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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Alberto de Souza e Estremoz

 
Fig. 1 - Carro alentejano. 

"Grande Artista!
Alberto de Souza realizou toda a sua obra
de olhos voltados para Portugal
– sem os desviar um momento da terra que lhe foi berço."


JÚLIO DANTAS
(in Prefácio do livro de Alberto de Souza
“50 Anos de Vida Artística”)

Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador, aí pelos dez anos de idade. E a Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias.
O registo cartófilo, tanto pode ter por base o cliché dum fotógrafo com sensibilidade ou pendor para as questões da identidade cultural regional, como as pinceladas magistrais de pintores que sentiram estética, plástica e cromaticamente, o pulsar do Povo Português, o Povo que lava no rio, que apascenta o gado na charneca ou na montanha, que cavalga na lezíria, que charrua a terra-mãe ou que da rede lançada ao mar, recolhe o seu e o nosso pão nosso de cada dia.
Creio que o pintor mais representado na cartofilia portuguesa seja Alberto de Souza (1880-1961), notável aguarelista e ilustrador, que calcorreou o país de lés a lés na primeira metade do século XX, funcionando como consciência plástica da Nação, pela oportunidade e rigor do registo etnográfico, efectuado através das suas exemplares aguarelas.
Alberto de Souza esteve em Estremoz no início do século XX, tinha então vinte e poucos anos e aqui registou aspectos do traje e usos e costumes locais, perpetuados em desenhos que “A EDITORA”, divulgou em postais ilustrados da sua 3ª série, a qual incluía motivos de Estremoz, Évora e Beja. Os motivos de Estremoz são: CARRO ALENTEJANO (Fig. 1), UM POÇO (Fig. 2), QUINTAL (Fig. 3) e LAREIRA (Fig. 4). Estes postais deram a volta ao mundo. O mais antigo que integra a minha colecção, tem aposto sobre selo de 25 reis de D. Carlos I (tipo Mouchon), o carimbo de LISBOA CENTRAL / 3ª SECÇÃO de 21-10-1904, local de onde foi expedido para Londres, onde chegou a 24-10-1904, conforme revela a marca de chegada à estação de PADDINGTON, na capital inglesa. Como curiosidade refiro que tenho outro circulado em 1906, expedido pelo escritor Ramalho Ortigão (1836-1915) - uma das figuras principais da Geração de 70 - de Lisboa para Estocolmo, na Suécia, dirigido ao então Ministro Plenipotenciário do Reino, António Feijó (1859-1917), diplomata e poeta consagrado. O desenho de um homem culto e consciência plástica da Nação (Alberto de Souza), a servir de abraço fraternal e a ligar dois amigos afastados (Ramalho Ortigão e António Feijó.
Mas, a relação de Alberto de Souza com Estremoz, não ficou por aqui. Alberto de Souza seria posteriormente o autor de uma aguarela (Fig. 5), propriedade da Câmara Municipal de Estremoz e que esteve na base da confecção de um cartaz para a afamada Feira-Exposição de Maio de 1926, em Estremoz. Nesta aguarela, na parte superior, a parte antiga do burgo, confinada às muralhas do Castelo e, dominando tudo, altaneira e vigilante sobre a planície, a Torre de Menagem, ex-líbris de Estremoz. Em primeiro plano, o pastor de ovelhas, arrimado ao seu cajado, com o tarro com as comedorias do dia, envergando o seu traje regional constituído pelo pelico, pelos safões, pelo lenço em redor do pescoço e pelo chapéu de aba farta, que é tema de quadra brejeira no cancioneiro regional:

“Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu.
Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu.”

