Casal na rua (1887).
Charles Angrand (1854-1926)
Óleo sobre cartão (39 x 33 cm ).
Musée d'Orsay, Paris.
A acção decorre há dois séculos atrás na Igreja Matriz de
Santa Maria do Castelo, para onde se dirigem em romagem de profundo fervor
religioso, as donas esplanadas, ilustres senhoras que têm andado nas bocas do
nosso burgo transtagano.
Na nave central do vetusto Templo e
sobressaindo dos demais fiéis, chama a atenção pelo ineditismo da situação e
pelo espaço que ocupam, a presença de Dona Formosa, Dona Aliança, Dona Susana,
Dona Russa, Dona Alentejana, Dona Águias, Dona Alecrim, Dona Mercearia, Dona
Verde, Dona Dinis e Dona Buxa. A sua presença ali deve-se ao facto de terem
mandado celebrar uma Missa de Acção de Graças, não só pelas graças já recebidas
como a receber, o que as leva a desejar ao Regedor do burgo, uma longa vida,
repleta de infindos sucessos pessoais.
É celebrante, o honorável Cónego Túlio, bem
conhecido do rebanho de Deus, por numa altura de grave seca que a todos afligia,
ter organizado uma Procissão para que chovesse. Infelizmente e apesar dos
auspícios da Padroeira local, a chuva não estava nos desígnios do Senhor, pela
que a seca continuou.
O vetusto Cónego enverga a sua mais vistosa
casula e no início da Liturgia proclama com douta solenidade:
-
Irmãos: Estamos aqui nesta Santa Casa para dar graças ao Senhor, por tudo o que
de bom nos tem dado, o que inclui as esplanadas do nosso burgo. Que o Senhor
com o seu infinito Poder e Sabedoria, dê longa vida ao Regedor que nos governa,
para que este possa prosseguir sem interrupções, a obra meritória que
incansavelmente vem desenvolvendo. Demos graças a Deus e oremos ao Senhor.
Depois da Comunhão, na qual participaram
piamente todas as senhoras donas esplanadas, estas sentiram-se mais confortadas
espiritualmente, pelo que depois do Clérigo se ter retirado para a Sacristia e
após alguns momentos de reflexão interior, saíram do Templo, permanecendo
todavia no adro. Ali deram vazão a uma alegria sem limites, osculando-se repenicadamente,
em sinal de mútua, sonora e incomensurável afeição. Depois, cada uma desfiou o
rosário das suas reclamações e do direito que lhe assiste ao terrado. Excluindo
algumas particularidades, a razão de peso invocada e que é uma causa comum que
as une, constitui um esperado corolário daquele conclave:
- A
gente tem que se governar. A iniciativa privada é que sabe! Graças a Deus que o
Regedor nos apoia. Há quem diga que violamos o Código da Estrada. Qual Código
da Estrada, qual carapuça? Isso é invenção da firma Jerónimo Martins e Costa,
Lda., que por ter posição maioritária, se julga dona disto tudo e entende que a
razão está do seu lado. Só pensa no sector público, em detrimento da iniciativa
privada. Mas está enganada. Aqui quem manda é o Regedor. Ponto final,
parágrafo.
O sol já ia alto, pelo que alguém foi de
opinião, que deviam regressar aos respectivos terrados, a fim de fazer pela
vida e recuperar as despesas da Missa.
Como Fernão é frequentador da estalagem do
Jorge, a senhora Dona Alentejana foi mandatada para lhe dar conhecimento de
todos estes factos, a fim de que junto do Regedor, dê eco de todos estes
brados, através do jornal onde cronista é.
Só então as donas esplanadas, senhoras
ilustres do nosso burgo, dali saíram pelo seu pé e em boa ordem, em direcção ao
terrado, o qual já não é público, mas é delas. A partir de agora, nada vai ser
igual. Aquela Missa de Acção de Graças, funcionou como Congresso Constitutivo
da UBER – União Benfazeja das Esplanadas Regedorais. Na sequência dele, as esplanadas
irão ficar de pedra e cal, para gáudio de uns e desespero de outros.
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