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sábado, 20 de agosto de 2016

Testamento dum franco-atirador

Numa tarde soalheira de Agosto, nasceu uma criança do sexo masculino, a quem foi dado o nome de Hernâni António Carmelo de Matos.
Hernâni António, por causa do Dr. Cidade, prestigiado literato da vizinha vila oleira do Redondo, o que configurando uma pré-cognição, terá correspondido a um empenho onomástico dos padrinhos, os quais terão apostado no sentido de o recém-nascido vir a ter queda para as letras, com especial interesse em falar de artefactos de barro, matéria prima que de acordo com o Génesis, terá sido usada por Deus, para modelar o primeiro homem. Mas António também, por inspiração onomástica do taumaturgo lisboeta e santo milagreiro, que entre inúmeros epítetos, teve o de “Oficina de Milagres”.
A criança de quem estou falando, sou eu e os meus pais foram João Sabino de Matos (alfaiate) e Selima Augusta Carmelo (telefonista). A eles devo o código genético, a criação e a educação, o que não foi pouco e por isso lhes estou agradecido.
Foi há 70 anos atrás, no dia 19, que rasguei o ventre a minha mãe, ao mesmo tempo que iniciava um monumental choro, forma instintiva de dizer:
- Porra! Já nasci!
Não fui enviado do Céu e tão pouco transportado por uma cegonha a partir de Paris. Nasci em Estremoz e isso é quanto basta.
Depois da Escola Primária, frequentei os bancos da Catequese, as formaturas da Mocidade Portuguesa e as aulas dum Colégio privado. Longe de constituírem ferretes e de me terem deixado estigmas, imunizaram-me contra tudo aquilo que representam. A fé cega, o espírito de obediência e o estatuto de casta com que me quiseram moldar, não resultaram. A fé foi substituída pela razão e pelo espírito científico. A obediência deu lugar à consciência crítica, à insubmissão e à ânsia de percorrer caminhos não pré-determinados. O estatuto de casta foi trocado pelos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, adoptados desde a Revolução Francesa, por todos aqueles que lutam contra a tirania e a opressão, em defesa da justiça e da solidariedade social. Daí que me tenha tornado laico e republicano. A isso não foi estranha a  candidatura do general Humberto Delgado em 1958, o convívio com velhos republicanos, a influência de alguns professores, a que se seguiu a participação nas lutas estudantis dos anos 60. Foram estes os ingredientes que me levaram a receber Abril de braços abertos.
Muito cedo percebi que tudo o que tem valor, não nos é dado, é fruto do nosso trabalho, do nosso esforço, da nossa dedicação. E aprendi a cultivar a amizade e a gostar de pessoas com carácter, que honram a palavra dada e lutam por ela. Pessoas com coluna vertebral, que não são vassalas de ninguém e respeitam a sua matriz identitária, em toda a sua plenitude. Pessoas que não se vendem, não se rendem e que sempre que as pretendem tombar, se levantam com redobrado vigor.
Tenho a escrita na massa do sangue como reflexo do pensamento dum espírito livre e insubmisso. A minha pena é o arado com que lavro as minhas crónicas de cidadania e os meus textos de intervenção cívica. Como franco-atirador, esse é o legado que deixo como testamento aos que me amam, a todos que me concederam o privilégio da sua amizade, bem como àqueles que se revêem nos meus textos, como guia prático para a acção. A nobreza de espírito assim o exige e é isso que aqui fica solenemente registado.

Publicado inicialmente em 20 de Agosto de 2016

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