ESTREMOZ NOS ANOS CINQUENTA
Nasci em 1946, em Estremoz, no Largo do Espírito Santo, que é um largo que tem como referência a fonte do mesmo nome, a Torre das Couraças, o Convento dos Agostinhos que foi Fábrica de Cortiça dos Reynolds e dos Robinson, assim como o poeta Sebastião da Gama, que ali morou no segundo andar do número dois.
O alegrete, o espaço em torno da fonte e o adro, foram os terreiros primordiais da minha infância, os palcos primitivos onde desempenhei os primeiros papéis da minha vida, enquanto brincava, o que era, sem dúvida, a minha principal e mais importante tarefa de todos os dias.
Uma das minhas brincadeiras iniciais foi o cavalinho de pau, o que é natural, pois nos anos cinquenta do século passado, eram frequentes, em Estremoz, o carro de tracção animal, os trens e as caleches, bem como o próprio acto de montar a cavalo.
Os carros de tracção animal, puxados por uma ou duas bestas, eram o veículo usado diariamente no transporte de carga: azeitona para os lagares, trigo para a moagem, mercadorias da estação da CP ou da Camionagem para o comércio local, assim como pelos hortelões que das hortas e quintas dos arredores vinham vender vegetais e fruta ao mercado municipal.
Nos trens se faziam transportar por um cocheiro fardado, as famílias dos grandes proprietários rurais.
Pela cidade circulavam também cavalos, por vezes conduzidos a pé pelos seus tratadores, a fim de beberem água no chafariz do Lago do Gadanha. É que os grandes proprietários rurais tinham casa no campo, que acumulavam com casa na cidade. Esta, estava provida de cavalariça onde alojavam os animais, assim como os seus aprestos, a palha destinada à alimentação e para enxerga, assim como os trens e as caleches. Era também corrente na época, ver alguém dessas casas, passear a cavalo pelas ruas da cidade ou trotear e voltear no Rossio Marquês de Pombal, o qual funcionava assim como picadeiro público.
O REGIMENTO DE CAVALARIA 3
Desde 1875 que está instalado em Estremoz, o Regimento de Cavalaria 3. Do extenso e valioso historial do RC3, se destaca a heróica e brilhante vitória alcançada pelos seus cavaleiros, sobre o exército espanhol na Batalha de Fuente de Cantos, travada a 15 de Setembro de 1810, no decurso da Guerra Peninsular.
Os cavaleiros do RC3 quando regressavam ao Quartel após manobras realizadas no campo, iam com as suas montadas até ao Lago do Gadanha para se lavarem e refrescarem, descendo para lá por uma rampa que existiu do lado do Jardim, até cerca dos anos 50 do século passado, assim como outra, do lado oposto àquele. Mais tarde, essas rampas, que estavam vedadas com correntes, foram sacrificadas, porventura em nome do progresso. Nos anos sessenta e com o Lago já sem rampas, eram os pelotões regressados do treino de campo para a Guerra Colonial, que ali entravam cobertos de lama, para uma primeira lavagem de corpo, que não da alma. Nessa época era vulgar, ver oficiais a passear a cavalo pelas ruas da cidade. De resto, quando havia paradas militares no Rossio, a presença da Cavalaria era uma constante.
A GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Onde hoje é a Igreja dos Congregados, situava-se a incompleta Igreja do Convento da Congregação do Oratório de S. Filipe Nery, que como é sabido, ao contrário da Companhia de Jesus, era aberta “às luzes” trazidas pela revolução científica de Copérnico e Galileu. Esta, duma assentada, revogou o não só bíblico como aristotélico modelo geocêntrico do Universo, levando-nos a ver o Universo com outros olhos, que não os da divina revelação.
Ali estava instalado o Quartel da Guarda Nacional Republicana e nas coxias da hoje Igreja, estavam instaladas as cavalariças. Dali saiam os guardas, aos pares, para patrulhas a cavalo nas freguesias rurais.
AS TOURADAS
O meu avô Manuel Alturas, ferroviário aposentado, republicano e amante da Festa Brava, levava-me aos touros e comprava rebuçados que comíamos durante a corrida. Eu ficava encantado com o ritual das cortesias e o evoluir elegante do ginete de Mestre João Branco Núncio, a quem os mais velhos chamavam “O Califa de Alcácer”.
