terça-feira, 18 de junho de 2024

O neo-realismo nas artes plásticas

 

Fig. 1 – Gadanheiro (1945). Júlio Pomar (1926-2018). Óleo sobre aglomerado de madeira,
122 × 83 cm. Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.


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A LUTA CONTRA O REGIME
Foi em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do Movimento das Forças Armadas – MFA, que foi conseguido o derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime totalitário e fascista de Salazar e de Caetano.
O 25 de Abril foi antecedido de muitas lutas contra o regime por parte de múltiplos sectores da sociedade portuguesa. Entre eles a frente cultural de escritores e artistas plásticos, descontentes com a política cultural do regime e que integrou o chamado “Movimento neo-realista português”. Este surge em finais dos anos 30 e identifica-se com a oposição ao regime, afirmando-se como representante e porta-voz dos anseios das classes trabalhadoras, retratando a realidade social e económica do país e empenhando-se na transformação das condições sociais do mesmo. Nesse sentido, foca-se no homem comum, procurando saber como vivem operários e camponeses. Aborda e aprofunda temas como as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Escrutina as injustiças e analisa o modelo social vigente. Pugna pela elevação moral dos oprimidos e deposita esperança no futuro do Homem.

MARCOS DO NEO-REALISMO NAS ARTES PLÁSTICAS
Há marcos importantes na génese e desenvolvimento do neo-realismo no âmbito das artes plásticas, os quais importa aqui salientar:

1 - A IX Missão Estética de Férias em Évora em 1945
As Missões Estéticas de Férias (MEF), instituídas pelo Decreto-Lei n.º 26957, de 28 de Agosto de 1936, destinavam-se a facilitar aos artistas e estudantes portugueses de artes plásticas, o conhecimento dos valores de carácter paisagístico, étnico, arqueológico e arquitectónico de Portugal, bem como a contribuírem para o seu cadastro, inventário e classificação.
As MEF tiveram lugar durante os meses de Agosto e Setembro no período 1937-1963 e visavam promover a formação de uma elite artística no contexto da visão política, académica e estética do Estado Novo. Para tal, os participantes eram escolhidos pelos órgãos da Academia Nacional das Belas Artes, atendendo ao seu mérito académico.
A IX Missão Estética de Férias realizada em Évora em 1945, foi orientada pelo pintor Dórdio Gomes e nela há a salientar a participação não só de pintores como Júlio Resende, António Lino e Júlio Pomar, como de arquitectos como Nadir Afonso e Francisco Rodrigues, bem como do escultor Arlindo Rocha.
O quadro “Gadanheiro” (Fig. 1) de Júlio Pomar ficou a marcar a Missão Estética de 1945, na qual o pintor produziu ainda obras como “Descanso” (Fig. 2) e “Retrato de Camponês” (Fig. 3). No relatório da Missão entregue à Academia Nacional de Belas-Artes, Dórdio Gomes destacou que Júlio Pomar não se interessou pela cidade, antes pelo trabalho dos camponeses, o que na sua opinião constitui outra face do Alentejo.
As pinturas de Júlio Pomar acima referidas, são consideradas pinturas inaugurais do Movimento neo-realista português, em ruptura com o panorama artístico conservador e retrógrado da década de 40.

2 - As Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946-1956)
As Exposições Gerais de Artes Plásticas - EGAP ocorreram entre 1946 e 1956 na SNBA - Sociedade Nacional de Belas Artes, com um interregno em 1952, devido à SNBA ter sido encerrada pela PIDE. Foram cruciais na afirmação das correntes artísticas portuguesas do pós-guerra, em particular do neo-realismo. Constituíram também um marco relevante na afirmação das artes plásticas no âmbito político-social, bem como na história da luta contra o fascismo em Portugal.
As EGAP surgiram numa época em que nas poucas salas de exposições como a SNBA, ou imperava um academismo conservador ou se exaltava o regime fascista, como acontecia com o SNI - Secretariado Nacional de Informação, dirigido por António Ferro.
As EGAP foram organizadas anonimamente pelo MUD - Movimento de Unidade Democrática e inseriram-se numa acção política de oposição ao regime, abalado pela crise económica de 1945, no final da guerra. Os expositores eram convidados a participar, sendo-lhes dado conhecimento da inexistência de júri e de prémios, sendo-lhes apenas exigida uma condição: nunca ter exposto no SNI ou doravante não o voltar a fazer.
É de realçar o carácter multidisciplinar das EGAP, já que para além da pintura, escultura, desenho e gravura, incorporaram com regularidade a arquitectura, as artes gráficas, a publicidade, as artes decorativas e esporadicamente, a fotografia.
A 1ª exposição foi um sucesso, o qual se repetiu na 2ª, cujo catálogo assinalava o desejo de aproximar a arte do povo, ao qual era endereçada uma mensagem de amizade e solidariedade. Ao perceber o significado real da iniciativa, o regime reage com violência, primeiro através do Diário da Manhã (órgão da União Nacional – partido único) e depois com uma rusga policial, a qual culminou com a apreensão de obras de Arnaldo Almeida, Avelino Cunhal, José Viana, Júlio Pomar, Maria Keil, Mário Dionísio, Nuno Tavares, Ribeiro de Pavia e Rui Pimentel, entre outros. A partir da 3ª exposição (1948) passou a ser accionada a censura prévia às exposições.
A importância das EGAP foi um corolário natural da sua regularidade e da inexistência de júris e prémios. Na verdade, um tal contexto viabilizou o surgimento de vagas consecutivas de jovens artistas que se destacariam na arte portuguesa, como Manuel Ribeiro de Pavia, Júlio Pomar, Cipriano Dourado, João Hogan, Maria Keil, Rolando Sá Nogueira, Alice Jorge, Querubim Lapa, Lima de Freitas, João Abel Manta, Rogério Ribeiro e António Alfredo, mas não só. Também escultores como Vasco da Conceição, Maria Barreira, Jorge Vieira, José Dias Coelho e Lagoa Henriques e arquitectos como Keil do Amaral, Hernani Gandra, Celestino de Castro, Castro Rodrigues e Sena da Silva. Por outro lado, as EGAP deram visibilidade a tendências variadas, entre elas o neo-realismo, de tal modo que a história deste passa pela história das EGAP.
A participação dos neo-realistas nas EGAP nunca foi maioritária nem assumiu contornos definidos, insurgindo-se os neo-realistas contra a própria ideia de estilo.
O período de afirmação do neo-realismo coincide com a duração das EGAP, já que a partir daí o movimento se dispersa e os artistas vão seguindo cada um o seu caminho.

