segunda-feira, 6 de maio de 2024

Poesia Portuiguesa - 188




Não, não queremos cantar
José Gomes Ferreira (1900-1985)

                           (Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
                           Recuso-me a ter mais de vinte anos.
)

 

Não, não queremos cantar 
as canções azuis 
dos pássaros moribundos. 

Preferimos andar aos gritos 
para que os homens nos entendam 
na escuridão das raízes. 

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes 
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição. 
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas 
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros. 
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto 
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto. 
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária 
a falarem de amor 
ao pé duma máquina de tempestade 
a soluçar cidades de fome 
na cólera dos ruídos... 

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho 
do que o nosso destino 
de nascer em todas as bocas... 

...Nós, os poetas viris 
que trazemos nos olhos 
as lágrimas dos outros.


José Gomes Ferreira (1900-1985)

Hernâni Matos

domingo, 5 de maio de 2024

Poesia Portuguesa - 187




Domingo
Manuel da Fonseca (1911-1993)

 

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
“Bom tempo para amanhã”...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
‑ porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.


Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...
Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modo
se estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
‑ ao sol
como num ritual consagrado a um deus! ‑
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...


Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!


E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
‑ rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
‑ Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
‑ ... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... ‑
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!


Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
… … … … … … … … … … … … … … … … …
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!


Manuel da Fonseca (1911-1993)

Hernâni Matos

Poesia Portuguesa - 186



Já viram o comboio
Fernando Namora (1919-1989)

Os que vão às ceifas já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Já viram o comboio...!
Eles não contam a fome nas ceifas,
não dizem do sol esbraseando-lhes a carne
pelas campinas nuas e lânguidas.
Eles não contam as saudades da mulher, as saudades dos filhos,
as saudades do morno lar.
já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Contam a pintura desse mundo.

Fernando Namora (1919-1989)

Poesia Portuguesa - 185




Libertação
Papiniano Carlos (1918-2012)

A liberdade ficava para lá
do arame farpado
e do meu corpo fétido, podre,
roído de chagas, cheio de pus,
com olhos cegos de tanta escuridão!

A sentinelas cinzentas espiavam.

Mas que me importavam as sentinelas?

Mal me cabia na boca roxa
a língua cortada, grossa, sarrosa,
quando por ela anunciei
que era LIVRE,
e o meu grito espantoso
pôs um arrepio na nuca
de todos os tiranos.

Pasmaram as sentinelas
e o meu cadáver tombou na terra.

Papiniano Carlos (1918-2012)

Poesia Portuguesa - 184

 




As mulheres admiráveis da cidade
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Colho as nêsperas de outono e dou-vos as nêsperas de outono
mulheres admiráveis da cidade.
As avenidas são primaveris
e vós sabeis que a vida é apenas isto,
este tempo de viver entre as flores,
os pássaros, as horas e as palavras dos companheiros, lábios amorosos
descendo amaciantes sobre a pele dos vossos corpos frescos.
Colho por isso as nêsperas de outono açucaradas
entre guindastes, transito e cimento
e as disponho em vossas férteis mãos
de gestos admiráveis sobre os homens.


Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Poesia Portuguesa - 183

 




De onde vem a cidade?
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Quando passeio á noite pela cidade recolhida em íntimo silencio,
olho admirado as ruas e as árvores
e interrogo enigmático sobre os olhos cerrados dos homens citadinos
o serem eles o sentido disto tudo.
E penso nas formosas flores públicas plantadas para todos,
penso na janela clara aberta sobre o mar,
nas avenidas livres fechando junto ao céu....
então maciamente vou,
espantado de estar na vida a ser um homem
e a cumprir o tempo de ser grande,
descerrar as pálpebras descidas dos humanos irmãos emparedadas
e mostrar-lhes porque existem avenidas,
de onde vêm as casas e as fábricas
e porquê quando rente á madrugada
um pássaro cantando entre o cimento e as flores
na tenra primavera da cidade
pode encher de frescura e de sentido e vida.


Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Poesia Portuguesa - 182



 
Onde nem tudo o que luz é oiro
Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)

Somos talvez até um país rico,
e tivemos Camões, e tivemos pessoa e o infante,
mas a beleza está nos escombros,
e atola-se na areia e morre sem nos ver.
porque se eu abro a minha mão à noite
e nela só vejo as linhas do destino,
de que me vale a história do meu povo?
Sim, é possível que a profética rosa do oriente
ainda venha pelo rio da primavera
ancorar na solidão imensa deste cais.

Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003)