António Gedeão (1906-1997)
Hoje
é dia de ser bom.
É
dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de
falar e de ouvir com mavioso tom,
de
abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É
dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de
lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de
perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de
meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove
tanta fraternidade universal.
É
só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como
se de anjos fosse,
numa
toada doce,
de
violas e banjos,
Entoa
gravemente um hino ao Criador.
E
mal se extinguem os clamores plangentes,
a
voz do locutor
anuncia
o melhor dos detergentes.
De
novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e
as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa
Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não
seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se
difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda
a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos
participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e
fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas
lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com
subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam,
sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as
belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os
olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao
chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É
como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como
se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A
Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se
uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E
a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e
compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
Mas
a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela
véspera santa
a
sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que
nem dorme serena.
Cada
menino
abre
um olhinho
na
noite incerta
para
ver se a aurora
já
está desperta.
De
manhãzinha,
salta
da cama,
corre
à cozinha
mesmo
em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na
branda macieza
da
matutina luz
aguarda-o
a surpresa
do
Menino Jesus.
Jesus
o
doce Jesus,
o
mesmo que nasceu na manjedoura,
veio
pôr no sapatinho
do
Pedrinho
uma
metralhadora.
Que
alegria
reinou
naquela casa em todo o santo dia!
O
Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava
tudo com devastadoras rajadas
e
obrigava as criadas
a
caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já
está!
E
fazia-as erguer para de novo matá-las.
E
até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que
caíam
crivados
de balas.
Dia
de Confraternização Universal,
Dia
de Amor, de Paz, de Felicidade,
de
Sonhos e Venturas.
É
dia de Natal.
Paz
na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória
a Deus nas Alturas.
António Gedeão (1906-1997)
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