O cancioneiro popular encarregou-se de "arranjar um par de botas" aos sapateiros, que geralmente nele são mal vistos. Talvez porque haja repentistas que são autênticas "linguinhas de prata":
“Sapateiros e alfaiates
São uma súcia de ladrões:
Sapateiro furta a sola,
Alfaiate, os botões.” [1]
Já a nível da arte pastoril, parece existir maior apreço pelos sapateiros, uma vez que na solidão eremítica da charneca alentejana, o rabadão que já fora zagal e já andara descalço, sabia o que era andar a pé limpo por sobre a terra escaldante, as rochas angulosas ou a vegetação parente do saramago.
Quem anda a pé limpo, tem um pé blindado, que só encontra parente próximo nas mãos do cortiçeiro envolvido em tórrida e recente despela.
Quantos não foram os camponeses alentejanos que usaram calçado pela primeira vez, quando foram à tropa?
Por isso, o camponês alentejano era capaz de exaltar e mitificar coisas aparentemente comezinhas, como o calçado.
É o caso deste sapato (9, 5 x 2 x 3 cm), talhado e bordado em madeira, por quem se identificou com a obra e resolveu deixar na sola, a sua marca de criador: JMV.
Comprado no Mercado das Velharias em Estremoz, mercado de memórias, onde eu faço parte da “mobília”, na qualidade de comprador.
Não é um sapato frívolo de quem anda envolvido em danças de salão. É um sapato sóbrio e austero, nascido da alma de quem conhece a dureza do que é andar a pé limpo num solo que corta como lancetas. Mas é um sapato bordado, porque o camponês, servo da gleba, tinha na sua alma, a ânsia de toda a beleza do mundo.
[1] – ALCÁÇOVAS – Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Volume I. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra,1975.
Olá... adorei este texto! Tive lembranças da minha infância em que meu avô era sapateiro!!!
ResponderEliminarAproveito pra comentar, que aqui no Brasil se comemora, hoje dia 06/09 Dia do Alfaiate!
Abraços
Cassinha
E o meu pai era alfaiate.
ResponderEliminarAbraço.
Hernãni
Nao sei bem como vim aqui parar... no entanto, nao queria (ja que aqui estou) deixar de comentar muito positivamente, o que foi brilhantemente escrito e descrito... sinto "inda" hoje, esse Alentejo tao sobriamente narrado, tao rico em agrestias. Nao que tenha andado descalço nem passado privaçoes mas porque conheço o nosso Alentejo profundamente. E que todos o preservemos assim, tao puro e tao belo.
ResponderEliminarSaudaçoes Bejenses.
muito giro
ResponderEliminarmanuela
Manuela:
EliminarObrigado pelo seu comentário.
Os meus cumprimentos.
Não sou alentejano mas sou, assim como, uma espécie de alentejano-sem-travões, sou algarvio e,desde há muito, gosto do alentejo e, de um modo geral, da sua gente. Tive muitos, e ainda tenho alguns, amigos alentejanos. Gostei muito deste texto do amigo, permita-me, Hernani Matos
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