quinta-feira, 21 de abril de 2016

Auto das placas malfadadas



O enredo desenrola-se no nosso burgo, mesmo em frente da Casa das Leis, na praça Luís de Gamões, que é contígua à rua da Paróquia. A acção decorre há dois séculos atrás, para onde foram projectados os personagens, devido a uma avaria da máquina do tempo, que os põe a falar de factos que irão decorrer duzentos anos depois. O perfil dos intervenientes pode ser descrito assim:
- ANTÓNIO LIMÕES: Trovador de todas as horas, dias e meses, mas com uma predilecção especial por Abril. Poeta do quotidiano do povo, o qual canta com o vigor de uma mãe que amassa o pão.
- CARMELO ALTURAS: Seco de carnes e voz de trovão que brota lá do alto. Tem cabelo grisalho e usa bigode à mongol. Farejador nato de coisas por descobrir, é uma espécie de cão pisteiro que não descansa enquanto não abocanha a presa. Faz concorrência à traça na sua apetência pelos papéis velhos que povoam bibliotecas e arquivos. O resultado das suas descobertas é como uma candeia que alumia as trevas.
- FRANCISCO TRÁS: Sargento-Mor aposentado, reconhecido como herói pela sua participação capital no levantamento militar que nos restituiu a Liberdade. Estudioso da História Militar a nível local, é uma pessoa muito respeitada e estimada no burgo.
- MARIA MACHADÃO: Mulher robusta, peituda e vigorosa. Com frequência brada e gesticula contra a injustiça. Coitados daqueles que forem alvos da sua ira. Estão sujeitos a levar um par de tabefes.
- FERNÃO: Cronista de serviço. Sempre ao serviço do povo, que o reconhece como mensageiro da comunidade.
A cena única do auto, é fácil de resumir. Fernão encontra o poeta António Limões numa das suas raras saídas de casa, local preferido para poetar. Resolvem pôr as conversas em dia, até que frente à Casa das Leis, se cruzam com Maria Machadão que vocifera e gesticula com Carmelo Alturas. Nesse preciso momento chega também Francisco Trás, que logo pergunta:
- O que é que se passou Maria Machadão? A senhora está fora de si!
A resposta de Maria Machadão é célere:
– Não é caso para menos. Estava aqui a contar ao Carmelo Alturas que estando eu na praça Luís de Gamões, mais uma vez me vieram perguntar onde é que ficava a rua da Paróquia. É que a rua não tem placa nenhuma à entrada. Só lá tem o sítio onde devia estar. Quem me perguntou foi um carroceiro de fora que queria descarregar mercadoria na Estalagem do Jorge. Raro é o dia em que isto não acontece. E o Regedor que não toma providências. Já me estou a passar dos azeites. Qualquer dia dá asneira.
A uma só voz, todos lhe dizem:
- Calma é que é preciso!
Francisco Traz intervém seguidamente dizendo:
- O que a Maria Machadão referiu é a falta de uma placa toponímica numa rua. Todavia há outro tipo de placas, que são as placas evocativas das quais eu conheço um exemplo singular. Já o Dr. Marques Fresco na monografia que publicou sobre a nossa terra transtagana, chamava a atenção para a placa que está na Ermida de Santo Disto, ter ali sido posta por engano, uma vez que D. Nuno Álvares Macieira, antes de ter partido para a batalha dos Atasqueiros, ter orado com as suas tropas, não no Rossio Rustiquês Tribal, onde foi construída aquela Ermida, mas sim no Rossio de São Trás, onde veio a ser erigida uma Igreja votada ao Santo. Era aqui que devia estar aquela placa e até agora ninguém teve a coragem de ordenar a sua mudança.
Carmelo Alturas também não se contém e diz:
– A placa que o Francisco Traz relatou é uma placa evocativa mal localizada. Porém, eu conheço uma que está bem situada, mas tem um erro de inscrição. Ao investigar o Arquivo da Escola Industrial António Magusto Ressalves, fiz uma descoberta importante. O afamado escultor Chá Remos, ligado à recuperação dos nossos bonecos de barro, foi Director daquela Escola entre 1932 e 1945, como pude confirmar na imprensa local. Pois, na rua D. Tasco da Fama, existe um prédio azulejado em cuja fachada foi descerrada uma placa, assinalando que ele morou ali até deixar de ser Director da Escola, em 1944. É uma falta de rigor, que não lembra ao Diabo.
Intervém então António Limões, dizendo:
Pois eu conheço um caso diferente dos anteriores. Trata-se de uma placa evocativa, bem localizada e sem erros de inscrição, mas que está completamente ilegível. No largo do Espírito Tanto existe uma placa no frontispício do nº2-2º, evocativa de ali ter morado de 1951 a 1952, o poeta Sebastião da Fama, que pela sua prática pedagógica estabeleceu uma forte ligação afectiva com o nosso burgo, perceptível nos seus Poemas e no seu Diário. Com o rigor do tempo, a tinta das letras sumiu-se e não voltaram a pintá-la. Será que o poeta caiu no esquecimento de quem se devia lembrar destas coisas? É mesmo muito triste. Dói-me a alma só de pensar nisto. Mas há uma pessoa que podia dar um forte contributo para a resolução destas situações.
Perguntam todos simultaneamente:
- Quem?
Responde António Limões:
- O Fernão podia redigir uma crónica sobre isto tudo, num dos jornais onde cronista é. Se o Regedor não tem conhecimento, passa a ter. Mesmo que não leia os jornais, alguém que os leia por ele, vai-lhe dar conhecimento. 
Fernão aceita o encargo, dizendo:
– Contem comigo. Para tal, vou fazer uso da minha pena, que é firme e não tem pena de escrever. Isto é tudo uma questão de penas. Faz pena a situação das placas, que parecem estar a sofrer cada uma delas a sua pena. Mas basta de penas. Não há que ter pena. Pelo contrário, vale a pena procurar libertá-las daquilo que não pode ser uma pena eterna.
Respondem todos em uníssono:
- E não tenha pena.
Ao que Fernão replica:
- Certamente que não.
E porventura estimulado pela presença do poeta António Limões e parafraseando o cantor Daniel Cheire, é levado a versejar: Se cronista sou, / ao Povo o devo. / Aqui onde estou, / Para ele escrevo. E dito isto, retira-se, a fim de lavrar uma crónica que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através dum jornal onde cronista é.

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