Quando ia às touradas usava calças de cós alto e jaqueta que o meu pai, alfaiate de lavradores e de toureiros, confeccionara para mim. Um pequeno chapéu à Mazantina completava os meus adereços. Desse tempo, guardo como relíquia, a minúscula jaqueta que levava às touradas.
O CIRCO
Em certas ocasiões, tais como a Feira de Maio ou a Feira de Santiago, vinham a Estremoz circos que montavam tendas no Rossio Marquês de Pombal. Os melhores circos traziam cavalos amestrados e, por vezes, equilibristas que em cima deles, desafiavam o impossível, fazendo coisas incríveis, para deleite de vista.
A VASSOURA
Do exposto se conclui que o cavalo era uma presença certa na minha vida diária. Natural era, pois, que eu, habilitado com as asas da minha imaginação, sonhasse em ser cavaleiro. E fazia-o, brincando com o meu cavalinho de pau, o qual durante muito tempo foi a vassoura de cabo alto, lá de casa.
Nas minhas cavalgadas, fazia como o “Califa de Alcácer”. Por vezes mudava de montada e passava a cavalgar a cana de caiar.
Certo dia, a minha mãe, farta das minhas traquinadas com os utensílios domésticos, acabou por me comprar um cavalinho de pau, mesmo a sério, com cabeça de cavalo, crinas, arreios e tudo. E logo que o estreei, como ele não dizia nada, com todo o meu contentamento fui eu próprio que relinchei por ele, o que emprestou mais realismo à minha representação. E sabem que mais? Quando montava o meu corcel, usava sempre um barrete feito de papel de jornal, que o meu avô me ensinara a fazer numa tourada, quando me esqueci de levar o meu chapéu à Mazantina.
O meu barrete de papel era um acessório importante. Quando fazia de militar a cavalo, usava o barrete posto de trás para diante e uma espada de madeira presa no cinto das calças. Já quando era cavaleiro tauromáquico, punha o barrete de papel atravessado na cabeça e usava um pau a fazer de farpa. Mas nada de usar jaqueta ou chapéu à Mazantina, porque isso era só nos dias de festa.
As minhas representações equestres eram diversificadas, iam do trote ao galope, passando pelo volteio. Nelas, na minha imaginação, eu era sempre um garboso cavaleiro montado num puro-sangue de Alter, que cavalgava horas a fio no Largo do Espírito Santo. Acontecia às vezes que uma tourada ficava a meio do seu curso ou, o que era bem pior, não conseguia concretizar uma carga de cavalaria. Sabem porquê? É que a minha mãe aparecia à janela a gritar:
- “Hernâni anda para a mesa, que são horas de comer!”
E eu não resistia à chamada, porque com tanta cavalgada, já tinha a barriga a dar horas.
Publicado inicialmente em 5 de Abril de 2011
Texto que integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"
JUNHO – iluminura do “Breviário de Eleanor de Portugal” (segundo
o uso de Roma), manuscrito e iluminado em Bruges, c. 1500, pelo
Mestre dos antigos Livros de Orações de Maximiliano I e de Jaime IV
da Escócia, que alguns estudiosos identificam como sendo Gerard
Horenbout. MS M.52 fol. 4V, metade superior. Morgan Libray,
Nova Iorque. Na faixa superior, várias figuras montam cavalinho
de pau e parecem travar uma batalha simulada.
JUNHO - Iluminura (9,8x13,3 cm) do “Livro de Horas de D. Fernando”
[Século XVI (1530-1534)], manuscrito com iluminuras da oficina
Simon Bening. Número de Inventário: 01163.10 TC. Número de
Inventário do Objecto: 13/6v. Ilum. Museu Nacional de Arte Antiga.
Em baixo, à direita, o cavalinho de pau.
JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira
(161 x 118 cm ). Museu de História de Arte, Viena.
CAVALINHO DE PAU - Pormenor do quadro JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter
Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo sobre madeira (161x118 cm ).
Museu de História de Arte, Viena.
CRIANÇAS A BRINCAR NUMA SALA - Ilustração do “Splendor Solis”
(1582), códice alemão ilustrado, que é um tratado alquímico
atribuído ao lendário Salomon Trismosin, considerado o mestre
de Paracelso. Harley 3469, f .31v, British Library, Londres.