3 - O ciclo do arroz (1953)
O “Ciclo do arroz” foi uma experiência colectiva, artístico-literária, realizada em 1953, na qual participaram Alves Redol, Júlio Pomar, Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado, Lima de Freitas, António Alfredo e Alice Jorge. Consistiu na realização de trabalho de campo junto das trabalhadoras dos arrozais do Ribatejo - cavadoras, mondadeiras e plantadoras de arroz - visando conhecer o seu modo de vida, as condições e a dureza do trabalho. O registo desse trabalho de campo, efectuado através de apontamentos e de fotografias, viria a ser utilizado na criação de obras (fig. 5)que receberam o título comum "Ciclo do arroz".

4 - A fundação da Sociedade Portuguesa de Gravadores (1956)
Em 1956 foi criada em Lisboa, a GRAVURA – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, a qual visava promover a gravura enquanto forma de arte. À data, nem sequer as Escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto se dedicavam a essa modalidade artística.
O seu objectivo era desenvolver a produção e divulgação da gravura original em Portugal e a venda aos sócios das gravuras produzidas através da sua actividade, incluindo uma oficina de gravura.
Do conjunto de sócios fundadores em número de 18, ressaltam os nomes de Júlio Pomar, Cipriano Dourado, José Cardoso Pires, Alice Jorge, Rogério Ribeiro, Armando Augusto Vieira dos Santos, José Júlio Andrade dos Santos, Joaquim José Barata e Francisco da Conceição Silva.
A gravura, devido à sua possibilidade de reprodução técnica, constituía um meio privilegiado de tentativa de democratização da prática artística e de aproximação da arte do povo. Por isso, a GRAVURA promoveu exposições itinerantes que percorriam o país e na quais todos os artistas participavam.

BIBLIOGRAFIA

- COSTA, Diogo Moraes Leitão Freitas da. Missões estéticas de férias: estética, academia e política numa iniciativa de formação artística do Estado Novo. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2016. [Em linha].  Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/27968?locale=pt_PT . [Consultado em 10 de Abril de 2024].

- ESTEVES, João. EXPOSIÇÃO "OS CICLOS DO ARROZ" - MUSEU DO NEO-REALISMO . Vila Franca de Xira, 2016 [Em linha]. Disponível em: https://silenciosememorias.blogspot.com/2016/04/1438-exposicao-os-ciclos-do-arroz-i.html . [Consultado em 12 de Abril de 2024].

- GOMES, Inês Vieira. Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses: O renascimento da Gravura em Portugal. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2010. [Em linha]. Disponível em: http://run.unl.pt/bitstream/10362/5700/1/tese.pdf [Consultado em 13 de Abril de 2024].

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- POMAR, Alexandre. 1945 - MISSÃO ESTÉTICA, ÉVORA. [Em linha]. Disponível em: https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2020/04/1945-miss%C3%A3o.html . [Consultado em 10 de Abril de 2024].

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- SANTOS, David (coordenador). BATALHA PELO CONTEÚDO / EXPOSIÇÃO DOCUMENTAL / MOVIMENTO NEO-REALISTA PORTUGUÊS. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-realismo. Vila Franca de Xira, 2007.

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- WIKIPÉDIA. Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. [Em linha]. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Gravura_%E2%80%93_Sociedade_Cooperativa_de_Gravadores_Portugueses [Consultado em 13 de Abril de 2024].

- XAVIER, Pedro do Amaral. Educação artística no Estado Novo: as missões estéticas de férias e a doutrinação das elites políticas em Apha. Boletim #4. Associação Portuguesa de Historiadores de Arte. Porto, 2006. [Em linha]. Disponível em: https://apha.pt/wp-content/uploads/boletim4/PedroXavier.pdf . [Consultado em 10 de Abril de 2024].

Hernâni Matos



Fig. 2 – Descanso (1945). Júlio Pomar (1926-2018). Óleo e areia sobre aglomerado,
48 x 80 cm. Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira.

Fig. 3 – Retrato de camponês (1945). Júlio Pomar (1926-2018). Óleo sobre
cartão colado sobre tela, 42x34 cm. Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa.

Fig. 4 – Ordem (1946). José Viana (1922-203). Óleo sobre tela, 73 x 83 cm.
Centro de Arte Moderna, Lisboa.

Fig. 5 – Mondadeiras (1954). Rogério Ribeiro (1930-2008). Aguarela, tinta-da-China e óleo
 sobre papel, 53,2 x 60,4 cm. Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira.

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