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quarta-feira, 4 de maio de 2016

Auto dos caixotões falantes


Retrato de Hermann Hillebrandt Wedigh (1533).
Hans Holbein le Jeune (1497-1543)
Berlin, Gemäldegalerie.

No nosso burgo, nas traseiras da Casa das Leis, existe uma rua singular que nunca foi baptizada e que por isso não tem nome. É como que uma rua de pé descalço, um atalho Zé-ninguém, que liga a rua da Paróquia à rua Nova da Praça.
Na artéria anónima existe uma placa ajardinada que a atravessa duma ponta a outra. No topo virado para a rua da Paróquia e sob um portentoso cedro, foram colocados há muito, quatro caixotões para lixo, paralelepipédicos, com as cores da Regedoria. Frente a eles está disposto um caixotão maior e igualmente paralelipipédico, de igual cor, vocacionado para receber vasilhame de vidro devoluto. Os caixotões têm a particularidade de falar uns com os outros.
O enredo do auto desenrola-se há dois séculos atrás e envolve 6 personagens, assim caracterizados:
- JUSTO SEVERO: É o caixotão que fica mais próximo da Casa das Leis. Tem formação jurídica, uma vez que nele são depositados papéis provenientes daquela Casa. Para além disso, por ser o que fica mais a jeito, acolhe também restos de fruta provenientes da frutaria do Horta d’Água. É vegetariano e goza de um estatuto social superior ao dos outros caixotões.
- JOÃO CONTENTE: Disposto à direita de Justo Severo, recolhe não só materiais provenientes do Horta d´Água como da Estalagem do Jorge, que à excepção do vasilhame de vidro, ali faz desembocar tudo aquilo que para eles não tem préstimo. É muito senhor do seu paladar e aprecia desde restos de petingas com arroz a bifinhos com cogumelos. As dietas não são com ele.
- ZÉ DAS ISCAS: Colocado à direita de João Contente, recebe todo o género de desperdícios provenientes da Tapanisca, o que inclui moelas e iscas. Recebe também papel e embalagens de cartão, ali depositadas pela papelaria Duques e Chicas. Ali vai parar também algum vasilhame com restos de vinho, que em certas alturas o levam a arrotar e a ter soluços.
- MERDÉLIO: Caixotão à direita do Zé das Iscas. Além de ser pau para toda a obra, é o que está mais próximo da sentina pública, pelo que nele são depositados papéis dali provenientes, conspurcados com matérias fecais. 
- BORRACHÃO: Plantado em frente dos restantes caixotões, só recebe vasilhame de vidro e a coisa parece que funciona.
- FERNÃO: Cronista de serviço. Sempre ao lado do povo, que o reconhece como porta-voz da comunidade.
Pelo seu estatuto social, Justo Severo é que lidera os caixotões e a eles se dirige logo no início do entremez:
- Meus Senhores: Após séria reflexão, cheguei à triste conclusão de que a nossa presença aqui não faz sentido algum, desde que após a Abrilada, começaram a espalhar caixotões especializados aí pela urbe, tal como se pode constatar no largo General Graça e na rua Nova da Praça. Cada um só recebe aquilo para que está destinado: papel e cartão, material imperecível e metal, vasilhame de vidro e outro para receber tudo o que não seja nada disto. Nós estamos fora de tempo, estamos velhos e cansados, estamos a precisar de reforma. O Regedor que mande pôr aqui caixotões especializados, como há noutros locais. Concordam?
Todos a uma só voz respondem:
- Queremos a reforma já!
Justo Severo quer ouvi-los separadamente, pelo que diz:
Respondam-me lá, um por um.
E assim acontece. O primeiro a responder é Merdélio:
Eu concordo. Estou farto desta merda.
Segue-se João Contente:
Eu também. Já ando enjoado de fruta.
Por sua vez, Zé das Iscas confessa:
– E eu também. Já ando embuchado, que ultimamente não tem aparecido pinga.
Quanto ao Borrachão não dá sinal de si, etilizado como está pelos excessos vínicos do dia anterior. Daí que Justo Severo tenha concluído que havia que passar à acção. Como tal dirige-se aos caixotões que estão despertos, nos seguintes termos:
Pois bem. Temos que tomar uma atitude. Já que ninguém nos consegue ouvir, vou deixar no chão um memorandum dirigido ao Fernão, que costuma passar aqui próximo. Papel não me falta e pena também não, pois veio aqui parar uma ontem. O Fernão é bom homem e poderá tomar providências. Basta que lavre uma crónica que junto do Regedor, dê eco de todos estes brados, através dum jornal onde cronista é.
E conclui:
- Meus Senhores: Dou a reunião por terminada, pois agora tenho que escrever.

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