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terça-feira, 11 de março de 2014

Sete e dois, nove, noves fora nada.

A Escola Secundária de Estremoz na actualidade.

UMA BRINCADEIRA
Vou-vos contar uma história do “Tempo da Outra Senhora”. É uma história singela, de quem em 36 anos de carreira, passou 34 na Escola Secundária de Estremoz. O meu ingresso começou por ser uma brincadeira. Num sábado de manhã, no início do ano lectivo de 1972-73, estava eu sentado na esplanada do Café Alentejano, quando chega a namorada de um amigo meu, a qual vinha preencher um horário vago. Eu, com algumas cadeiras por terminar na Universidade, estava ali no Café, a espairecer. Ela, então, meteu-se comigo, perguntando-me:
- Porque é que em vez de estares a viver à custa dos teus pais, não procuras também, preencher um horário na Escola?
Nunca tal me passara pela cabeça, pois nunca pensara em ser Professor. À laia de me ver livre dela, disse-lhe assim:
- Diz lá ao Director que se tiver algum horário disponível, me telefone aqui para o Café.
Então não é que o bom do homem me telefona daí a um quarto de hora, dizendo:
- Senhor doutor, tenho aqui um horário de Matemática, que está disponível. Se estiver interessado venha, faz a apresentação às turmas de hoje e ganha já o fim-de-semana.
Fiquei sem pinga de sangue, mas o que havia eu de fazer? Não podia voltar com a palavra atrás. Foi assim que me tornei Professor daquela Escola. Foi uma brincadeira imprevista que preencheu quase metade da minha vida.
UMA MENTIRA
A seguir à brincadeira, vi-me envolvido numa grandessíssima mentira. É que estávamos no “Tempo da Outra Senhora”, que é como quem diz, estávamos no tempo do fascismo, com o Marcelo Caetano em primeiro-ministro, um partido único – a União Nacional e uma polícia política, a PIDE-DGS, que perseguia, torturava e prendia os opositores ao Regime, ao qual havia que assegurar fidelidade, para poder ingressar na Carreira. Assim, lá fui chamado ao gabinete do Chefe da Secretaria, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal de que tinha activo repúdio pelo comunismo e todas as ideias subversivas. É claro que eu era mesmo subversivo, ainda hoje o sou, como toda a gente sabe, pois está-me na massa do sangue. Eu era então, um jovem do Maio de 68, caldeado na luta académica contra o Regime e membro do clandestino Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa. Assim, para ter direito a ser Professor e usufruir daquilo com que se compram os melões, tive que mentir descaradamente, com quantos dentes tinha, que era aquilo que fazia a esmagadora maioria das pessoas.
O HORÁRIO
O horário era de 22 horas lectivas, mas eu aceitei ter 10 horas extraordinárias, a ver se fazia mais algum, pois o salário era magro. Ao longo dos anos leccionei Matemática, Física, Química, Mercadorias, Química Geral e Analítica, bem como Área de Projecto.
O TRANSPORTE PARA A ESCOLA
Eu morava na Rua 5 de Outubro, em Estremoz e, comecei por ir para a Escola numa velha pasteleira a pedais, pertença dum empregado do meu pai, a qual ficava guardada debaixo das escadas do átrio de entrada. Só mais tarde arranjei dinheiro para comprar bicicleta própria. Não é fácil ter uma perna artificial e pedalar, mas eu lá me arranjava. Só mais tarde consegui comprar um  “dois cavalos” e “Viva o velho”! 
A GESTÃO
Conheci vários tipos de gestão na Escola: a democracia musculada, umas vezes de Direita outras vezes de Esquerda, o fascínio pelo cimento para deixar obra feita e a gestão participada e companheira. Todas elas deixaram marcas na Escola, nem sempre para o bem e para o melhor.
A MINHA POSTURA
Da Escola saí há cinco anos, tal como entrei trinta e seis anos antes: de cabeça erguida. Atingi o topo da carreira, na qual nunca fui um actor passivo, tendo pelo contrário sido sempre interveniente e procurando dar resposta aos desafios que me eram colocados a cada instante, muitas vezes para além daquilo que seria humanamente expectável. É certo que saí mais velho, mas também mais sábio, pela valorização profissional aqui adquirida, pela partilha de saberes com os restantes membros da comunidade escolar, pelas pontes inter-disciplinares concretizadas com colegas doutras áreas, tais como a Filosofia, a História, as Artes, o Português e a Biologia.
Saí feliz, pelo contributo pessoal e desinteressado à formação pessoal de jovens, que vi crescer nos múltiplos aspectos do seu “eu” e que são hoje, homens e mulheres de corpo inteiro, que pela sua motivação e capacidade de realização, alcançaram êxito nas actividades profissionais em que se empenharam e singraram.
O ESTATUTO DE PROFESSOR
Quando entrei na Escola em 1972, o Professor era uma figura prestigiada, tal como o Padre ou o Médico. Destes todos, só resiste actualmente a figura do Padre. A figura do Professor vale menos que um chinelo velho, graças ao tratamento de polé, a que tem sido submetido pelos sucessivos governos dos partidos do arco da governação.
O ESTATUTO DE APOSENTADO
Durante 36 anos descontei para a Caixa Geral de Aposentações, cumprindo as regras em vigor, a fim de quando saísse do activo, ter direito a retribuição. Foi dinheiro que me saiu do corpo, que é património meu e que descontei durante 36 anos seguidos, para vir a receber depois. Pelo menos era aquilo que era tido como certo. Todavia, sucessivos governos dos partidos do arco da governação, administraram mal os dinheiros públicos, umas vezes duma forma irresponsável caracterizada pelo despesismo e doutras vezes, até mesmo duma forma criminosa. Por isso, nós os aposentados, estamos a ser vítimas de cortes nas pensões. Vem aí o segundo corte. Nós não queremos dar para este peditório. Queremos que sejam responsabilizados e julgados os partidos do arco da governação, que são responsáveis pelo estado das finanças públicas.
Talvez seja necessário um novo 25 de Abril. Sim, isso mesmo! 25 de Abril de Novo, mas agora com toda a força do Povo!

