição?
O catálogo é uma peça chave da exposição, a começar pelo grafismo centrado na camponesa alentejana que anda ao rabisco da azeitona. É uma imagem muito bela e ao mesmo tempo fortemente expressiva, já que dela transparece a miséria, a dureza e a precariedade da condição feminina no Alentejo de antanho.
O catálogo inventaria sequencialmente as obras expostas, cujas características técnicas estão identificadas e às quais está associado um número de ordem que corresponde igualmente à respectiva imagem no catálogo.
Simultaneamente, cada obra é acompanhada duma nota de fim, já que cada uma delas encerra em si uma estória que merece ser descodificada e revelada. É esse o papel do recolector, o qual se torna inescapavelmente um contador de estórias. Estórias plurais e multifacetadas que envolvem o relato do que está na génese da criação, a gesta do acto criador e o impacto que teve na comunidade.
Estórias que passam igualmente pelo relato do contexto da aquisição de cada obra, da identificação de anteriores proprietários, das particularidades das dedicatórias de autores e das estórias de vida de quem foi o destinatário da dedicatória.
O catálogo apresenta na abertura um texto da autoria do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, José Daniel Pena Sadio, que muito me honra e valoriza o catálogo. Nas suas palavras, o Senhor Presidente reconhece o valor e o interesse de parte do meu acervo estar patente ao público, o que o levou a dar o seu aval no sentido da exposição de artes plásticas “NEO-REALISMO / MEMÓRIAS GUARDADAS / Colecção Hernâni Matos”, integrar as COMEMORAÇÕES "50 ANOS EM LIBERDADE: COMEMORAÇÕES DO 50° ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974”, promovidas pelo Município de Estremoz.
O catálogo insere igualmente com muito orgulho, o texto “O imaginário desceu à terra” da autoria de António Júlio Rebelo. Trata-se de um texto a partir do qual se torna difícil extrair excertos, já que com as suas sábias palavras, o nosso estimado filósofo erigiu um monumento de pensamento. De qualquer modo, com bastante modéstia, destaco e sublinho algumas passagens: “O neo-realismo mostra que é possível identificar a realidade e transcender a visão que o nosso olhar sonda, em silêncio, emocionado e doído.” E mais adiante: “Quem trouxe esse imaginário que desceu à terra? O nosso dedicado guardador de memórias, aquele que as colhe, guarda e protege, e que tem para connosco a bondade e o cuidado de as mostrar, confirmando que, segundo a melhor sabedoria ditada na história, o passado, o presente e o futuro são uma só verdade.” Já a finalizar: “Em nome da esperança, sigam com o melhor olhar que tenham a exposição que a todos é facultada.”
Que expectativas tem em relação à exposição?
As expectativas são naturalmente positivas. Em primeiro lugar, a curadoria da exposição é de Isabel Borda d’Água, Directora do Museu Municipal de Estremoz, que se tem mostrado inexcedível na preparação da exposição e na divulgação da mesma. Conta de resto com o apoio de uma equipa de montagem com provas dadas, importante naquilo que será o concretizar do “visual da exposição”.
Em segundo lugar, as iniciativas patrocinadas pelo Município, como é o caso, têm uma excelente divulgação, não só na imprensa escrita e falada, sobretudo a nível regional, como também nas redes sociais.
Em terceiro lugar e modéstia à parte, eu próprio constituirei um pólo de atracção da exposição, não só pela curiosidade suscitada pela vontade de conhecer o acervo por mim reunido, como acrescer o facto de no acto inaugural, eu próprio conduzir uma visita guiada à exposição. Por isso venham. Estão todos convidados. Parafraseando Zeca Afonso: - Venham e tragam outro amigo também!
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS:.
Luís Mariano Guimarães