BRINCADEIRAS INFANTIS (1774) - Gravura de Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726–1801), extraída de
“J. B. Basedows Elementarwerk mit den Kupfertafeln Chodowieckis u.a. Kritische Bearbeitung in drei Bänden, herausgegeben von Theodor Fritzsch. Dritter Band. Ernst Wiegand, Verlagsbuchhandlung
Leipzig 1909". Representado o cavalinho de pau, o cavalo de balanço, o carrinho de bébé e o baloiço.
RETRATO DE HENRIETTE VON HEINTZE COM OS SEUS FILHOS (1803) - Óleo
sobre tela de Friedrich Carl Gröger (1766-1838), Museum Behnhaus, Lübeck.
“RIDE A COCK HORSE” - Ilustração da escritora e ilustradora
infantil Kate Greenaway (1846-1901) publicada no livro
“Mother Goose” (1881).
RIDE A COCK HORSE TO BANBURY CROSS (1902) - Ilustração de
William Wallace Denslow (1856 - 1915), ilustrador e caricaturista,
do livro “Denslow's Mother Goose”.
Brilhante, como sempre, esta sua crónica...
ResponderEliminarFez-me recordar um velho cavalinho de papelão colado, de um primo que morreu jovem e mais tarde, um outro cavalinho de madeira, mais janota e modernaço igual aos que ainda hoje se vendem.
Mas, para mim, não há mesmo nada que chegue a um cavalinho resfolegante e veloz, de carne e osso, que nos pode olhar olhos nos olhos, pois então, depois de um largo passeio pelas planícies...
Bom trabalho - como sempre
ResponderEliminarabraço
Hernâni, meu amigo!...Lembras muito bem mais alguns aspectos da nossa Estremoz dos anos 40 do século passado. De tudo isso me recordo tão bem como tu. Também, eu tive um desses cavalinhos com cabeça de cartão; e, também, a mim me aconteceu o mesmo que ao irmãozinho do Fernando António Pessoa, e a outros que pensaram cuidar do alimento e bebida de tão figurado corcel.Em balde estacionado à porta do mestre António, ferrador, coloquei-o a mantenças de água, dado que a cavalgada tinha sido árdua Telheiros acima.Vai-se o mesmo tão sequioso que se desfigura ao chamamento e dá-se a jazer de crinas e tudo, no fundo do balde. Contrariamente ao apetite que te deu após o picadeiro do " alegrete": deu-me a mim um desgosto tão profundo e um choro tão intenso, que se ficou de alarveamento a canja de galinha, intocada para o outro dia.
ResponderEliminarPS: ainda um dia vou querer ver a tua foto com o célebre chapéu à Mazantina...
Um abraço
Encantador estas viagens que nos oferta atravessando tempos em que tudo era tao simples e maravilhoso. :D
ResponderEliminarVenho seguindo as tuas crónicas com interesse crescente. Não raro, transportam-me para a minha infância, muito próxima, temporalmente, da tua. Não consegui deixar de recordar os meus "cavalinhos de pau" e as suas diversas vertentes que não raro terminavam nos "knigt" com armaduras feitas de cartão e espadas de pau. Obrigado por estas "cavalgadas" até ao passado. Um grande abraço.
ResponderEliminarProf.Hernâni:
ResponderEliminarA sua Crónica conta-nos de uma maneira muito pormenorizada como o jogo simbólico entra na vida das crianças e as faz viver cada momento de uma forma real e emocionante...
E como o ambiente social influencia toda a dinâmica desses jogos que afinal o marcaram...pois lembra-se deles com uma nitidez...que parece que aconteceram não no século passado,mas hoje...E depois toda a envolvência da altura...em que as brincadeiras eram muito criativas...Tão criativas e absorventes...que só o chamar da Mãe quebrava essa magia...
Adorei ler tudo o que escreveu,pois a sua leitura transporta-nos aos anos das nossas meninices...e depois o Prof. inter-relaciona os factos no tempo, com uma mestria inigualável...
Gostei muito...e só tenho a agradecer-lhe por este tempo em que avivei as minhas memórias também alentejanas...
Abraço da Ana Carita.
Magnífico, texto e fotos, abraço
ResponderEliminarMuito obrigado. Os meus cumprimentos.
ResponderEliminarMuito bom cavalgar assim até à infância onde os cavalos de pau eram reis! Obrigada pela bela crónica Hernâni e pelas memórias boas do passado na nossa cidade. Às ilustrações que juntas são igualmente magníficas!
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário. Cumprimentos.
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