O entrecho decorre há dois séculos atrás no nosso
burgo, mesmo em frente da Casa das Leis, na praça Luís de Gamões, que confina
com a rua da Paróquia. Aí se avistam os personagens do auto, em número de seis
e com perfil que passamos de imediato a descrever:
- CARLOS TUNA: Historiador. Conversador nato e
orador eloquente. Identificado com o bloco da Abrilada, é um defensor acérrimo
da causa oliventina.
- CARMELO ALTURAS: Avantajado de corpo, mais em
altura que em largura. Vozeirão tonitruante que lhe agita o bigode à mongol,
grisalho como o cabelo. Recolector nato, é frequentador assíduo de bibliotecas
e arquivos. Tem uma apetência especial por coisas de outros tempos, as quais
considera marcas identitárias que urge preservar.
- LÉRIAS: Anafado, baboso e bastante reaccionário.
Especialista em distorcer realidades para as adequar às suas conveniências.
- FIRMINA TAUTAU: Mulher peituda e refilona. Na sua
boca, as palavras são armas com que zurze os prevaricadores, à mesma velocidade
com que distribui tabefes.
- FERNÃO: Mensageiro da comunidade como cronista ao
serviço do povo.
- FRANCISCO TRÁS: Sargento-Mor jubilado, heróico
participante da Abrilada e estudioso de assuntos militares.
O auto compõe-se de uma cena única, fácil de ser
sintetizada. Fernão e Carmelo Alturas transitam pela rua da Paróquia e acabam
por desembocar na Praça Luís de Gamões. Aqui, frente à Casa das Leis,
encontra-se um grupo constituído por Lérias, Firmina Tautau, Francisco Trás e
Carlos Tuna. Este último, com a desenvoltura que lhe é peculiar, dirige-se aos
presentes, dizendo:
- Meus
amigos: A feira medieval animou o clero, a nobreza, os militares, os mercadores
e a arraia-miúda. Sobretudo esta última, que nestes dias esqueceu os problemas
que a atormentam no dia a dia. Mas em termos de concepção, a feira apresentou
um crasso erro de contextualização, quando envolveram na feira, as figuras da
Rainha Santa e de D. Diniz. É que a Rainha Santa Isabel morreu em Estremoz em
1336 e a I Feira Medieval de Estremoz, teve lugar 127 anos depois, entre 20 e
30 de Junho de 1463, já na 2ª Dinastia. Tudo graças a carta de mercê datada de
Estremoz aos 25 de Janeiro de 1463, concedida por D. Afonso V, que nesse
sentido tinha sido solicitado pelos oficiais e homens-bons do Concelho, no
decurso da sua permanência em Estremoz, na última quinzena de Janeiro desse
ano. De salientar também que em 1463 era inexistente o culto oficial à Rainha
Santa, o que só aconteceu após a beatificação concedida em 1516 pelo Papa Leão
X, por solicitação de D. Manuel I.
E acrescenta ainda:
- Estão a ver
que houve aqui uma grandessíssima trapalhada. E não se percebe bem se quiseram
que a Rainha Santa e D. Diniz viajassem para o futuro ou se pretenderam que as
feiras medievais tivessem começado mais cedo, assim numa espécie de “Oh tempo,
volta para trás!”. De qualquer maneira, o que fizeram foi albardar o burro à
vontade do dono, dando um grandessíssimo pontapé no cu dos cartapácios de
História.
Carmelo Alturas entende também dar conta do que lhe
vai na alma, proclamando:
- Trovadores
não houve e jogos medievais também não. Quanto a actividades gímnicas, só as de
rapa o tacho e com o púcaro bem cheio de vinho, bota acima e bota abaixo.
Lérias, eufórico, acha que é a altura própria para
falar:
- Eu cá
gostei da feira. Até fiquei arrelampado de ver as bailarinas com as pernas ao
léu. Aquilo era só carne fresca. Foi um regalo para a vista, como já não tinha
há muito.
Firmina Tautau interrompe-o, vociferando:
- Cale-se seu
velho tarado. Se volta a dizer outra baboseira, chego-lhe a roupa ao pêlo, que
é para ver se aprende a ter respeito pelas mulheres.
Fernão concilia, afirmando:
- Tenha calma
mulher, que aquilo foi a memória da juventude a vir-lhe à flor da pele. Vai ver
que lhe passa num instante.
Ouvindo isto, Firmina Tautau replica:
- Bom. Vamos
lá a ver se ele tem tento na língua. De contrário temos o caldo entornado.
Francisco Trás, até aí silencioso, entende que é
chegada a altura de se pronunciar:
- Eu até
gostei. Os apontamentos militares foram soberbos. O orgulho, o garbo e o
pundonor militares, levaram a tropa a dar o melhor de si própria. Fiquei
reconfortado depois de assistir a toda aquela espadeirada. E é tudo o que tenho
para dizer.
Ouvindo isto, Fernão conclui:
- Vou-me
embora meus amigos, que já os ouvi a todos. Tenho que dar à perna, senão não
posso dar à pena.
E dito isto, retira-se, a fim de lavrar uma crónica
que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através dum jornal onde
cronista é.
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