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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Barbeiro Sangrador

Barbeiro sangrador, peça da barrística popular estremocense da autoria do consagrado barrista José Moreira, (1926-1991). Inspirada na imaginária popular do séc. XVIII, é uma representação ingénua do acto de sangrar. Colecção do autor.

UMA SINGULAR PEÇA DA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
Qualquer das figuras usa casaca de mangas estreitas, justa ao tronco, que desce atrás, protegendo o rabo, mas à frente, abaixo da cintura, deixa o resto do corpo livre, talhe que visava facilitar os movimentos, eventualmente, o porte de espada. A casaca do barbeiro sangrador acha-se completamente abotoada e a sua gola cinge o pescoço. Já no caso do paciente, a casaca está aberta, revelando a utilização de um colete abotoado, usado por cima de uma camisa, enfeitada com uma gravata.
Na cabeça, o barbeiro sangrador usa um tricórnio, ao passo que o paciente usa uma atadura de pano, à laia de turbante. Qualquer deles é portador de farta cabeleira. No caso do barbeiro sangrador, esta pende livre sobre a cabeça, enquanto que no paciente, assume a forma de rolos de cabelo que lhe tapam as orelhas.
O barbeiro sangrador usa calções até ao joelho, assim como meias claras. Já o paciente usa calças, justas ao corpo. Qualquer deles calça sapatos pretos, lisos e tem as vestes enfeitadas por bordados, como era corrente nas classes superiores. Este facto, que poderia ser natural no paciente, correspondia decerto a uma utilização falaciosa por parte do barbeiro sangrador, que por vezes utilizava o traje característico da classe social mais elevada, como forma de assumir ardilosamente, o estatuto de cirurgião, que de facto não era.
Os tecidos bordados usados na época pelas classes mais elevadas eram sedas, brocados e veludos, enquanto que as classes mais baixas, usavam lã e algodão, que eram mais baratos.
O barbeiro sangrador com ar determinado, empunha um instrumento de corte, que mais parece um instrumento de tortura, com o qual parece perfurar as goelas do paciente. Este, com ar aterrorizado, já verteu sangue que macula a toalha que o barbeiro sangrador detém por sobre os braços.
O conjunto tem 21 cm de altura e a base mede 16,5 x 9 cm.

