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quarta-feira, 9 de março de 2016

Auto dos pombos promíscuos


Rapariga com pombos (1728).
Antoine Pesne (1683-1757).
Óleo sobre tela (76 x 61 cm).
Gemäldegalerie, Dresden.

Tudo indica que o teatro de cordel se tenha instalado com armas e bagagens na nossa urbe transtagana. Desta feita, é o “Auto dos pombos promíscuos” que está a constituir um autêntico êxito popular. A acção decorre há dois séculos atrás, na praça defronte à Casa das Leis. Aí se divisam os personagens do auto, em número de quatro e que passamos de imediato a descrever:
- CARIZ: Jurisconsulto local. De porte imponente, bigodudo e sempre impecavelmente vestido. Tem ar solene e desloca-se na rua, em passo cadenciado, como quem vai em procissão. Por motivos de natureza profissional, vê-se obrigado a deslocar entre zonas da malha urbana, massacradas pelos indesejáveis pombos aí aquartelados. Mora junto ao Palácio Rocha, tem escritório junto do Convento dos Desregrados e frequenta a Casa das Leis, contígua à rua da Paróquia.
- MISÉRIAS: Septuagenário reformado, antigo assalariado rural que já foi pau para toda a obra. Joga ao chinquilho com os companheiros no Rossio Rustiquês Tribal. De vez em quando, descansa num banco. Aí recebe a visita dos pombos, que lhe fazem companhia e aos quais distribui miolos de pão.
- LELO: Descansador nato, cansado das maçadas da vida, é frequentador da Casa das Leis, onde tem lugar certo no poial da entrada. Ali passa o tempo, sentado, apanhando banhos de sol e tirando umas fumaças.
- VALENTINA: Mulher robusta, de pelo na venta, habituada a lutar pelos seus direitos e por tudo aquilo em que acredita. Pragueja contra aqueles que considera serem responsáveis pelos problemas que a atormentam.
O auto consta de uma cena única, fácil de ser resumida. Cariz sai do seu escritório e surpreende Misérias a dar de comer aos pombos. Desde logo o adverte de que está a violar a legislação vigente, relativa a animais vadios. Acrescenta ainda que, apesar de o Regedor e os meirinhos fazerem vista grossa da lei, esta é para cumprir, doa a quem doer. Após ter deixado Misérias a sentir-se ainda mais pequenino, despede-se com um proverbial “Fique com Deus”. Dirige-se então para a Casa das Leis. À porta desta, Valentina dialoga com Lelo, o qual mostra um ar bastante aborrecido. Este, após ser questionado pelo causídico, confessa que um pombo daqueles avantajados, lhe acaba de fazer um monumental presente nas costas. Nessa altura, Valentina intervém, dizendo que está solidária com Lelo. Também ela vive com o coração nas mãos, sempre que tem roupa a corar ou a secar. Daí que declare a Cariz, que a sorte dos pombos, é ela não voar, senão já os tinha feito em fanicos. Segundo ela, o Regedor não quer saber. Acha que ele e os pombos se tratam por tu e que são unha com carne. Cariz diz estar solidário com ambos, pois no Verão passado viu um belo casaco de linho de primeira, ser bombardeado pelos malditos columbídeos. Desde então que aquela veste só tem serventia para limpar as botas de caça. Daí que Cariz tenha assumido, desde logo, o compromisso de ir falar com o Regedor, alegando que ele tem de aprender a torcer o bigode. Segundo ele, os pombos vivem à tripa forra, a gozar com as pessoas de bem e isso não pode continuar. Despede-se seguidamente dos seus comparsas de infortúnio, com o habitual “Fiquem com Deus”. Estes respondem em uníssono, com um sentido “Obrigado, Senhor Doutor. Deus lhe pague, que a gente anda em crise”.
EPÍLOGO
Qualquer semelhança com a realidade local é mera coincidência, visto que o auto reflecte uma realidade de há duzentos anos atrás.

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