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quarta-feira, 1 de junho de 2016

Auto da Feira


UMA FEIRA MEDIEVAL
Gilles de Rome, Livre du gouvernement des Princes.
Françe, siecle 15. Paris, BnF, Arsenal 5062 fol. 149 v.

O entrecho decorre há dois séculos atrás no nosso burgo, mesmo em frente da Casa das Leis, na praça Luís de Gamões, que confina com a rua da Paróquia. Aí se avistam os personagens do auto, em número de seis e com perfil que passamos de imediato a descrever:
- CARLOS TUNA: Historiador. Conversador nato e orador eloquente. Identificado com o bloco da Abrilada, é um defensor acérrimo da causa oliventina.
- CARMELO ALTURAS: Avantajado de corpo, mais em altura que em largura. Vozeirão tonitruante que lhe agita o bigode à mongol, grisalho como o cabelo. Recolector nato, é frequentador assíduo de bibliotecas e arquivos. Tem uma apetência especial por coisas de outros tempos, as quais considera marcas identitárias que urge preservar.
- LÉRIAS: Anafado, baboso e bastante reaccionário. Especialista em distorcer realidades para as adequar às suas conveniências.
- FIRMINA TAUTAU: Mulher peituda e refilona. Na sua boca, as palavras são armas com que zurze os prevaricadores, à mesma velocidade com que distribui tabefes.
- FERNÃO: Mensageiro da comunidade como cronista ao serviço do povo.
- FRANCISCO TRÁS: Sargento-Mor jubilado, heróico participante da Abrilada e estudioso de assuntos militares.
O auto compõe-se de uma cena única, fácil de ser sintetizada. Fernão e Carmelo Alturas transitam pela rua da Paróquia e acabam por desembocar na Praça Luís de Gamões. Aqui, frente à Casa das Leis, encontra-se um grupo constituído por Lérias, Firmina Tautau, Francisco Trás e Carlos Tuna. Este último, com a desenvoltura que lhe é peculiar, dirige-se aos presentes, dizendo:
- Meus amigos: A feira medieval animou o clero, a nobreza, os militares, os mercadores e a arraia-miúda. Sobretudo esta última, que nestes dias esqueceu os problemas que a atormentam no dia a dia. Mas em termos de concepção, a feira apresentou um crasso erro de contextualização, quando envolveram na feira, as figuras da Rainha Santa e de D. Diniz. É que a Rainha Santa Isabel morreu em Estremoz em 1336 e a I Feira Medieval de Estremoz, teve lugar 127 anos depois, entre 20 e 30 de Junho de 1463, já na 2ª Dinastia. Tudo graças a carta de mercê datada de Estremoz aos 25 de Janeiro de 1463, concedida por D. Afonso V, que nesse sentido tinha sido solicitado pelos oficiais e homens-bons do Concelho, no decurso da sua permanência em Estremoz, na última quinzena de Janeiro desse ano. De salientar também que em 1463 era inexistente o culto oficial à Rainha Santa, o que só aconteceu após a beatificação concedida em 1516 pelo Papa Leão X, por solicitação de D. Manuel I.
E acrescenta ainda:
- Estão a ver que houve aqui uma grandessíssima trapalhada. E não se percebe bem se quiseram que a Rainha Santa e D. Diniz viajassem para o futuro ou se pretenderam que as feiras medievais tivessem começado mais cedo, assim numa espécie de “Oh tempo, volta para trás!”. De qualquer maneira, o que fizeram foi albardar o burro à vontade do dono, dando um grandessíssimo pontapé no cu dos cartapácios de História.
Carmelo Alturas entende também dar conta do que lhe vai na alma, proclamando:
- Trovadores não houve e jogos medievais também não. Quanto a actividades gímnicas, só as de rapa o tacho e com o púcaro bem cheio de vinho, bota acima e bota abaixo.
Lérias, eufórico, acha que é a altura própria para falar:
- Eu cá gostei da feira. Até fiquei arrelampado de ver as bailarinas com as pernas ao léu. Aquilo era só carne fresca. Foi um regalo para a vista, como já não tinha há muito.
Firmina Tautau interrompe-o, vociferando:
- Cale-se seu velho tarado. Se volta a dizer outra baboseira, chego-lhe a roupa ao pêlo, que é para ver se aprende a ter respeito pelas mulheres.
Fernão concilia, afirmando:
- Tenha calma mulher, que aquilo foi a memória da juventude a vir-lhe à flor da pele. Vai ver que lhe passa num instante.
Ouvindo isto, Firmina Tautau replica:
- Bom. Vamos lá a ver se ele tem tento na língua. De contrário temos o caldo entornado.
Francisco Trás, até aí silencioso, entende que é chegada a altura de se pronunciar:
- Eu até gostei. Os apontamentos militares foram soberbos. O orgulho, o garbo e o pundonor militares, levaram a tropa a dar o melhor de si própria. Fiquei reconfortado depois de assistir a toda aquela espadeirada. E é tudo o que tenho para dizer.
Ouvindo isto, Fernão conclui:
- Vou-me embora meus amigos, que já os ouvi a todos. Tenho que dar à perna, senão não posso dar à pena.
E dito isto, retira-se, a fim de lavrar uma crónica que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através dum jornal onde cronista é.


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