O OFÍCIO DE BARBEIRO SANGRADOR 
Até finais do século XVIII, os médicos portugueses, guiados pelos desígnios da medicina antiga, emitiam diagnósticos e receitavam mezinhas, convictos que cada pessoa era fruto da combinação de porções variáveis de fogo, terra, água e ar (6). Defendiam também que a combinação destes quatro elementos no organismo, dava origem a quatro humores diferentes: o sangue (produzido pelo fígado), a bílis amarela (produzida pelo fígado), a fleuma (produzida pelo cérebro) e a atrabílis ou bílis negra (produzida pelo baço). Tal como as suas qualidades originais (o quente, o frio, o seco e o húmido), esses fluidos estavam submetidos a forças internas ou externas capazes de alterá-los (os pneumas). A origem das doenças era consequência do acumular desses líquidos orgânicos numa dada região do corpo. Todavia, defendiam, que o organismo era portador de uma força restabelecedora que lhe era intrínseca, pelo que o próprio corpo procurava descartar-se naturalmente dos efeitos nocivos de qualquer desordem humoral, recorrendo às secreções. Deste modo, a fleuma (fria, húmida e transparente), era expulsa pelo nariz, nos resfriados; a bílis (amarela, quente e seca), era excretada pelo vómito, nas perturbações digestivas; a atrabílis (escura, fria e seca) era expulsa com as fezes, nas afecções intestinais, enquanto que o sangue (vermelho, quente e húmido), se libertava das feridas e acompanhava a expectoração das doenças pulmonares. Por outras palavras, a saúde era o resultado de uma combinação humoral harmoniosa e a doença era consequência de uma ruptura nesta estabilidade natural. Daí que o tratamento de qualquer doença, visasse neutralizar a acção dos humores putrefactos. Para tal, eram prescritos regimes alimentares e medicamentos com qualidades antagónicas às substâncias nocivas que dominavam o organismo, assim como a sangria, que permitia escoar os humores perniciosos que circulavam na área afectada. Práticas como a sangria e a aplicação de sanguessugas, era correntes nessa época. Eram tarefa executadas por barbeiros, cumulativamente com o corte de cabelo, a feitura de barbas e a extracção de dentes, dada a sua grande habilidade manual.
Em Lisboa, a partir de 1572, por regulamento outorgado pelo Senado Municipal (3), o desempenho das funções de “barbeiro sangrador” oficial, actuando por conta própria, exigia experiência comprovada de dois anos de actividade, o que permitia vir a receber a carta de examinação do cirurgião-mor. Alguns barbeiros podiam até realizar cirurgias, eram os “cirurgiões barbeiros”. A aprendizagem do ofício processava-se por conhecimento oral e empírico, adquirido nas tendas de mestres barbeiros. O ofício estava subordinado às regras da Confraria de São Jorge e aos regulamentos da Câmara Municipal de Lisboa.
Manoel Leitam (2), cirurgião do Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, era um defensor da hierarquia entre os saberes de médicos, cirurgiões e barbeiros. Aos primeiros competia a prescrição e aos últimos, a execução. Os barbeiros sangradores nunca deveriam sangrar sem ordem dos médicos, pois corriam o risco de provocar danos irreparáveis.
Manoel Leitam advogava a sangria derivativa, realizada através de corte no local mais próximo da inflamação, para evitar que o humor doentio se espalhasse pelo corpo, caso a incisão fosse efectuada longe da região afectada, como faziam os partidários da sangria volumosa.
As funções de uma sangria eram múltiplas:
- Evacuação: expulsão dos humores nocivos que agiam sobre determinado ponto do corpo;
- Diversão: enganar o fluxo sanguíneo e desviá-lo para o lado oposto, banindo derrames na parte lesada;
- Atracção: levar o humor a uma parte específica, provocando a menstruação, por exemplo;
- Alteração: modificação da qualidade do humor maligno preponderante;
- Preservação: conservação dos humores sãos, acautelando uma moléstia;
- Aliviação: minorar dores ou abaixar a temperatura do corpo, no caso de febres;
O desempenho do mester de barbeiro sangrador exigia determinado perfil: ser jovem para não lhe tremerem as mãos e ter boa vista. Ter experiência para saber distinguir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias existiam no corpo humano, o seu nome, distribuição e quais eram sangráveis. Devia, de resto, estar bem provido de lancetas.
Para Manoel Leitam, a sangria exigia o conhecimento do confuso mapa do sistema venoso. Segundo ele, era possível sangrar 42 veias. Dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés. Para combater catarros e doenças da cabeça, sangrava-se atrás das orelhas. Na testa para curar oftalmias. No canto dos olhos para curar enfermidades na face, vermelhidão na vista ou cataratas. Debaixo da língua para livrar o paciente de dores de garganta. Sangrava-se também, dentro e fora do nariz e nos lábios, bem como nos braços, mãos, pernas e pés. Apenas as axilas eram poupadas. A sangria era usada como anestésico, anti-inflamatório, anti-febril e abortivo. Através dela se combatia também, cefaleias, tumores e hemorragias.
Manuel Leitam advogava a sangria derivativa, realizada através de corte no local mais próximo da inflamação, para evitar que o humor doentio se espalhasse pelo corpo, caso a incisão fosse efectuada longe da região afectada, como faziam os partidários da sangria volumosa.
A sangria era executada com o paciente deitado. Os instrumentos utilizados no corte variavam de acordo com o local a sangrar. Para uma remoção profunda eram usadas a lanceta e as sanguessugas. Já para humores superficiais, utilizava-se um recipiente de vidro, conhecido por ventosa e de tamanho variável. Recorria-se ainda a uma bacia para recolher o sangue e a pós restritivos para estancar este após o corte.
Para ser sangrado, o paciente era despojado de qualquer tipo de jóias, por se considerar que elas imobilizavam o sangue.
Antes da sangria, os pacientes eram marcados com pontos vermelhos nos locais a ser sangrados. Seguidamente, acima do local da sangria, era atada uma ligadura para que a veia inchasse e o sangrador tivesse melhor tacto e visão da mesma. A veia era depois massajada com os dedos e só então o barbeiro fazia um golpe rápido, não muito profundo, para ser indolor e não atingir nenhum nervo ou tendão, o que afectaria os movimentos do paciente. Também não poderia ser atingida nenhuma artéria, já que o fluxo sanguíneo poderia ser impossível de controlar, o que originaria a morte do paciente.
Uma vez retirada a quantidade de sangue aconselhada, o golpe era estancado com uma compressa de pano e esta envolvida com uma ligadura para a suster.
Quando o paciente não suportava mais cortes, eram-lhe aplicadas sanguessugas, que previamente tinham permanecido em água limpa durante um dia, para que expulsassem todas as excreções e melhor sugassem o sangue. As sanguessugas eram, de resto, indicadas para sangrar o nariz, os lábios, as gengivas e as veias do ânus. Para estimular o apetite natural das sanguessugas, massajava-se a pele do paciente até esta ficar vermelha ou aplicava-se no local a ser sugado, um pouco de sangue de galinha ou de outro animal.
As ventosas eram utilizadas na sangria por vácuo, para o que se aquecia a parte bojuda da ventosa com estopa a arder, assentando-se depois sobre a pele, o orifício da parte oposta. O uso de ventosas tinha uma vasta gama de indicações. Aplicadas sobre o ventre curavam colites, sobre as costas tratavam dores ciáticas e incorrecções da coluna vertebral. Dispostas nas coxas, debaixo ou sobre os seios da mulher, provocavam a menstruação. Permitiam ainda curar doenças pulmonares em estado avançado, mau hálito, feridas abertas, mordeduras de animais venenosos, etc.
Depois de sangrado, o paciente ficava em repouso e não podia dormir durante a primeira hora, nem deitar-se sobre a zona do corte, devendo abster-se do consumo de alimentos indigestos, devendo seguir a dieta prescrita pelo médico.
Em 1628, o inglês William Harvey (1587-1657), comprovou a circulação sanguínea, lançando as bases para contestar o fundamento da sangria. Todavia, afamados médicos e cirurgiões portugueses, persistiam em encarar a sangria como uma rotina de tratamento, não só eficaz, como imprescindível, que era executada por barbeiros sangradores, nas suas tendas, nos domicílios dos pacientes, assim como nas prisões e hospitais.
A resistência em adoptar teorias resultantes de estudos experimentais persistiu para além da Reforma Pombalina da Universidade, em 1772. A prática da sangria levaria ainda cerca de cem anos até deixar de ser prescrita por médicos e cirurgiões. É de salientar que o ofício de sangrador só foi extinto por lei de 13 de Julho de 1870. Até lá, cumpria-se o adágio: “Sangrai-o, purgai-o, e se morrer, enterrai-o.” (5) Também o cancioneiro popular, ainda no início do séc. XX, proclamava que:

