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quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os servos da gleba e a jogatina



Fotografia de Mário da Gama Freixo (1894-1980). Algures no Alentejo dos anos 20-30 do século passado, um grupo de camponeses que comunga o uso do chapéu, já que o cancioneiro reza que: "… / O Alentejo não tem sombra, / Senão a que vem do céu."
Estão concentrados e até mesmo vidrados pelo curso da jogatina na banca de um certo jogo de azar, que era corrente nas feiras de antanho.
Uma banca de jogo pertencente a alguém, a quem convencionalmente chamam o banqueiro. Nada de mais simples. Uma mesa com rebordo e a disposição de plano inclinado. No topo superior da mesa, o rebordo é mais volumoso e aí encaixa uma espécie de funil em lata, que comunica com um buraco existente no rebordo superior da mesa.
O jogador começa por pagar ao banqueiro o seu direito ao ingresso no jogo, através da compra de cinco bolas de madeira. Depois, à vez, com a mestria e engenho possíveis, aquele que tem a pretensão de “sangrar” o banqueiro, com a sua mão mais capaz, em geral a mão dextra, lança verticalmente uma bola do topo, em direcção ao fundo do funil. Para tal e com o auxílio da ponta dos dedos, imprime-lhe um efeito giratório, que lhe permite assegurar a queda ao longo do eixo central do funil, a que se segue uma progressão dinâmica ao longo do plano inclinado. Quando é bem sucedido, a bola acaba por entrar num buraco situado na intersecção do eixo central, com o bordo inferior da banca. Parece que é fácil, mas não é. A maioria dos jogadores não tem êxito. Daí o lucro do banqueiro, na tradição usual de os banqueiros terem êxito, com a falta de êxito dos outros.
Quanto aos escassos habilidosos e sortudos, conseguiam com retorno, multiplicar o dinheiro investido em cada bola, que virtuosamente atingia com êxito, o buraco situado junto ao bordo inferior da banca.
O dinheiro envolvido poderia até não ser muito, mas a teimosia dos que persistiam em ganhar, ajudava a engordar o lucro do banqueiro.
A atracção, o deslumbramento e o desvario pelo jogo, foram desde sempre apanágio, não só das classes sociais mais elevadas, como também dos servos da gleba, crentes de que um golpe de sorte, os conduziria a uma vida melhor. Nada de mais ilusório. É precisamente o contrário. Existe a convicção generalizada de que “Jogo de mão, jogo de vilão“ e se é certo que “Ninguém joga para perder”, não é menos certo que “Jogar e nunca perder, não pode ser”, bem como “Quando alguém perde, alguém sai lucrando”, que é o mesmo que dizer que “A sorte de uns, é o azar de outros”. Por isso o povo recomenda: “Quando perderes põe-te de lado”. O pior é que “Ninguém está contente com a sua sorte” e lá vão jogando e perdendo, quando a solução é só uma: “Quem não quer perder, não jogue”, pois “O que o jogo dá, o jogo leva” e mesmo quando se ganha “A sorte acaba um dia” e depois, se não arrepiares caminho, “Jogarás, pedirás, furtarás”, o que dá aos outros a convicção de que “Na casa de quem joga, alegria pouco mora”.
Jogos como o aqui descrito eram simultaneamente jogos de perícia e jogos de azar, por vezes bastante animados, já que com a aproximação da Guarda, cada um fugia para seu lado.
As nossas Ordenações e mais tarde o Código Penal puniram o jogo, que apenas pode ser praticado duma forma regulamentada em casinos de zonas concessionadas de jogo.
Em Estremoz, nos anos sessenta do século passado ainda existiam dois banqueiros com banca como a da imagem. Eram eles o Pengalim e o Velho Painho. O seu campo de acção centrava-se na “Feira de Santiago”, na “Feira de Santo André” e na “Feira de Maio”. Naturalmente que também faziam biscates nas festas das freguesias. Eram formas de vida, já que o português é mestre do desenrascanço…

Publicado inicialmente a 23 de Junho de 2011

10 comentários:

  1. Olá mas que belo trabalho...Professor...
    Obrigada pelo seu talento na arte de bem escrever...
    Partilhou connosco formas de viver o jogo e a mestria dos portugueses nessa área...
    Um abraço, da Ana Carita.

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    1. Ana:
      Estremoz não é. Todavia não sei onde é. Tenho outras fotografias dum lote que comprei do fotógrafo referido, todas do mesmo local,as quais não conseguiu ainda identificar.

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  3. Penso ter ainda memória dessas pequenas bancas de jogo. Eu era muito pequenina e ainda havia uma praça de touros em Algés... havia umas "feiras" que - a memória traz-mas de forma esporádica - se formavam no baldio, frente à praça de touros e é aí que me recordo daquilo que vai exactamente ao encontro desta descrição... e eu nem sabia que sabia isto! :)
    Abraço!

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  4. Adorei saber estas partes da nossa história e mais ainda por ser filha de Estremoz.
    Espero ler muitas mais na sua elegante e emocionate maneira de descrevê-las.

    MJM

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  5. Belíssima fotografia e um texto extraordinário. A fotografia levou -me ao ano de 1976 em que estive largos meses em Cuba (do Alentejo) a fazer um estágio no âmbito da minha formação académica em que fiquei espantadíssima com o rigor da separação dos espaços entre homens e mulheres, já vem dentro dos anos 1990 (aqui em viagem de lazer) viria a constatar o mesmo em Barrancos e no Torrão.
    Parabéns pelo trabalho que está a fazer, dando a conhecer a cultura desse povo extraordinário.

    Conceição

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    1. Esta estória é uma estória singular, ainda que na sua génese tenha sido objecto de tratamento análogo a outras, como é o caso de "A menina quer bailar?".
      A estória começa com a recolha de uma imagem aparentemente perdida no espaço e no tempo, como se estivesse à espera de ser resgatada. Daí nasce uma paixão, o princípio de um amor, misto de voyeurismo e de sinestesia epidérmica que me leva a fazer o que tem de ser feito. Uma viagem às minhas raízes ancestrais, uma incursão às linhas mestras da minha identidade cultural, um mergulho profundo na oralidade da língua de todos nós. São trajectos no fim dos quais fico mais forte, qual Fénix renascida das cinzas. Daí nasce a síntese dialéctica entre a imagem que dedilhou as cordas do violino que tenho no lugar da alma e tudo o resto: a arqueologia cultural que me fascina e o sonho que me comanda a vida.

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  6. Bem escrito e bem verdade de que sou testemunha, e, ainda nos anos 40!...

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    1. Obrigado José pelo seu comentário, que é também um testemunho.
      Um abraço.

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