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domingo, 30 de dezembro de 2012

Vem aí o Ano Novo (2ª edição)


A magistral ilustração de Stuart de Carvalhais (1887-1961), com a qual ilustro a presente crónica, tem por título “Cumprimentos do Ano” e foi publicada na capa da revista “Ilustração Portuguesa”, nº 410, de 29 de Dezembro de 1913. Ela sugere a despedida do “Ano Velho”, aí representado por um ancião de ar respeitável, sentado, vencido decerto pelo desgaste e pelas mazelas da vida. Junto a ele, duas crianças, das quais a mais velhinha lhe entrega um ramo de flores, decerto como reconhecimento do legado positivo que o Ano Velho lhes doou.
Não tenho motivo algum que me leve a crer que esta alegoria de Stuart não fosse apropriada em 1913. Todavia, considero que, actualmente, ela carece de sentido. Por isso me despeço de 2012 com mágoa, azedume e revolta, porque os portugueses nunca perderam tanta qualidade de vida e direitos democráticos como nos anos de 2011 e 2012. Pelo menos até agora. E porquê? Por culpa dos políticos que temos, dos políticos que tivemos e dos políticos que não tivemos, ainda que uma maioria significativa de nós, os gostasse de ter tido.
Conhecedor da obra do poeta popular António Aleixo (1899-1949), identifico-me bastante com o seu pensamento, a começar pelo modo como o poeta se enquadra na Sociedade:

“Sou um dos membros malditos
dessa falsa sociedade que,
baseada nos mitos,
pode roubar à vontade.“

Concordo também com o juízo que faz do Poder:

“Acho uma moral ruim
trazer o vulgo enganado:
mandarem fazer assim
e eles fazerem assado.”

Na óptica do poeta, é um juízo que não é nada positivo:

“Há tantos burros mandando
em homens de inteligência,
que às vezes fico pensando,
se a burrice não será uma ciência...”

Por isso o poeta considera ter o direito de protestar:

“Não me dêem mais desgostos
porque sei raciocinar...
Só os burros estão dispostos
a sofrer sem protestar!”

E vai ao ponto de advertir o Poder:

“Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
q'rer um mundo novo a sério!”

Proclama igualmente que a situação pode (e digo eu, deve) mudar:

“Esta mascarada enorme
com que o mundo nos aldraba
dura enquanto o povo dorme,
quando ele acordar, acaba.”

Perder a vida será na sua opinião, o que menos importa:

“Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão? “

Nunca o pensamento de António Aleixo foi tão pertinente como hoje, por congregar duma forma excepcional uma análise da situação com alguma orientação para a acção. E acreditem que eu percebo da poda. Sou da geração do Maio de 68 em Portugal, doutros tempos de luta e porventura o primeiro divulgador de António Aleixo em Lisboa, em sessões de Canto Livre, em que participavam companheiros como o Zeca, o Adriano, o Fanhais ou o Fanha. Eu era um alentejano fininho com um metro e noventa de altura e olhos de carneiro mal morto. Quando ocupávamos a cantina de Ciências para afrontar o Poder, este cagava-se todo e mandava a polícia de choque contra nós. Nós não nos cagávamos, porque tínhamos tudo no sítio. A nossa força era a consciência política, a unidade, a disciplina e a resistência militante. Tínhamos na massa do sangue a poesia do Daniel Filipe (1925-1964) - Pátria Lugar de Exílio:

“(…) Tendes jornais.
usai-os
tendes exércitos
usai-os
tendes polícia
usai-a
tendes juízes
usai-os
usai-os contra nós
procurai esmagar-nos
cantando resistimos.”

Mais de quarenta anos depois, com toda a adrenalina dos meus 66 anos, repudio a política canalha que nos (des)governa e proclamo alto e bom som:


14 comentários:

  1. Há que resistir, para que a liberdade de conciência e de pensamento possam continuar a existir. Há que escrever, gritar e não calar para que palavras e actos como justiça, igualdade, direitos, solidariedade não sejam apagadas do futuro da humanidade.
    O seu post é nesse aspecto um grito de quem nos recordoa e trás um passado recente ao presente: A voz dos que não calam, não quebram e que constroem a utopia ( futuro).
    Um ab

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    1. Em suma: há que ter coluna vertebral!
      Obrigado pelo seu comentário.
      Um abraço amigo.

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  2. Hernâni

    Também sou dessa famosa, quanto lutadora geração.
    Também me lembro do povo ainda ter voz, dos homens e mulheres, jovens ou não, lutarem pelos seus direitos, lutarem para que os direitos democráticos fossem inculcados no nosso país.

