quarta-feira, 10 de março de 2010

A ronca



A ronca é um instrumento musical tradicional do Alentejo, bastante rudimentar, pertencente à classe dos membranofones de fricção. É composto essencialmente por um reservatório, geralmente um cântaro de barro [1], que serve de caixa de ressonância e cuja boca é cerrada com uma pele esticada, a qual vibra quando se fricciona uma pequena e fina cana presa por uma das extremidades no seu centro. O som resultante, grave e fundo, é transformado pela caixa de ressonância no ronco característico do instrumento.
A espessura e a qualidade da pele, é importante por causa do som. Por isso, usa-se pele de ovelha, borrego, carneiro, cabra, cabrito ou chibo, bem como bexiga de porco ou de carneiro.
É um instrumento usado no acompanhamento de canções de Natal ou das Janeiras, podendo ainda pode ser encontrado na zona raiana (região de Portalegre, Elvas, Terrugem e Campo Maior), onde grupos de homens agasalhados nos seus capotes para arrostar o frio, percorrem as ruas em compasso lento e solene, entoando cantares, parando aqui e ali, para dedicar os seus cantos aos moradores de determinadas casas.
Durante a sua utilização, a ronca é levada debaixo de um dos braços, enquanto o outro fricciona a cana longitudinalmente, com força. A eficácia do funcionamento da ronca exige que, de vez em quando, os tocadores cuspam para a mão que empunha a cana, a fim de lubrificar a pele da ronca. Os cânticos entoados podem ser dos mais diversos. Por exemplo:

“Qualquer filho de homem pobre
Nasce num céu de cortinas.
Só tu, Menino Jesus,
Nasceste numas palhinhas.” [2]

“Ó mê Menino Jasus
Da Lapa do coração,
Dai-me da vossa merenda,
Que a minha mãe não tem pão.” [3]

Sobre a ronca, diz-nos António Thomaz Pires [4] "Das nove horas até à meia-noite de Natal percorrem as ruas da cidade diferentes grupos de homens do povo, cantando em altas vozes, em coro, e núm rhytmo e entoação especial, trovas ao Menino Jesus, acompanhadas pelo som àspero da ronca: alcatruz de nora, ou panella de barro, a cujo bocal se adapta uma membrana, ou pelle de bexiga, atravessada por um pau encerado, pelo qual se corre a mão com força para produzir um som rouco. Somente pelo Natal é este instrumento ouvido."

[1] - Mas pode ser também uma panela de barro ou um cântaro de lata ou outro recipiente qualquer.
[2] – Recolhida em Elvas: PESTANA, M. Inácio. Etnologia do Natal Alentejano, Edição da Assembleia Distrital, Portalegre, 1978.
[3] – Recolhida no Alandroal: VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português, vol. III, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1983.
[4] - PIRES, António Thomaz . "A noite de Natal, o Ano Bom e os Santos Reis” in Estudos e notas elvenses. António Torres de Carvalho. Elvas, 1923 ( 2ª ed.).

Publicado inicialmente a 10 de Março de 2010

7 comentários:

  1. Parabéns, amigo Hernâni, e o meu grande bem-haja pela pesquisa e divulgação de temas culturais, sempre oportunos e esclarecedores do como e dos porquês de expressões e objectos que constituem um tesouro cultural dos nossos antepassados, cuja riqueza e valor a muitos de nós, hoje, escaparia à compreensão, não fora o seu dedicado e atorado esforço.
    Abraço grato e amigo, com votos de um santi e feliz Natal.
    Maria Lina

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  2. Em Sintra, na Universidade da 3ª Idade , há um grupo que toca Roncas.

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  3. Outra excelente lembrança amigo Hernâni. Na semana anterior o "Estoura" tinha arranjado no Matadouro uma pele de gabarito para a ronca.E começam aquelas vésperas do Deus Menino pela função à porta da Belmira ( a tia Canuta fecha o postigo aos barulhentos),o " Sátiro" porta a ronca, habilita-a de ligeirezas na cana, adocicando-a de untos da boca. O Mestre Rafael dá óbulo para o vinho doce.E a campanha canta loas bem sonoras ao Menino nas palhinhas. Abala-se tudo rumo à " Porta Nova", dando enfeite no Largo da Câmara.
    O Silva do " Central deixa entrar os " Boas Novas"; o Júlio manca de calosidades ao portar das tacinhas do branco. « Oh, Salvador! Salva-nos com umas empadinhas, a noite é longa e hoje fecha tudo mais cedo em Estremoz. A carne da " Missadura" já frisna no barro: mas só depois da Missa do Galo!..."Oh, Padre Serafim! Acabe lá com a missa que a malta está cheia de galga!..."

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  4. Amigo Hernâni! agradeço imenso este seu esclarecimento sobre a ronca, que vem duma forma, muito mais compreensível sobre o que escrevi no meu comentário anterior. Com a linda imagem que juntou ao texto, a descrição ficou a matar. Ainda sobre a mesma, o amigo soube com muito mérito juntar o vídeo onde se pode ouvir, com muita nitidez; o seu som característico. Quando o senhor diz que de vez em quando o tocador de ronca tinha de cuspir sobre a mão que actuava sobre a vara, eu sabendo que assim acontecia, procurei dar um pouco de dignidade ao acto, dizendo que a mão tinha de ser molhada de vez em quando. Está óptima a sua descrição porque assim é que corresponde à verdade. Obrigado pela ajuda!

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  5. Caro Hernâni
    Na minha infância e adolescência em Elvas ainda existiam esses grupos que percorriam a cidade na noite de Natal, cantando acompanhados pelas roncas, parando em casa dos conhecidos para comer e beber, terminando muitas vezes estas digressões alta madrugada.
    Esta tradição morreu em Elvas devido à guerra colonial. Muitas famílias tinham filhos na guerra, e por conseguinte pouca disposição para prolongadas e alegres ceias de Natal. E os cantores estavam muitos na tropa...
    Um abraço

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    1. João:
      Obrigado pelo seu comentário.
      Talvez fosse possível fazer renascer a tradição.
      Porque não?
      Um abraço para si, também.

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