Sobre o traje, diz-nos Luís Chaves, etnólogo que na época também por aqui andava: “O traje surge-nos como produto natural do meio, isto é, de quanto dentro e à volta do homem existe, e tudo o que influi no espírito e actua nele. Desde a escolha e adopção de tecidos, até à cor e forma, desde a ornamentação ao arranjo das partes componentes, tudo aí tem razão de ser como é, e tem de estar onde está.”.
Hoje, o pastor da região já não se veste assim e as encostas do monte onde se ergue o Castelo de Estremoz, são vinhas e não campos de semeadura de trigo. Daí a importância desta e de todas as outras aguarelas de Alberto de Souza no registo etnográfico. Sublinhe-se que a Etnografia (do grego έθνος, ethnos - nação, povo e γράφειν, graphein - escrever) é o método utilizado pela Antropologia na recolha de dados, através do contacto efectuado entre o antropólogo e o grupo humano, objecto do seu estudo. Sublinhe-se ainda que a Antropologia (do grego άνθρωπος, anthropos - homem e λόγος, logos - pensamento) é a ciência que estuda o Homem e a Humanidade, em geral. Por isso, Alberto de Souza foi um antropólogo e um antropólogo social porque se dedicou à observação das técnicas, usos, costumes, crenças, regras de conduta e de comportamento de grupos sociais. E que trabalho extraordinário ele produziu ao longo da sua vida! Uma ínfima parte desse trabalho é constituído por 39 aguarelas, propriedade da Fundação Portuguesa das Comunicações, retratando trajes populares portugueses e que serviram de base à edição pelos CTT, em 1941, de bilhetes-postais ditos oficiais.
Como filatelista e cartofilista, possuo estes postais na minha colecção. Esta circunstância, aliada ao facto de coleccionar bonecos de Estremoz, viria a dar os seus frutos. Vejamos como.
Fascinado pela magia emergente das suas mãos de barristas populares, frequento amiúde a oficina e a loja das Irmãs Flores, no Largo da República, em Estremoz. Gosto muito do trabalho destas senhoras, Maria Inácia e Perpétua, de seus nomes, discípulas de mestra Sabina Santos, que com ela aprenderam a nobre arte do barro e com ela aprenderam a respeitar o que de mais genuíno têm os bonecos de Estremoz, no que respeita a modelos e tipos característicos, formas, cores e tintas. Mas, também e simultaneamente, criaram novos modelos e apostaram em novos tamanhos, que têm vindo a enriquecer a vastíssima galeria de modelos de bonecos de Estremoz.
Pois bem, às Irmãs Flores, afamadas barristas da nossa terra, lancei oportunamente o desafio de criarem novos modelos de bonecos (Fig. 7), inspirados em aguarelas de Mestre Alberto de Souza (Fig. 6). Elas aceitaram o repto e o resultado traduziu-se na bela e magnífica Exposição “Bonecos das Irmãs Flores inspirados em Aguarelas de Alberto de Souza sobre Traje Popular Português”, que em Fevereiro-Março-Abril de 2007, esteve patente ao público na Sala de Exposições do Centro Cultural Dr. Marques Crespo, onde até agora, foi das exposições mais visitadas. Depois disso, a barrística popular estremocense ficou ainda mais rica.
Depois deste sucesso, pensei que a Memória de Alberto de Souza merecia ainda muito mais. Como agente cultural, a consciência da importância da sua Obra, levou-me a tomar a iniciativa de promover uma Exposição de Pintura em Sua Homenagem, o que acabaria por ser feito numa iniciativa conjunta da Associação Filatélica Alentejana, da Câmara e do Museu Municipal de Estremoz e, da Família de Alberto de Souza. Paralelamente a esta Exposição decorre o Salão Filatélico FILAMOZ 2008, comemorativo do 25º Aniversário da Associação Filatélica Alentejana, onde quatro expositores põem em evidência o trabalho desenvolvido pelo Artista na concepção de selos e postais dos Correios. São eles: António Cristóvão (Emissões Camilo Castelo Branco), João Soeiro (Emissões Independência de Portugal), Miranda da Mota (IV Centenário do Nascimento de Camões) e Hernâni Matos (Inteiros Postais reproduzindo Trajes Populares Portugueses baseados em Aguarelas de Alberto de Souza).
Para perpetuar no espaço e no tempo, esta homenagem a Alberto de Souza, a Associação Filatélica Alentejana encomendou aos Correios de Portugal, o fabrico de dois selos personalizados, novo tipo de selos, criados pela Portaria nº 1335/2007 de 10 de Outubro. Um dos selos reproduz o auto-retrato de Alberto de Souza em 1950 (Fig. 8) e o outro, a aguarela que serviu de base ao cartaz da Feira-Exposição de Maio de 1926, em Estremoz (Fig. 9).
No acto inaugural da Exposição funcionou no local um posto de correio, provido de carimbo comemorativo (Fig. 10), reproduzindo o auto-retrato de Alberto de Souza, carimbo este concedido para o evento pelo Serviço de Filatelia dos CTT, com o apoio da Federação Portuguesa de Filatelia, os quais também se associaram na Homenagem àquele que, através dos seus rigorosos e vigorosos traços e das suas pinceladas de Mestre, criou obras primas que, para nosso deleite ficaram perpetuadas nas fórmulas de franquia dos nossos Correios.

Publicado inicialmente a 23 de Setembro de 2010

Fig. 2 - Um poço.

Fig. 3 - Quintal. 

Fig. 4 - Lareira.

Fig. 5 – Aguarela que serviu de base para o cartaz da Feira-Exposição
de Maio de 1926.

Fig. 6 – Lavradeira de Viana do Castelo.I nteiro Postal nº 8,
da emissão de 1941.

Fig. 7 – Lavradeira de Viana do Castelo. Boneco de Estremoz,
das Irmãs Flores.

Fig. 8 - Selo de correio normal, reproduzindo o
auto-retrato de Alberto de Souza (1950).

Fig. 9 - Selo de correio normal, reproduzindo aguarela

 de 1926, de Alberto de Souza.

 

Fig. 10 - Carimbo Comemorativo de Homenagem a Alberto de Souza.

3 comentários:

  1. Bela lição como é...costume.
    Há cuidado e busca no que coloca...é bom aprender assim sem esforço!
    Colecciono postais só com trabalhos rurais e circulados, gostaria que me respondesse ao seguinte:
    Como tem estes seus postais montados, em folhas de cartolina? Naqueles albuns da Lindner de plástico que levam 4 postais?
    Agrupados por temas ou terras?
    Obrigado...veremos se tenho a sorte duma resposta!

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  2. Caríssimo Amigo Hernani Matos,

    Mais um texto que saíu da sua pena sobre o meu Avô Alberto Souza.
    Nunca tenho palavras para lhe agradecer as suas diversas homenagens que a ele tem dirigido.
    Vou reenviar o seu blog a minha irmã para que ela o leia também.
    Um forte abraço do
    António Villar de Souza

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  3. olivia vasconcelosdomingo, 03 abril, 2011

    Absolutamente fantastico!
    Aprendo sempre consigo. Um muito obrigado!
    Parabéns Hernâni e por favor continue
    Olívia Vasconcelos

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