    Também andava em Ciências nessa altura, na antiga Rua da Escola Politécnica, também andei escondida em armários e em corredores que nem eu sabia que existiam, entre paredes, no departamento de Química, também me lembro da Faculdade fechada com correntes e cadeado, faixas negras nos portões...também me lembro da polícia a cavalo invadir o nosso espaço.

    Outros tempos, outra fibra...Hoje...talvez cansaço, talvez desilusão, talvez desistência... Será??!!!

    Que Abril acorde em qualquer mês do ano que se avizinha, que com ele possamos esquecer toda a fraude em que temos estado mergulhados. Que as forças não nos faltem, a determinação também, mas sobretudo a coragem de ACREDITAR outra vez !

    Um abraço

    Margarida Perfeito (Anamar)

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    1. Margarida:

      Nós éramos feitos da essência do combate.
      Queríamos ter o mundo na mão.
      Quem o não quer,quando luta contra a tirania?

      Só a esperança nos diluía num tempo que já não era o nosso, porque era o tempo que havia de vir por aí.

      Nós éramos o amanhã.
      Hoje somos a memória desses tempos.
      Todavia,o que fomos, fomos no momento certo.
      Fomos generosos.
      A Juventude é isso.
      É o tempo em marcha.

      Beijinhos.

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  3. Texto oportuno e muito bem encadeada a sequência de ideias. A luta pelos ideais de Abril é pertinente. Onde está a justiça e a igualdade? Temos de voltar a acreditar que é possível um futuro melhor. Está nas nossas mãos.
    MMota

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    1. Miranda da Mota:

      Sem dúvida.
      Obrigado pelo seu comentário.
      Desejo-lhe e a toda a sua Família, um bom novo ano.
      Um abraço.

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  4. Meu Caro Hernâni

    Pois é!!! 38 anos desta Democracia foi no que deu! Mas quantos anos Portugal viveu em plena democracia, quantos? Antes do 25 tinhamos clientelas políticas num só partido, hoje temos clientelas políticas em muitos partidos!! Como acabar com elas? com os negócios que por aí se fazem pela calada?? Como? Em todos os regimes políticos de esquerdsa ou direita existem as "nomenklaturas" que se aproveitam do pacóvio povo, que vota naquela gente ou não vota! porque não pode votar ou se vota vota no que lhe mandam!!! Tem sido isto por essa Europa fora nos últimos 100 anos, à esquerda e à direita, um "regabofe" e nós o povo idealiosta a ver esta gente a servir-se do "tacho" !!
    Revolução perfeita como aquela que você sonhou ou idealizou existe no paraíso, no céu, no shangri-lá, não existe aqui neste país de bacocos! Como dizia o poeta " O sonho comanda a vida" e como é bom sonhar meu bom Amigo!!! Eu já não sonho com fantasias, só sonho com o tal pastor que dê uma cajadada nesta gente toda e que nos traga de novo a nossa tranquilidade o nosso dinheiro, o nosso bem estar. Hoje temos uma terrível probeza maqueada pelo regime. Li hoje no jornal que até já a Fundação do Século está a servir 450 refeirções por dia, tal a SOPA DOS POBRES do início do século passado. Ao que chegámos e para onde iremos?
    Tenha um bom ano
    Um abraço do amigo que o estima,o compreende, está de acordo consigo, mas já não tem ilusões.
    Pedro

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    1. Pedro:
      Obrigado pelo seu comentário.
      Desejo-lhe igualente e toda a sua Família, um bom novo ano.
      Um abraço.

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  5. Meu caro Hernâni,

    apesar de ter 38 anos e ter pertencido à chamada geração rasca (os nomes que os políticos nos dão), faço minhas as palavras do António Aleixo e do Daniel Filipe. Vivemos num momento em que nos não devemos render perante a TIRANIA!

    Muitos abraços
    Jorge Vicente

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    1. Jorge:

      A idade não é um posto. É um dos muitos lugares na trincheira.
      Abraços.

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  6. 1 de Janeiro de 2014, li com atenção "vem aí o Novo Ano", escrito em Dezembro de 2012, Como tens razão passado mais um ano e como nada se augura de bom para o ano que hoje começa .
    Mas ainda há coisas boas , este teu saber e dedicação por tudo o que escreves e que tanto prazer dá a ler.
    Feliz 2014.

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    1. Obrigado Anália pelo teu comentário.
      Bom Ano para ti.
      Um abraço.

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  7. Hernani, é assim como dizes. A nossa geração de sessenta já atravessou muitas dificuldades e soube resistir, dar a voltarias vezes à custa da própria vida. Fizemos a festa em Abril e passados 40 anos aqui estamos de novo sentindo a necessidade de tomar as rédeas e virar o destino. E lembramos os poetas de então para ficarmos alerta.
    Obrigada pelo texto. Um abraço.
    Guida

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    1. Obrigado Guida pelo comentário.
      Um abraço para ti também.

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