6 comentários:

  1. Li com muita atenção tudo o que o amigo Hernâni relatou sobre a sua vida na carreira de estudante e de professor. É verdade que os tempos eram outros, as liberdades eram quartadas mas uma coisa acontecia no tempo da outra senhora! Quem estudava e fazia pela vida fosse qual fosse a sua profissão, prosseguia na carreira sem atropelos, sem receio que alguém lhe retirasse o lugar que era seu por mérito próprio. Depois do 25 de abril, muitas coisas aconteceram que não aconteciam no tempo da outa senhora: promoções por escolha, possibilidades de se ver ultrapassado na carreira, quer por motivo de escova, quer por conhecimentos em resultados académicos que muitas vezes não correspondiam à verdade! Enfim, hoje decorridos tantos anos já, até fica mal a quem ainda se sente magoado por tudo que aconteceu com a dita democracia que de democrata só tem o nome. Vi que em 36 anos de carreira, 34 foram passados na sua terra natal... pois o rapaz durante igual período, só terminada a guerra, conseguiu ficar em Estremoz e mesmo assim ,depois de 6 anos em guerra, outros tantos em Santa Margarida, ainda fui deslocado por dois períodos de 20 meses cada um, para outras unidades, ocupar lugares que outros se furtavam com ajuda de terceiros. Sei bem que são profissões bem distintas: a de professor com a de militar. Cada um de nós puxa a brasa à sua sardinha. mas terá de reconhecer que partir para a guerra deixando duas crianças, uma de 5 anos e outra com 3 a quem não pode dar o apoio que qualquer pai gostaria de dar aos filhos, pesa e mói a moleirinha mesmo depois de já decorridos muitos anos como anteriormente referido. Depois de seis diuturnidades, criaram os escalões que serviram para nos distanciar nos vencimentos em relação aos professores que continuaram com as diuturnidades que tinham. Pois foi mais uma tropelia que fizeram a alguns militares que estavam na minha situação, cancelaram os escalões e quando os desbloquearam em vez de nos darem o vencimento correspondente ao escalão que ocupavam nesse momento, baixaram-me para o 2º escalão com a maldade de que ficava com o mesmo índice. Foi esperteza saloia daqueles que hoje continuam. a pensar que nós não temos cabeça para pensar. Foi um desabafo, para acalmar a revolta que reina na nossa mente e que só deixará de reinar quando os olhos se fecharem para sempre.

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  2. Hernâni, acho que fez uma excelente síntese, bem ao seu estilo. Gostei de ler.

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  3. Concordo perfeitamente, precisamos de um novo 25 de abril, mas enquanto não "estalar" (o que duvido que venha a acontecer) um novo, façamos força para que não nos roubem o que já temos. Sabe, Dr. Hernâni, as pessoas só reagem quando batem no fundo, mas mesmo no fundo, e o nosso povo é de "muito brandos costumes". Noutros tempos, em que as pessoas se revoltavam quando não tinham comida, exigiam direitos e dignidade, nos dias de hoje, abrem mão dos direitos, porque a dignidade também não a têm. E era bem necessário que esse princípio fosse um pilar instalado na nossa mentalidade. Se analisarmos a história logo após a Revolução Industrial, verificamos que foi um período de intensas lutas do proletariado, os trabalhadores exigiram viver com dignidade e que a riqueza fosse distribuída equitativamente e todos os trabalhadores se uniram no mesmo sentido, e foram grandes as vitórias alcançadas. Nos dias de hoje o que verificamos? A inércia total. Os trabalhadores não têm coragem para tomar atitudes. Também é verdade que tem sempre que haver alguém que as impulsione, e esse líder tem que ser de confiança, tem que dar indicação que está ali para o que der e vier, mas sempre do lado dos trabalhadores, não pode estar dos dois lados. Isto é, tem que saber como e quando atuar, não pode dizer sempre não, tem que ter a noção da mudança, tem que ser uma força inspiradora, mas realista. E a realidade de autrora é bem diferente da de hoje. Todos nós precisamos que nos indiquem o caminho a seguir, mas é fundamental que o façam com seriedade e não em "nome" de uma ideologia desatualizada.
    Gostei de saber o seu percurso académico, o meu é bem diferente do seu, mas orgulho-me muito de ser quem sou. Qualquer dia dar-lhe-ei a conhecer o meu "25 de abril".
    Até sempre e respeitosos cumprimentos

    Linda

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    1. Linda:
      É imperioso e urgente vencer a inércia.
      Os meus cumprimentos.

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