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sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Poesia portuguesa - 020




Pátria, lugar de exílio - 3ª canção
Daniel Filipe (1925-1964)

Pátria, lugar de exílio,
geométrico afã
ou venenoso idílio
na serena manhã.

Pátria, mas terra agreste;
terra, apesar da morte.
Pátria sem medo a leste.
Lugar de exílio a norte.

Pátria, terra, lugar,
cemitério adiado
com vista para o mar
e um tempo equivocado.

Terra, débil lamento
na temerosa  noite.
Sobre os carrascos, vento,
desfere o teu açoite!

Anjo de fogo
pressinto a tua vinda
o gládio necessário erguido
sobre a cidade dominada
e digo-vos senhores é findo o vosso tempo
o jogo terminou ainda que o não pareça

Goivos que hão-de florir a vossa humana morte
são já semente adormecida à espera
de um outro Maio
luminoso e quente

Aqui às três da tarde
posso olhar-vos sem medo
e dizer-vos aqui estou
O Poeta é um operário
(MaiaKovski)
aprendei depressa a matar-nos
o poeta é o inimigo.
Mergulhamos as raízes na terra desventrada
confundimo-nos com ela
as nossas mãos florescem
e o vento leva a toda a parte o nosso desafio

Contra isto nada podem as armas a polícia os exércitos
a prisão a tortura
somos mais fortes do que tudo
somos a alegria
mesmo no fundo das masmorras cantamos
os pássaros aprendem as nossas palavras de esperança
descem com elas sobre o vosso sono
e ensinam-me o terror das noites solitárias

Tendes jornais
usai-os
tendes exércitos
usai-os
tendes polícia
usai-a
tendes juízes
usai-os
usai-os contra nós
procurai esmagar-nos
cantando resistimos
Somos a alegria o corpo o sal da terra
o sol das manhãs férteis a música do outono
a própria essência do amor a força das marés
somos o tempo em marcha

Esta é a única verdade
sabemos que vos é difícil aceitá-la
envoltos como estais em suborno e usura
bancos alta finança empréstimos externos
E no entanto esta manhã um pássaro
pousou à vossa beira embora
inutilmente

A pequena dactilógrafa matou-se
nós sabemos porquê.

Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa
e saiu cantando para a rua
nós sabemos porquê.

Uma noite
a jovem costureira não voltou para casa
nós sabemos porquê.

Um poeta
Roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro


Nós sabemos porquê.

NÓS SABEMOS PORQUÊ.


E no entanto é doce dizer pátria
sonhar a terra livre e insubmissa
inteiramente nossa
Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos,
Como
se nada houvesse antes de nós
e desde as fundações a erguêssemos completa
pura alegre acolhedora virgemde medos,
mortos insepultos
.
Regresso pelo tempo ao dia de hoje
primeiro de Maio de 1962
hora segunda da meditação

Ganho de novo consciência do lugar
Chegam comboios há mais gente na rua
Como se o rio humano recebesse
O agreste tributo de outra nascente

Vêm com o rosto de todos os dias
o olhar de todos os dias
as mãos e os pés de todos os dias
cansados de preencher impressos
moldar metais
afeiçoar madeiras
rodar motores e válvulas
sujos de óleo e poeira
deslumbrados de sol
operários    empregados de escritório    vendedores de porta
a porta
dir-se-ia que cantam

De súbito   a cidade parece banhada de alegria
estamos juntos meu Amor
possessos da mesma ira justiceira
Damos as mãos como dois jovens namorados
e sorrimos felizes
à doce primavera acontecida
no magoado coração da pátria

Vêm de toda a parte sem idade
Redes cobrem palavras esquecidas
e no silêncio cúmplice desfraldam
um novo e claro amanhecer do mundo

Vêm de mãos vazias. nem flores simbólicas
nem ramos de oliveira
Entre os seus dedos apenas desabrocha
o obscuro desejo de apertar outras mãos
como as suas. nervosas. sujas, proletárias.

E eu limpo, eu meticulosamente barbeado
eu de papéis em ordem
eu vestido de nylon dralon leacrileu rigorosamente asséptico
eu mergulhado até às virilhas na placidez burguesa
vou convosco cantando companheirosi
rmãos em pátria
em sonho em sofrimento

Ah riso aberto, coração do povo
cálice, flor, inesperado aroma
doce palavra antiga
liberdade

Daniel Filipe (1925-1964)

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