A magistral ilustração de Stuart de Carvalhais (1887-1961), com a qual ilustro a presente crónica, tem por título “Cumprimentos do Ano” e foi publicada na capa da revista “Ilustração Portuguesa”, nº 410, de 29 de Dezembro de 1913. Ela sugere a despedida do “Ano Velho”, aí representado por um ancião de ar respeitável, sentado, vencido decerto pelo desgaste e pelas mazelas da vida. Junto a ele, duas crianças, das quais a mais velhinha lhe entrega um ramo de flores, decerto como reconhecimento do legado positivo que o Ano Velho lhes doou.
Não tenho motivo algum que me leve a crer que esta alegoria de Stuart não fosse apropriada em 1913. Todavia, considero que, actualmente, ela carece de sentido. Por isso me despeço de 2012 com mágoa, azedume e revolta, porque os portugueses nunca perderam tanta qualidade de vida e direitos democráticos como nos anos de 2011 e 2012. Pelo menos até agora. E porquê? Por culpa dos políticos que temos, dos políticos que tivemos e dos políticos que não tivemos, ainda que uma maioria significativa de nós, os gostasse de ter tido.
Conhecedor da obra do poeta popular António Aleixo (1899-1949), identifico-me bastante com o seu pensamento, a começar pelo modo como o poeta se enquadra na Sociedade:
“Sou um dos membros malditos
dessa falsa sociedade que,
baseada nos mitos,
pode roubar à vontade.“
Concordo também com o juízo que faz do Poder:
“Acho uma moral ruim
trazer o vulgo enganado:
mandarem fazer assim
e eles fazerem assado.”
Na óptica do poeta, é um juízo que não é nada positivo:
“Há tantos burros mandando
em homens de inteligência,
que às vezes fico pensando,
se a burrice não será uma ciência...”
Por isso o poeta considera ter o direito de protestar:
“Não me dêem mais desgostos
porque sei raciocinar...
Só os burros estão dispostos
a sofrer sem protestar!”
E vai ao ponto de advertir o Poder:
“Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
q'rer um mundo novo a sério!”
Proclama igualmente que a situação pode (e digo eu, deve) mudar:
“Esta mascarada enorme
com que o mundo nos aldraba
dura enquanto o povo dorme,
quando ele acordar, acaba.”
Perder a vida será na sua opinião, o que menos importa:
“Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão? “
Nunca o pensamento de António Aleixo foi tão pertinente como hoje, por congregar duma forma excepcional uma análise da situação com alguma orientação para a acção. E acreditem que eu percebo da poda. Sou da geração do Maio de 68 em Portugal, doutros tempos de luta e porventura o primeiro divulgador de António Aleixo em Lisboa, em sessões de Canto Livre, em que participavam companheiros como o Zeca, o Adriano, o Fanhais ou o Fanha. Eu era um alentejano fininho com um metro e noventa de altura e olhos de carneiro mal morto. Quando ocupávamos a cantina de Ciências para afrontar o Poder, este cagava-se todo e mandava a polícia de choque contra nós. Nós não nos cagávamos, porque tínhamos tudo no sítio. A nossa força era a consciência política, a unidade, a disciplina e a resistência militante. Tínhamos na massa do sangue a poesia do Daniel Filipe (1925-1964) - Pátria Lugar de Exílio:
“(…) Tendes jornais.
usai-os
tendes exércitos
usai-os
tendes polícia
usai-a
tendes juízes
usai-os
usai-os contra nós
procurai esmagar-nos
cantando resistimos.”
Mais de quarenta anos depois, com toda a adrenalina dos meus 66 anos, repudio a política canalha que nos (des)governa e proclamo alto e bom som: