O Município de Estremoz deliberou realizar obras no
chamado edifício Luís Campos, visando transferir para ali a Biblioteca
Municipal. Trata-se de uma decisão que é merecedora de alguma reflexão.
A
linhagem da Biblioteca Municipal
Desde os primordiais Tempos da Outra Senhora que a
Biblioteca Municipal de Estremoz está instalada na Capela de Nossa Senhora das
Dores do Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Congregados de S. Filipe
Nery, actual edifício dos Paços do Concelho. Ali mesmo no Rossio Marquês de
Pombal, que em determinado momento, um deputado municipal laranja, numa atitude
revanchista e de reviralho miguelista, pretendeu rebaptizar com o nome de Dom
Nuno Álvares Pereira, no que foi travado pelos seus pares.
A majestosa sala principal da Biblioteca Municipal,
está ornamentada com belos painéis azulejares azuis e brancos, ao estilo
barroco-rococó de D. João V. Ali paira ainda o espírito protector dos piedosos
frades oratorianos, que por ali esconderam a devota imagem da Rainha Santa
Isabel, oferecida por D. João V à Capela homónima e que com tal atitude
subtraíram a imagem à pilhagem das tropas napoleónicas, que em 1808 e no
decurso da 1ª invasão francesa, comandadas pelo general Loison, “O maneta”,
saquearam a vila de Estremoz.
Mudar é preciso
Apesar da grandiosidade da sua sala principal, a
Biblioteca Municipal há muito que deixou de ser capaz de dar resposta às
necessidades de uma biblioteca pública. Daí que no mandato 2001-2005, o
executivo vermelho da CDU tenha avançado com um projecto de construção de um
novo edifício para a Biblioteca Municipal, o qual seria construído nas
traseiras do Convento, nos terrenos com elas confinantes e que foram pertença
da cerca conventual. Deste notável projecto, o qual era a menina dos seus
olhos, foi mentor o Vereador da Cultura, Júlio Rebelo. A continuidade do
projecto viria a ser interrompida pelo pleito eleitoral municipal de 2005.
No mandato 2005-2009, o Município foi gerido por um
executivo rosa do PS. Este, obliterado pelo propósito de fatiar o Rossio em
dois, meteu na gaveta a menina dos olhos de Júlio Rebelo. Saiu-lhe o tiro pela
culatra na disputa eleitoral de 2009, já que o eleitorado lhe deu ordem de
regressar às boxes, tendo a partir daí, iniciado uma travessia do deserto, cujo
fim não se vislumbra.
A partir daí e até à actualidade, o Município passa
a ser conduzido por um executivo furta-cor do MIETZ. Este viu-se confrontado
com a necessidade imperiosa e urgente de erguer um novo edifício para a
Biblioteca Municipal. É que agora e ao contrário de alguns anos atrás, uma
biblioteca pública não é apenas um armazém de livros, provido de mobiliário adequado
e que propicie a leitura. Pelo contrário, é uma instituição multifacetada que
liberta de interesses ideológicos, visa a partir do hábito de leitura,
fortalecer a dinâmica das transformações sociais, na procura da qualidade de
vida para todos os membros da comunidade onde se insere. Daí que tenha que
cumprir quatro funções básicas: educacional, cultural, recreativa e informacional.
Por isso, uma biblioteca tem uma missão social, que para além de facultar o
acesso à leitura de livros e de periódicos, passa também por facultar o acesso
ao visionamento de vídeos e à audição de CD’s, bem como o acesso à Internet.
Mas não só. Há também as actividades de fomento da leitura, as sessões de
poesia ou de leitura comentada, a apresentação de obras pelos autores, bem como
a animação de actividades com crianças, jovens e adultos, especialmente idosos.
Ora, não é possível gerir e desenvolver todas estas actividades num espaço
único. Consegui-lo, seria equiparável a “Meter o Rossio na rua da Betesga”, o
que é física e humanamente impossível, já que a realização de algumas
actividades, inviabiliza a concretização simultânea de outras. Daí resulta a
necessidade imperiosa e urgente de Estremoz dispor de um novo edifício para acolher
a Biblioteca Municipal.
Uma decisão singular
Num autêntico passe de mágica, o executivo
furta-cor do MIETZ delibera construir a futura Biblioteca Municipal no chamado
edifício Luís Campos, o qual afirma apenas manterá a fachada. Trata-se de um
edifício em cujo rés-do-chão esteve sedeada a mercearia homónima e que os
Serviços de Imprensa do Município classificam como “Edifício emblemático de
Estremoz”. Nada disso! Emblemáticos, simbólicos, alegóricos ou ex-líbris de
Estremoz são a Torre da Menagem, o edifício do Município e a estátua do
Gadanha. O resto é conversa.
Vítima de tragédia
Pela minha parte e em substituição do adjectivo
“emblemático”, eu utilizaria a expressão “vítima de tragédia”, a qual me parece
mais adequada. Sabem porquê? É que Túlio Espanca no Inventário Artístico de
Portugal, que abrange o concelho de Estremoz e foi dado à estampa em 1975, nos
dá informações preciosas sobre o imóvel, o qual remonta aos finais do séc.
XVIII. Dele nos diz que: “A escadaria está forrada por alizar de azulejos de
padrão azul e branco…”. “Os três salões do corpo nobre, …estão, de igual modo,
revestidos de silhares de azulejos setecentistas, dos últimos anos do reinado
de D. João V, representando cenas profanas, da vida coetânea com fidalgos e
populares, paisagens e arquitecturas, de bom desenho agrupável aos mestres das
oficinas dos Bernardes”. “Da mesma época, edificado no centro do complexo
habitacional, é o conjunto sacro do oratório, … Os cartões cerâmicos são
figurados por cenas marianas, como N.ª S.ª DA CONCEIÇÃO, CASAMENTO DA VIRGEM,
ANUNCIAÇÃO, VISITAÇÃO DE SANTA ISABEL, APRESENTAÇÃO NO TEMPLO e outras de
difícil leitura momentânea, pelo facto de a capela se encontrar desafectada e
cheias de móveis utilitários”.
Acontece que como sequela do 25 de Abril de 1975, a mercearia foi ao ar
e o edifício ficou ao abandono, até que alguém com olho para o negócio,
adquiriu o edifício para o despojar de toda a azulejaria e daquilo que muito
bem entendeu, que depois vendeu por preço generoso e dentro da legalidade
democrática, uma vez que o edifício não se encontrava classificado pelo
IGESPAR, já que ninguém tinha solicitado a sua classificação. Quando Joaquim
Vermelho deu por isso, já era tarde. A partir daí, só havia que chorar lágrimas
de crocodilo.
O imóvel ainda foi utilizado como oficina de
restauro de mobiliário, até que o proprietário deixou de o utilizar, pelo que
com o abandono, o tempo se encarregou de o degradar irreversivelmente. Daí que
no Inverno e na Primavera, o seu telhado faça lembrar um jardim suspenso, dado
estar coberto por abundante e espessa vegetação, adubada à tripa forra, por uma
fracção significativa dos pombos vadios de Estremoz, que transformaram a mercearia
na sua residência particular. Digam-me lá, se tudo isto é ou não é, uma
grandessíssima tragédia?
A nova Biblioteca Municipal
A construção da nova Biblioteca Municipal deve dar
uma resposta cabal a todas as missões que se põem a uma biblioteca pública do
séc. XXI e que os projectistas deverão ter em conta. Para além delas, impõe-se
também a facilidade de acessibilidade a todas as suas valências, por parte de crianças,
idosos e deficientes, tal como está consignado na lei. Confesso igualmente que
me preocupa desde já é o barulho, devido à contiguidade da rua e à inexistência
de uma zona de protecção que possa funcionar como blindagem ao ruído. Outra, é
não saber se vai existir ou não, um espaço ajardinado ao ar livre, que possa
ser utilizado em actividades com crianças. Estas são as questões mais
pertinentes que me surgiram no espírito, as quais, todavia, não são únicas.
Epílogo
A ser construída a Biblioteca Municipal no local da
antiga mercearia Luís Campos, por ali pairará a memória laica do Marcial Louro,
do Manuel Basílio, do Rúdio e do Palmeiro, caixeiros que ao aviar-nos, nos
cortavam a fracção pretendida da barra de sabão, mediam o azeite, empacotavam o
açúcar a granel e embrulhavam a manteiga retirada da lata. São memórias que me
aquecem a alma e que procuro transmitir aos jovens alternativos dos dias de
hoje, que tal como eu recusam a formatação de identidades, promovida pelos
mentores da globalização.
Em Estremoz, existe um restaurante de excelência,
chamado “Mercearia”. Ao que tudo indica vamos ter também uma mercearia
transformada em Biblioteca. Faço votos para que também seja de excelência. Até
lá, não deixo de pensar que é preciso “Ver para crer, como São Tomé” e “A ver
vamos, como Frei Ramos”.
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