“Venho da Serra da Estrella
De apprender a surgião.
Para sangrar as meninas
Na veia do coração.” [4]

BIBLIOGRAFIA
(1) - GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vols. 4, 6, 17, 26. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
(2) – LEITAM, Manuel. Pratica de Barbeiros em Quatro Tratados em que se trata de com se ha de sangrar, & as cousas necessarias para a sangria; & juntamente se trata em que parte do corpo humano se haõ de lançar as ventosas, assi secas, como sarjadas; & em que parte compitaõ sanguixugas, & o modo de as applicarem; com outras muitas curiosidades pertencentes para o tal officio, em Lisboa, à custa de Francisco Villela, 1667.
(3) - NUNES LIAM, Duarte. Livro dos Regimentos dos Officiaes Mecanicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (1572), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926.
[4] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
(5) – ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(6) – SANTOS, Georgina Silva. A Arte de Sangrar na Lisboa do Antigo Regime, in Tempo, nº 19. Rio de Janeiro, Julho de 2005.



"Botique de Barbier", gravura de Jean Baptiste Debret (1768-1848), francês que viveu no Brasil de 1816 a 1831 e que representa a fachada de uma barbearia, encimada por placa com os dizeres: “Barbeiro, Cabeleireiro, Sangrador, Dentista e Deitão Bixas”.

Bacia de barbeiro sangrador, em latão (38 cm de diâmetro x 8 cm de profundidade). Adquirida em Estremoz, onde ainda em meados do século passado, eram usadas para sinalizar as barbearias. Marca de suspensão na extremidade oposta à zona de encaixe no pescoço. Colecção do autor.

Ventosa em vidro, fabricada por sopragem. Altura: 7 cm; Embocadura: 4cm. Colecção do autor.

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